Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

26 maio, 2014

Digo-te adeus e como um adolescente tropeço de ternura por ti - "Um adeus português", Alexandre O'Neill dito pela Poetisa Matilde Campilho


Lisboa, a bela, banhada por um Tejo violentamente azul, avistada da Boca do Vento 8sobre o Jardim do Ginjal)




Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O'Neill

13 maio, 2014

Sítios que me fazem lembrar memórias inventadas, desfia o talentoso José Valente. De que sombra dos sons se faz a rosa? da matéria das sombras? de nenhuma? de que fosco murmúrio, cristal, bruma? de que espirais da noite vagorosa?, responde, perguntando, Vasco Graça Moura




e outro silêncio enquanto o som repousa:
desfez-se o rebordo numa espuma.
de que sombra dos sons se faz a rosa?
da matéria das sombras? de nenhuma?

de que fosco murmúrio, cristal, bruma?
de que espirais da noite vagorosa?
do coração desfeito? ou não costuma
a luz gravar-se em sombras numa lousa?

coração rouco, o coração. falhada,
a voz vinda do vento se desate
num ramo de penumbras, descontínuo

o mundo passe a ser feito de nada,
só de efémeras rosas a rebate,
como gritos de sangue no destino.




____

  • O poema é 'a rosa, timbres' de Vasco Graça Moura in 'Poesia Reunida'

  • O vídeo mostra José Valente e  os 'Sitios que me fazem lembrar memórias inventadas' no TEDxCoimbra




04 maio, 2014

O escritor deve ser louco? alfabetizado? motivado? paciente? imaginativo... Ou alto? bonito? ... ou o quê? - a opinião de Rubem Fonseca


Sou fã, fãzaça de Mestre Rubem Fonseca. Escreve no osso, na marra, na dureza, e na ternura, na compaixão. Conhece o género humano, o submundo, a loucura, a rua.

Descobri-o agora falando nas Correntes d'Escritas 2012 sobre o que é preciso para se ser escritor, e fala com humor, vivacidade, sentido de palco, arrancando gostosas gargalhadas a quem assiste

Rubem Fonseca, com a obra Bufo e Spallanzani, foi nesse ano o vencedor do Prémio Casino da Póvoa.


Conforme vejo no texto que o acompanha, o video feito durante a mesa redonda sobre o tema "A Escrita é um risco total" e na qual estavam também Eduardo Lourenço, Almeida Faria, Ana Paula Tavares, Eduardo Lourenço, Hélia Correia, e José Carlos de Vasconcelos como moderador.



*

01 maio, 2014

Com as horas maiúsculas do cio, com os músculos inchados da preguiça, vem, serenidade!


Em dias de muito ruído, em que o cansaço sobe sobre a pele como uma moléstia húmida, amortecendo os músculos, quero silêncio, sossego. E palavras lidas como se de uma oração ou de uma toada religiosa muito pura se tratasse. Talvez poesia, talvez a poesia dita como se uma voz viesse de dentro das pedras, do fundo macio dos lagos, da luz que se reflecte no rio. E mais nada, só isso.




Vem, serenidade!
Faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros
e com que os ombros subam à altura dos lábios,
faz com que os lábios cheguem à altura dos beijos.
Carrega para a cama dos desempregados
todas as coisas verdes, todas as coisas vis
fechadas no cofre das águas:
os corais, as anémonas, os monstros sublunares,
as algas, porque um fio de prata lhes enfeita os cabelos.




Vem com as meretrizes que chamam da janela,
o volume dos corpos saciados na cama,
as mil aparições do amor nas esquinas,
as dívidas que os pais nos pagam em segredo,
as costas que os marinheiros levantam
quando arrastam o mar pelas ruas.

Vem, serenidade,
e acaba com o vício
de plantar roseiras no duro chão dos dias,
vicio de beber água
com o copo do vinho milagroso do sangue.



Vídeo de CINE POVERO


"Serenidade és minha" in «Mesa de solidão» (1955) de Raul de Carvalho (1920-1984), aqui lida por Mário Viegas (1948-1996), Humores, Vol. II, lado B (1980)

MÚSICAS: Jan Garbarek, "Soria Maria" (1980). Pat Metheny, "Waiting for an answer" (1983). Sufjan Stevens, "Oh God, where are you now?" (2003)

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