É à noite que os dias ganham, para mim, uma textura de veludo que me envolve de uma forma única. Eu de noite sou outra, sou eu e nada mais que eu, sem circunstâncias, sem motivos, apenas eu e as minhas mãos e os meus olhos e os meus ouvidos, eu e o meu corpo. Escrevo sem pensar, escolho música e imagens de forma livre, e deixo-me levar pela minha intuição, pelos meus sentimentos ou, até, pelos meus enigmas.
Se, tempo depois, calha ler o que antes escrevi, surpreendo-me por esta que sou e que nem sempre me reconheço. As minhas palavras soam-me, então, como a visão de mim por dentro, o meu pulsar, o meu respirar, o meu coração, outra que não a que se vê ao espelho.
As minhas noites não têm fantasmas que me assustem. Se os tenho, eles são generosos, meigos, abraçam-me e sorriem-me e eu sinto-me embalada pela sua presença. Amigos que me acompanham, amigos eternos e compassivos.
E estou rodeada por livros. Cercam-me. Vocês haviam de me ver aqui no meio deles, a mesa cheia, as cadeiras à minha volta cheias deles. Parece que apenas assim me sinto bem. Abro-os, espreito-os, leio um pouco, são como amigos de quem a gente gosta de saber que estão bem, que nos contem o que têm feito, por onde andam. Assim eu e eles. Abro, leio, duas, três, quatro páginas, e depois outro e outro. Não sei o que vocês pensam desta minha forma caótica de ler, mas é assim. Em paralelo há sempre um livro que vou lendo com rigor, um esteio. E há a poesia de que eu preciso como de ar ou água (ou perfume). Tenho que a ter rente a mim, abro um livro, leio um poema, abro outro, leio um poema. Anarquia pura. Sem bússula, sem propósito. Poemas em minha volta como gatos dóceis.
Depois, há o rio cujas margens percorro à noite ou que, sempre que posso, descubro à luz do sol. E há sempre coisas inesperadas. Umas absurdas, outras loucas. E todas me enternecem. O rio é uma das minhas casas, esquivo lençol que os meus olhos afagam, descanso e desafio.
Sou tão agradecida pelo que me é dado ver, ouvir, escrever, ser. Gostava de poder agradecer a alguém tudo o que me é dado viver mas não sei a quem.
[Abaixo do estranho painel de papel que ondula ao vento sobre o rio, temos de novo a visita de Emerenciano. Há algum tempo que não aparecia por cá e eu já sentia a sua falta. Logo a seguir, mais um grande momento com Jorge Palma que vem acompanhado por outro doido como ele, o magnífico Rui Reininho]
Por isso agradeço a incertos mas atentos deuses: obrigada.
Cais do Ginjal numa manhã fria e azul |
O dia assiste à noite
a noite recebe-me
os fantasmas visitam-me
chegam para contar
histórias de meter medo
e reconcilio-me com o acaso
das esquinas do absurdo
onde encontro Camus
amigo eterno de deus
que acena e ri
e correspondendo
agradeço os livros
da percepção
do lado estranho
e entranho.