Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

11 março, 2012

Uma parte de ti ficava presa na noite naquelas ruas estreitas


Numa noite como a de hoje, quente, céu limpíssimo, iluminado, eu saio pela janela, olho o rio espelhado e saio a voar. O meu destino é inevitavelmente o lugar onde outras como eu se juntam sob os telhados abertos.

Ali chegada, aspiro a maresia, ouço o toada das ondas no musgo das paredes do cais, e depois, dançando, asas ao alto, feliz, esgueiro-me por entre os buracos das paredes e procuro as gatas de olhos verdes, as gaivotas de asas brancas e bico amarelo, as sombras dos poetas. Estou entre os meus.  Olho e vejo o céu, já não há telhas, espreito pelas janelas, abertas, e vejo o céu, e as gaivotas soltam gritos e as gatas roçam-se pelas paredes e soltam gemidos estranhamente humanos e não se ouve mais nada até que, logo a seguir, um a um, os poetas vão chegando e vão dizendo palavras como nuvem, névoa, silêncio, rio quase mar, amor, grito, rasgo, desejo, ave, asa, palavra, liberdade, e eu, em silêncio, escuto e sinto-me abençoada e olho o céu, e ouço este rio que tanto amo, enrolada no chão, no meio das redes dos pescadores, abraçada às gatas e gaivotas, mulheres da noite como eu.

Depois, quando saio, o luar mostra que nessa longa parede que vai rente ao mar alguém pintou um rosto, uns grandes olhos abertos, talvez os meus, talvez seja eu ali impressa, entranhada nestas paredes que me guiam. Uma parte de mim presa na noite, nesta rua estreita, nesta parede gasta.



[Aqui abaixo a parede com os grandes olhos que nos fitam, depois o poema de Tatiana Faia e depois o piano leva-nos até Debussy que esta semana nos acompanhará.]

Parede graffitada no Ginjaal, uma parede rente ao Tejo


                                 uma parte de ti ficava presa na noite
                                 naquelas ruas estreitas a subir e cor
                                 e areia um golpe de poeira nos olhos
                                 que te forçou a fechá-los por um instante
                                 cessar de ver é uma forma de silêncio
                                 mas depois terias sempre de regressar
                                 a estas casas onde a força do vento
                                 atravessa as telhas e em cheio no rosto
                                 te acerta onde a noite te rodeia
                                 um pouco mais que nos demais lugares


                                 ['Milão. II.' de Tatiana Faia in Lugano]

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