Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

17 junho, 2023

Reconcilio-me com o acaso das esquinas do absurdo



É à noite que os dias ganham, para mim, uma textura de veludo que me envolve de uma forma única. Eu de noite sou outra, sou eu e nada mais que eu, sem circunstâncias, sem motivos, apenas eu e as minhas mãos e os meus olhos e os meus ouvidos, eu e o meu corpo. Escrevo sem pensar, escolho música e imagens de forma livre, e deixo-me levar pela minha intuição, pelos meus sentimentos ou, até, pelos meus enigmas.

Se, tempo depois, calha ler o que antes escrevi, surpreendo-me por esta que sou e que nem sempre me reconheço. As minhas palavras soam-me, então, como a visão de mim por dentro, o meu pulsar, o meu respirar, o meu coração, outra que não a que se vê ao espelho.

As minhas noites não têm fantasmas que me assustem. Se os tenho, eles são generosos, meigos, abraçam-me e sorriem-me e eu sinto-me embalada pela sua presença. Amigos que me acompanham, amigos eternos e compassivos.

E estou rodeada por livros. Cercam-me. Vocês haviam de me ver aqui no meio deles, a mesa cheia, as cadeiras à minha volta cheias deles. Parece que apenas assim me sinto bem. Abro-os, espreito-os, leio um pouco, são como amigos de quem a gente gosta de saber que estão bem, que nos contem o que têm feito, por onde andam. Assim eu e eles. Abro, leio, duas, três, quatro páginas, e depois outro e outro. Não sei o que vocês pensam desta minha forma caótica de ler, mas é assim. Em paralelo há sempre um livro que vou lendo com rigor, um esteio. E há a poesia de que eu preciso como de ar ou água (ou perfume). Tenho que a ter rente a mim, abro um livro, leio um poema, abro outro, leio um poema. Anarquia pura. Sem bússula, sem propósito. Poemas em minha volta como gatos dóceis.

Depois, há o rio cujas margens percorro à noite ou que, sempre que posso, descubro à luz do sol. E há sempre coisas inesperadas. Umas absurdas, outras loucas. E todas me enternecem. O rio é uma das minhas casas, esquivo lençol que os meus olhos afagam, descanso e desafio.

Sou tão agradecida pelo que me é dado ver, ouvir, escrever, ser. Gostava de poder agradecer a alguém tudo o que me é dado viver mas não sei a quem. 





[Abaixo do estranho painel de papel que ondula ao vento sobre o rio, temos de novo a visita de Emerenciano. Há algum tempo que não aparecia por cá e eu já sentia a sua falta. Logo a seguir, mais um grande momento com Jorge Palma que vem acompanhado por outro doido como ele, o magnífico Rui Reininho]


Por isso agradeço a incertos mas atentos deuses: obrigada.
Cais do Ginjal numa manhã fria e azul



                                                             O dia assiste à noite
                                                             a noite recebe-me
                                                             os fantasmas visitam-me
                                                             chegam para contar
                                                             histórias de meter medo
                                                             e reconcilio-me com o acaso
                                                             das esquinas do absurdo
                                                             onde encontro Camus
                                                             amigo eterno de deus
                                                             que acena e ri
                                                             e correspondendo
                                                             agradeço os livros
                                                             da percepção
                                                             do lado estranho
                                                             e entranho.



['Amigo eterno de deus' de Emerenciano in 'Ir & Vir', palavras & imagens]



29 julho, 2019

A grande e turva flor desse fogo ainda por abrir






O fogo que arde nos seus peitos apenas se pressente. Ninguém o vê e eles são os primeiros a negá-lo. Não existe. Não existe - repetem um ao outro, aos outros, a si próprios. Animal rafeiro que se chegou a eles sem que nada tivessem feito para isso, esse fogo. Não o chamam, não lhe dão guarida, não lhe dão de beber ou comer. Ignoram-no. E, no entanto, eis que se alojou dentro deles, sábio e estranhamente paciente.

Poder-se-ia dizer paciente e meigo mas, pensando bem, dele não se poderá dizer que é meigo. Irreverente,  talvez. Atrevido, sim. Se falasse talvez também o ouvíssemos a usar a palavra esperança. L'espoir. Talvez paciente justamente porque acredita. Mas nada mais que isso pois tudo o resto nunca é confessado e tudo o que é dito se contradiz, tudo desafia e subverte. 

Atravessam os dias para chegar aqui, ao crepúsculo, e, no silêncio da noite, contemplarem de longe, com mil cautelas, esse fogo clandestino, insolente, que bem sabem estar ainda por abrir.

É um daqueles fogos que não se percebe, que nunca poderá ser explicado, que apareceu nesta indecifrável encruzilhada, que se instalou dentro deles, que os aproxima neste espaço sem coordenadas, em que se desconhecem, lost in translation, both, em que não conseguem aproximar-se, em que não descobrem como extingui-lo. 

E assim, em segredo, em silêncio, escondendo de si próprios e dos outros todas as evidências, na maior solidão, escrevem palavras em esperanto nas quais juram que não foram feitos para o abandono e onde se prometem fulgurantes raios de um fogo ainda por abrir como se esse fogo sobre o qual perigosamente se debruçam fosse uma misteriosa flor de carne e perdição.


Mas um dia
a uma hora de crepúsculo qualquer,
quando mais sós nos encontrámos,
raiou de súbito nas praias
um fulgor de fogo.

E debruçados sobre os mares
dissemos
que foram feitos
                                                           não para o abandono
mas para neles florir
a grande e turva flor
desse fogo ainda por abrir.


[De Carlos de Oliveira in Trabalho 'Poético']

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Fotografias feitas, como geralmente, no Ginjal

26 julho, 2019

Nem no cântico dos seios nem no soluço das pernas





Digo-te que sou bicho vindo do ventre da Terra, que ando pelos campos enterrando as mãos no barro, deslizando pelos campos de urze e rosmaninho, raspando as unhas no tronco das árvores, o corpo despido para melhor receber o sol e o canto dos pássaros, o colo contendo o soluço que cala uma saudade desconhecida, as pernas tremendo com o peso de uma ausência indefinida. Digo-te que sou uma mulher que vem do tempo dos silêncios e das trevas, que mergulho as mãos nas águas frias e limpas, no corpo quente das palavras. Digo-te que me entrego ao sonho, ao acaso, ao luar, à noite, à loucura. Digo-te sem saber porque digo e  digo-o de joelhos, digo-o como se dissesse a verdade.

E, então, fecho os olhos, aspiro o ar fresco dos montes, imagino raízes que se enleiam, cânticos de água nascente, encruzilhadas nas florestas, clareiras fulgentes, abismos atraentes. E, quando menos espero, começo a ouvir a tua voz que me chega não sei de onde, uma voz funda e rouca que vem talvez de dentro da Terra, talvez de dentro de mim, e que me traz o perfume dos segredos sem nome, uma voz que transporta todos os perigos do mundo.


É quando estás de joelhos
que és toda bicho da Terra
toda fulgente de pêlos
toda brotada das trevas
toda pesada nos beiços
de um barro que nunca seca
nem no cântico dos seios
nem no soluço das pernas
toda raízes nos dedos
nas unhas toda silvestre
nos olhos toda nascente
no ventre toda floresta
em tudo toda segredo
se de joelhos te entregas
sempre que estás de joelhos
todos os frutos da Terra


[De David Mourão-Ferreira in 'A arte de amar']

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[Fiz as fotografias no Ginjal]

25 julho, 2019

E o seu nome seja o seu próprio pudor




O silêncio envolve-me e eu, nua, deixo que se revelem os meus secretos impossíveis, essa estranha conjugação de impossíveis que, de repente, se torna desmando, tropel sem comando. Descarados, insolentes impossíveis uivam, cantam, voam.

Querem levar-me não sei para onde. Serão lobos, serão bardos, serão espíritos cadentes, pássaros que arrastam as asas em terra. Não sei.

No vazio da noite, sente-se, em volta da gruta, o bafo quente de presenças múltiplas, múltiplos os nomes. As palavras vibram e o silêncio que me envolve teima em despir-me. E eu não quero. Não, não e não. O pudor a guardar a  virtude.

E sinto que lá fora os lobos, afinal um só lobo, tenta afogar o pudor deixando cair o nome, todos os nomes, à porta da gruta silenciosa.


Para que uma só coisa
vibre
na sua presença nua
para além da conjunção dos possíveis

é preciso que o silêncio a dispa
e o seu nome seja o seu próprio pudor



[De António Ramos Rosa in 'A intacta ferida']


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Como é bom de ver fiz as fotografias no Ginjal

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24 julho, 2019

Para que tu existas




Mil rostos, mil nomes, mil identidades. 

Numa ilha, numa casa perdida no mundo, inventando personagens, sem leme, sonhando com os deuses que habitam memórias muito antigas, construindo segredos, vive aquele que por vezes acredita que não existe. Não sabe se as feridas que recorda são suas, se dos lobos que cruzam as noites tristes, se dos personagens solitários que atravessam as madrugadas em busca do silêncio. Não interessa: são feridas intactas para as quais não há consolo. 

Os nervos adormecidos, as lágrimas esvaídas, as mãos sem força, o coração falando uma língua estrangeira, ele segura a taça vazia na qual se reflecte um corpo indefinido, desconhecido, um corpo que vem de um outro tempo, de uma terra desconhecida e longínqua, um corpo feito de palavras nuas, inexistentes.


Para que tu existas
com todos os teus nervos
como linhas de força
empunho a minha ferida
como se fosse um leme
Os segredos mais vivos
assomam-se a um rosto
onde sonham as ilhas
onde crescem as taças
dos deuses terrestres


[De António Ramos Rosa in 'A intacta ferida']

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Como sempre, fiz as fotografias no Ginjal

23 julho, 2019

Em mim, imaterial e ausente





Pego em palavras e misturo-as. Não quero saber do sentido das coisas. Se o poema tem palavras como 'outro', 'longe', 'imaterial' e 'ausente' é nelas que, ao acaso, vou pegar para desenhar outros significados. Acasos. Gosto de acasos. Assim também a escolha do poema. Abro a estante, puxo um livro sem saber o que procuro, disponível para o acaso. Com ele ao meu colo, sem saber o que vou encontrar, abro numa página e, sem pensar no que transcrevo, transponho para o écran branco as palavras que não são minhas. Aliás, sinto que nunca são minhas as minhas palavras. Só quando, às cegas, deixo que se percam de mim. Por exemplo, se escrever, do nada, sem querer saber do seu significado, qualquer coisa como: 
Traduz o que escrevo, encontra o que se oculta no que escrevo, inventa uma língua só tua para o que se esconde à vista de todos, inventa sentimentos para elas, abraça o remoinho que se forma quando se soltam os pássaros que as habitam, guarda-as onde eu não mais as encontre, para sempre escondidas de mim, numa outra língua, inexistente, indizível
Aí, quando as palavras não fazem sentido e nascem do nada, aí talvez sejam minhas. Mas não sei, não as reconheço.

Mas estas que agora vou escrever não são minhas. São nada. São sombras, reflexos. Colho-as do poema, misturo-as, abro a janela e deixo-as sair: 
Estás aqui e estás longe. Respiras e não te ouço. Aproximas-te para te esconderes dentro de ti. Foges. Quanto tempo passou desde que deixaste de existir? Estás mas nunca és tu. Brincas e finges que estás num jardim mas não estás, estás ausente, longe, muito longe, imaterial, sem rosto, sem nome, perdido num vasto e profundo silêncio. 
Também eu sou nada, uma presença intangível feita apenas de palavras, alguém que é apenas um rasto que fica de quem passou. Não fujo. Simplesmente não existo. Uma presença ausente. 
Perdidos num espaço vasto, infinito, silencioso. Ambos. 
Palavras sem significado, pois. Poeira cósmica que ficará a flutuar na imensa distância que nos cerca.


Quem está aqui
cada vez mais longe?
O que fala foge
para dentro de si.

Quanto tempo passou
pelo que já não sou
em que outro lugar
onde não estou a estar?

Alguém brinca infinitamente
num jardim e em mim
lembrando-se de isto em mim,
imaterial e ausente.

E sinto em alguém
que tudo é tudo
e eu também,
vasto e profundo.


['Lugar' de Manuel António Pina in 'O caminho de casa']

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(Fotografias minhas, feitas no Ginjal)

22 julho, 2019

A poucos é dado conhecer o inimigo, o duplo




Um jogo. Uma respiração que se pressente, uma inquietação latente. Um desafio que vai e vem e vai e vem. O espelho e o espelho. A imaterialidade das palavras como instrumentos de um jogo de espelhos.
Eu avanço, tu avanças, eu avanço, tu recuas, eu recuo, tu avanças. Uma dança que talvez seja infinita. Eu provoco, tu reages, eu desafio, tu perguntas, eu não respondo, tu quase adivinhas, eu dou pistas, tu não as queres ver, eu escondo, tu espreitas, eu disfarço, tu arriscas.
E, agora que escrevo, tu que tudo sabes, diz-me: escrevi como se fosse eu ou como se fosses tu? Quem é o duplo nesta história? Eu? Tu?

Adivinha.

Olha, e se eu te dissesse que sei? E se te dissesse que sei quem está atrás de todas as máscaras? E se te dissesse que podes continuar a jogar, a fazer de fantasma, a aparecer como um nobre chevalier, como um trobadour ou como um lobo solitário que saberei sempre quem se esconde sob os mais diversos disfarces?

Não é preciso grande fé, sequer a little leap of faith, porque, de facto, não passa de um tiny, frivolous mystery. Conheço a tua respiração. 

Há quanto tempo? Há quantos anos? 

E, no entanto, dear ghost, há a questão da verdadeira chave que permitiria descodificar as palavras escritas no vento, que permitiria arrancar a máscara ao duplo para que o verdadeiro rosto aparecesse, que permitiria perdoar o inimigo que um dia...

Tento recuar. Qual o dia? Qual a palavra? 

Tento reconstruir a cartografia de desencontros embora saiba que não há coordenadas que possam verdadeiramente explicar esta sinuosa dança. O tempo esbate os dias, as palavras, a semente de tudo; mas não interessa. São dois mundos paralelos, jamais se encontrarão, tu sabes.

Tantas vezes parecemos não perceber que há ecos que se propagam até ao infinito sem que nunca encontrem o que esteve na sua origem.

Mas assim é, assim será. E a chave que descodificaria de vez todo o enigma, dear ghost, believe me, I will never use it, never ever. 


Estas palavras são o eco de uma outra coisa
que provavelmente nunca encontrarás.
A poucos é dado
conhecer o inimigo,
o duplo,
o que espera por nós (quase sempre em vão) até ao fim.

Fantasma adiado,
só ele tem a chave
deste jogo.


['Ainda a poesia' de Luís Filipe Castro Mendes in 'Lendas da Índia']


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As fotografias, como sempre, foram feitas por mim no Ginjal

21 julho, 2019

Uma teia que se desfia pouco a pouco





Escuta. 

Não te aproximes. Não sabes o perigo que corres. Fica aí, longe de mim, mantém-te em terra segura. Afasta-te. Não tentes saber de mim, nem tentes ver-me, nem tentes espreitar-me nem que seja apenas através das palavras que escrevo. 

Tem cuidado. Não corras riscos, não te aproximes do calor, não te arrisques que o fogo é abismo do qual não deves acercar-te, nunca, nunca. 

Não sabes que há um certo animal traiçoeiro, bicho calado que espera pelo momento em que a caça não vai conseguir escapar-lhe, bicho que atrai à sua teia quem vem sem cuidados, bicho de quem deves manter-te distante?

Escuta o meu conselho. Pára por aí, recua, esquece. É que, se deres mais um passo, um só que seja, vais correr o risco de ficar aprisonado, atraído pelo fogo de um olhar que nunca pousará em ti, e tu preso, preso até ao fim dos tempos, preso à invisível teia do que nunca será recíproco e tu para sempre preso, para sempre. Por isso, foge, foge, foge de mim. 

No entanto, sinto-te aí, sinto a tua respiração, sinto o bater do teu coração, sinto a tua inocente vontade em abeirares-te, sinto-te, sinto-te tão perigosamente perto. Apesar do silêncio que paira entre nós, apesar da distância, apesar de não usar o teu nome nem tu o meu, apesar de nos desconhecermos, apesar de tudo, sinto-te aí, junto a mim, tão junto, tão, tão perto de mim. E isso é tão perigoso. Saberás quanto? Diz-me: não sabes que há riscos que não se podem correr?

Olha, ouve-me, foge de mim antes que a teia que nos separa se desfie e que para sempre chores o que nunca conseguiste nem conseguirás alcançar.

Foge, doido, foge.


Cuidado. O amor
é um pequeno animal
desprevenido, uma teia
que se desfia
pouco a pouco. Guardo
silêncio
para que possam ouvi-lo
desfazer-se.


[de Casimiro de Brito]

27 setembro, 2018

Que podíamos fazer senão dançar?




Chamavas-me Koré e só eu sei como nunca quis ser a tua deusa. Olhavas-me com olhos cheios de amor e vias-me como divina e toda eu era transformada em palavras. 

O cabelo de ouro velho, os olhos de água, as mãos pequeninas que querias junto a ti na hora da tua partida, os seios que descrevias como os vias, o ventre que achavas esculpido. Eu era um poema. E outro poema. Era letra de canção. Era amor eterno, musa, dor. Eu era a luz e a ausência dela. Era riso e a razão das tuas lágrimas. Era a que dançava nas tuas mãos e entre os braços de quem te fazia doer. 

Eu era a tempestuosa adolescente dos cabelos de fogo, de temperamento de guerreira, de boca de mulher, sorriso de menina, eu era a fonte dos beijos que cantavas, eu era a que te cativava e rejeitava, eu era a que me entregava e logo te fugia.

Fiz-te sofrer e fiz de ti um homem, escondi-me, fiz-te conquistar-me, fiz-te amar-me sem o querer. 

Dancei para ti, dancei nos teus braços enquanto desejava outro, dancei nos braços de outro. Diana ou Artemis, guerreira, caçadora, protectora das virtudes. Memórias. Palavras. Melodias longínquas. Nunca soubeste que me quiseste demais, nunca percebeste que nunca eu poderia ser eternamente tua, nunca percebeste que eu não queria senão dançar.

Perdoa-me.


Ela trazia o fogo trazia a luz
A taça o vinho
E aquela forma de beleza
Que em si mesma
Perdura

Trazia uma Koré em cada gesto
E havia nela o dar de quem se nega
Toda ela era dádiva e protesto
Como quem se recusa e assim se entrega

Trazia a graça e a garça no andar
Que podíamos fazer senão dançar?

['Grega' de Manuel Alegre in 'Todos os poemas são de amor']

John Williams - The lament of God

17 agosto, 2017

Porque escrevo no prazer eu incendeio-me




De que subtis texturas é feito este meu sentir? De que auspiciosas suspeitas se alimenta o meu querer? Com que misteriosas preces se entretece o meu sonhar? Que secretas memórias me visitam para assim acalentar eu tão loucas esperanças?

É a minha carne que transporta este fogo que não sei de onde nasce? É o sopro da minha respiração que me leva nas suas asas para os perigosos longes onde me refugio? São as minhas mãos vadias que enleiam as palavras que tecem laços de um afecto que não explico? São os meus olhos que ao longe adivinham vertigens onde quero perder-me?

Desconheço-me. Sou outra, talvez.

Senão como explicar este meu sentimento feito de desmandos, de sobressaltos? 
Como explicar que queira mostrar o meu avesso? 

Escuta as minhas confissões. Vê como me abraso quando penso em ti. Escuta. Toma as minhas verdades como oferendas. Toma-as. Escuta como bate o meu coração. Vê como arde sedento este fogo que te deseja. Escuta. Contigo eu não uso disfarces:
Estilhaço-me frente à luz. 
Incendeio-me se penso em ti. 
Perco-me se ouço os teus lamentos. 
Procuro-te, e tu não sabes, quando me sinto perdida.
Queria pedir-te abrigo quando me abandona o prazer das tuas palavras. 
Queria resplandecer nos teus braços, fundir-me em ti nos teus longos e saudosos abraços.

[Mas, olha, se não suportares o calor da minha paixão, deixa. Isto são só palavras. Só. É que, sabes, porque escrevo no prazer eu incendeio-me]


Se respirar um pouco
mais
                         estilhaço-me

se sentir um pouco
mais
                         resplandeço

Se saio do aprisco
perco abrigo

Se ficar abrigada
perco apreço

Porque escrevo
no prazer
                         eu incendeio-me

Quando exijo
paixão
                         eu incandesço


[Incandescência de Maria Teresa Horta in Poesis]

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O sleep, why dost thou leave me (Handel) -- Julianne Baird

Fotografias feitas no Ginjal e Cacilhas

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15 junho, 2017

Procura a nudez da página, tem um orgasmo de seda





Não te escondas. Não faças saber que desapareceste. Não vale a pena. Sei-te aí. Ouço a tua respiração. Sinto o calor do teu bafo. Sei-te escondido, espreitando as minhas palavras. Sinto-te. 

Quando a noite cai, pressinto os teus passos silenciosos, conheço os teus disfarces.

Gostavas de poder tocar as minhas mãos que escrevem, não digas que não. Gostavas de poder visitar a minha toca e sentir a minha pele e que eu não te visse. Não digas que não. 

Querias, talvez, lamber a água salgada com que o meu corpo aceso mostra que não te esquece, querias despir uma e outra alça para que a aragem fresca da tua saudade me aquietasse a alma.

Querias, talvez, que eu me deitasse, rendida, perdida, querias que eu deixasse que as tuas pernas se enleassem nas minhas, que os teus dentes cravassem a minha pele, a minha carne, e, mais fundo, o coração que tantas vezes te neguei. Não digas que não. Não digas.

Abeira-te, lince meu, abeira-te, não tenhas medo, deixa que a minha mão percorra o teu pêlo arisco, deixa que a minha boca sinta as palavras que me escondes, deixa que te puxe para mim e te deite na página branca e silenciosa onde te espero. Vem, lince, lince meu, traz poemas, rimas, traz a pena, traz a seda do teu verbo, conquista-me, vence-me com o teu estranho amor. Lince, lince meu.


O lince da tua boca
deitado no meu poema

bebe o corpo dos meus versos
devora-lhe a alma acesa

Com as pernas puxa e enlaça
a linguagem desvenda

com as garras desce-lhe as alças
aceita a febre descalça

Crava os dentes na sintaxe
lambe devagar as letras

sente a rima onde e enreda
possui a escrita sem pena

Procura a nudez da página
tem um orgasmo de seda


['O lince do meu poema' de Maria Teresa Horta in Poesis]



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Fotografias feitas no Ginjal

Edward Elgar - Salut d'Amour Op.12

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28 fevereiro, 2017

Há-de vir um dia em que chega a tua carta




As águas estão paradas, pálidas. Fazes-me falta. As águas estão silenciosas. O tempo parou. Não sei de ti. Não recebo flores nem palavras nem o céu se põe azul nem as gaivotas cruzam os céus. 

Podias vir até mim. Podias escrever-me uma carta. Podias dizer que te lembras de mim. Podias dizer que, tal como me acontece, também a ti te falta o ar, se esvai o sangue, se ensombra a luz do dia. Podias escrever para que só eu perceba que é para mim que escreves e dizer-me palavras que o teu coração invente. Podias contar-me como, em segredo, sonhas com o dia em que vais ter-me nos braços. Mas não escreves. 

Não sei de ti e sinto tanto a tua falta.

Não deixes que para mim o tempo permaneça parado, sem luz, em silêncio.
Não deixes.
Diz-me por onde andas, descreve-me os teus caminhos, espalha rosas no chão que pisas. 
Deixa que eu te adivinhe, deixa-me que eu consiga chegar até ti.
Deixa. 

Saberás tu como são longas e tristes as noites em que em vão te espero?  Saberás como soletro as palavras que de ti recordo para com elas reconstruir o teu nome? Saberás como, em silêncio, chamo o esse teu nome? Saberás como são obscuras as noites em que a tristeza queima o meu coração?

Escreve-me. 

Escreve-me até que a aurora te adormeça. Traz-me alguma alegria. Conta-me de ti, enche-me de palavras. Traz-me palavras como se me enchesses de rosas.

Escreve-me.


Há-de vir um dia em que chega a tua carta
e há-de vir um dia em que já aqui não estou
e um momento sem eco a fim de ser silêncio
já sem reverberar da perda nem do dano. E
há-de haver uma noite para todos os cantos
até os mais obscuros nos limites da voz
e outra que se ergue entre todas sonora
de um líquido frio que queima como a neve
e faz ver o sol levantar-se com ela. Essa
voz que conjuga uma e todas as letras
aquelas que ficaram aquém dos alfabetos
num modo de a tristeza se esquecer de si
mesma. E num clarão de luz
ou num rasgo inesperado tornar-se coincidente
o que nasceu partido. E há-de haver um feixe
de rosas muito claras a deitar-se na aurora
com a penumbra das casas. Um chão
onde se acaba o teu caminho e o meu. Onde
possa ir deitar-me numa noite sem fim
em que já nada espero.

['A alegria' de Bernardo Pinto de Almeida in Negócios em Ítaca]


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Concerto para violoncelo de Boccherini numa interpretação de Rostropovich

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07 novembro, 2016

Que ninguém chame pelo teu nome




Na noite silenciosa, na beira do rio, junto à rebentação do mar, no lugar mais secreto dos meus pensamentos, em todos os lugares, eu escondo que é pelo teu nome que eu chamo.

Escondo de mim que quero que me venhas visitar, que me tragas secretas palavras, que me tragas poemas desconhecidos, que me ensines uma gramática inventada, que me contes de sereias, de deuses, de grutas, de montanhas, de guerras longínquas, de amores loucos. Escondo, escondo, silencio. 

Mas se queres saber, escuta. Escuta o que sempre esconderei de ti: quero esquecer o teu nome, quero adormecer dentro de mim o chamamento do teu nome, quero esquecer que me trazes presa a ti, a ti que não sei quem és.

Mas não te importes com os meus medos. Vem na mesma. Traz de longe as palavras que me encantam e embalam nos seus intangíveis abraços. Mas que mais ninguém saiba porque só tu e eu podemos saber como as palavras podem tecer estas invisíveis teias que me prendem ao teu nome, a ti, ao que de ti invento. 


No sítio mais fundo
do teu nome
fala o que não se pode dizer.

Que ninguém chame pelo teu nome,
que ninguém acorde
o teu nome que dorme.

Porque é o nome do homem
e o do menino,
o da vítima e o do assassino.

[A Eugénio de Andrade de Manuel António Pina in 'Aproximações a Eugénio de Andrade']

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Tommaso Vitali  - Chaconne

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05 setembro, 2016

Para que tu existas




Respiras? Existes? As palavras que dizes são tuas? O rosto que mostas é teu? Quem és tu por detrás de ti? 

Alguma vez mo dirás?

Sonhas com ilhas perdidas em mares azuis, escondes segredos, constróis histórias, ergues altares para os teus deuses, caminhas errante por um mundo só teu. Disso eu sei.

Mas nada mais. Posso até acreditar que és apenas uma sombra que fala com mortos e que do mundo dos vivos tudo desconhece. Posso até acreditar que és um corpo sem nervos, sem pele, um corpo em carne viva. Posso até mesmo acreditar que não respiras, ou até mesmo que não existes. Posso até temer que sejas apenas fruto da tua imaginação.


Mas soubesses tu o que eu daria para saber que existes, ah...soubesses tu.


Para que tu existas
com todos os teus nervos
como linhas de força
empunho a minha ferida
como se fosse um leme
Os segredos mais vivos
assomam-se a um rosto
onde sonham as ilhas
onde crescem as taças
dos deuses terrestres


[de António Ramos Rosa in Antologia Poética]

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A primeira fotografia foi feita em Cacilhas, a segunda no Ginjal

Clara Rockmore interpreta no teremim "Berceuse" de Tchaikovsky

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No caminho que percorri
que escolhi 
ou que me escolheram.
Pegadas, sulcos, rastos
restos
que a vassoura do tempo
vai apagando
mas que ainda trago colados em mim.
Marcas do que eu sou
do que fui
do que não fui
do que nunca gostei de ter sido.


[De Joaquim Castilho, em comentário abaixo]


04 setembro, 2016

E se houver dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio





Em silêncio espero a tua visita. Há tanto tempo. Não peço, tão pouco mostro que sinto a tua falta. Sou assim. Posso até parecer despegada. E sou. Mas não de ti, de ti custa-me a despegar-me. Sinto a tua falta.

Vem. Esquece o que lá vai.

Podes aparecer-me aqui vindo do escuro rio que corre ali em baixo, podes aparecer-me ainda escorrendo, coberto de limos, trazendo o cheiro da maresia colado à pele, ou podes enviar antes uma longa carta, longa, em que me contes lembranças de ti, pensamentos soltos, os teus medos ou sonhos, e se ainda te lembras de mim, ou podes fazer-te anunciar através de música, ou podes bater à porta e vir devagar, sentar-te à minha beira e desenrolar livros, apontamentos, palavras tuas ou não, podes falar-me do que gostarias de me ensinar na secreta esperança que eu aprenda mais do que confesso, ou poderias com os teus dedos nervosos fechar os meus olhos e, para que oiça apenas com o coração, dizer-me poemas até que a noite dê lugar ao dia. 

Tudo estará bem para mim. Quero apenas ter notícias de ti, saber que, para ti, ainda existo, saber que, mesmo que apenas em pensamento, eu ainda sou a tua amada, a tua eterna e secreta amada.

É que, sabes, temo que, se não o fizeres, um dia me esqueça de ti, não consiga mais recordar-me do teu rosto, não consiga já que o meu corpo se acenda com a memória das tuas mãos e do que fazias com elas para me fazer vibrar, nem consiga sentir como a minha pele estremecia ao som ciciado da tua voz convidando-me a pecar.

Não te quero esquecer. Vem. Sinto tanto a tua falta. 



Há dias em que em ti talvez não pense
a morte mata um pouco a memória dos vivos
é todavia claro e fotográfico o teu rosto
caído não na terra mas no fogo
e se houver dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio.


[in Fogo, Gastão Cruz]


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Fotografias feitas no Ginjal

Katica Illényi, no teremim, interpreta Once upon a time in the West de Ennio Morricone sob condução de István Silló com a Győr Philharmonic Orchestra

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04 julho, 2016

A solidão de um anjo cego abrindo pouco a pouco os olhos





Num lugar distante, perdidas na noite, umas mãos vagueiam entre palavras mudas, pálidas de solidão. Sombras e véus rasgados acariciam o seu rosto e é como se um vago murmúrio sussurrasse lamentos antigos.

Da gentileza desconhece os preceitos, dos gestos galantes ignora a doçura. Quase não fala, apenas escreve e, quando são suas as palavras, elas soam como afiadas lâminas, dolorosas agulhas, ferem, ferem as suas ariscas mãos. Cansados os olhos, cansado o corpo, cansadas as esgotadas mãos que não sabem da luz os afectos, da cor a cortesia, da aragem a carícia.

Memórias, tristezas, inquietações desenham-se sob os seus pés como caminhos na escuridão. Escombros, ruínas no passado, vazio no tempo que se aproxima com cruel lentidão -- assim a sua vida. Em vão, as suas mãos cegas tentam que outras mãos surjam de entre as trevas para agarrar as suas. Mas não sabe procurá-las, não sabe perceber quando alguém se aproxima. Encosta-se, então, à parede, sozinho, perdidas as mãos, perdido o olhar.

Contudo, não chora. Dos olhos, rentes às trevas, há muito que as lágrimas também se evadiram. Agora, deles, escorrem fios de mercúrio, gelados como o sopro de estrelas mortas.


Apagaram-se as luzes. Na memória
vibra a última sombra, a solidão
de um anjo cego abrindo pouco a pouco
os olhos. Desta noite
nascem todas as noites de quem fala
em silêncio e afoga
as suas dores no sangue incandescente
de uma estrela já morta, a cintilar
sob escuros escombros, entre sonhos
ainda por viver. Em cada alma
escorre um fio de mercúrio, essa lágrima
anunciando o paraíso, algures
no interior da treva.


[De Fernando Pinto Amaral in 'Às cegas']

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As fotografias foram feitas no Ginjal. 
A música é de Jocelyn Pook.

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26 março, 2016

Solitário no meu pequeno barco, canto no meio do mar da felicidade




Estás do outro lado do mundo, invisível, tão longe das minhas mãos cegas. Se fecho os olhos, vejo-te entre sombras, vagueando entre palavras, adivinhando músicas longínquas, tecendo fios perfeitos de sedas suavemente coloridas, frases límpidas, tão límpidas. Outras vezes, o teu olhar perde-se entre verdes, azuis, deleita-se com os caprichos das flores e, então, vejo-te guardando tesouros, com a minúcia dos antigos, cada coisa em seu cuidado compartimento, isto para um dia de luz, aquilo para um dia de névoa, isto para te contar um dia, aquilo para esconder de todos. Com a delicadeza dos generosos, afagas memórias, sonhos, sorrisos de um carinho tão distante.

Abro a janela e, na noite, adivinho as estrelas adormecidas, as nuvens em sonos aquietados, as tuas mãos pensando naquela que o teu coração chama, paradas, expectantes. São brancas e pensativas as tuas mãos. Apenas a respiração, agora, te prende à vida que os outros conhecem. O resto, todo tu, está nos esconderijos onde a tua vida se guardou.

Mas deixa que eu, que não te conheço, te diga: não penses com saudade naquela que o teu coração chama. Não penses. 

Eu conto-te. Ela vive entre o brilho das águas, sobre os ramos floridos das árvores, voa sem destino certo, perde-se entre os caminhos frescos de bosques que mais ninguém conhece, ela é outra e ninguém sabe quem é, ela é um reflexo, ninguém, uma mulher inventada. 

Respira de olhos abertos, respira. E olha as tuas mãos, levanta-as, deixa-as voar, abre a janela, sacode as asas, sai e voa. Procura um barco, deixa-te deslizar, vai com ele, olha os mil sóis, deseja a tua felicidade, encosta o ouvido à frescura da noite, escuta como ela te pede que sorrias. Sorri. Agora. Sorri. 

Estou a ver-te. Ainda não estás a sorrir. Sorri. Sorri para mim.

Assim está melhor. Gosto de te ver a sorrir. É bonito o teu sorriso.


O amado está dentro de ti e de mim
a árvore está escondida dentro da semente
Todos lutam    Ninguém chegou muito longe
Abandona a tua arrogância    Olha à tua volta

O céu azul prolonga-se pelo infinito
A diária sensação de fracasso esbate-se
Um milhão de sóis começa a brilhar
enquanto piso com firmeza este mundo

Ouço o som de uma campainha que ninguém agita
chove embora não haja nuvens no céu
Fluem rios de luz

Solitário no meu pequeno barco
canto
no meio do mar da felicidade

[in 'O nome daquele que não tem nome' de Kabir numa versão de Jorge Sousa Braga]


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A música é  Look at the world de John Rutter numa interpretação de The Cambridge Singers 

As fotografias foram feitas no Ginjal
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09 março, 2016

A oriente do teu sangue



Como dizer, anjo selvagem, que te quero longe de mim, que o incêndio que lavra no teu peito me enche de medo? 

Como dizer, anjo de negras asas, que a tua língua de homem perdido traça labirintos loucos na minha noite?

Como dizer, anjo terrível, que o sangue perverso que corre nas tuas veias me adoece, me envenena?
E como dizer que a noite macia que me envolve não basta para me proteger do teu canto tão acre, tão, tão perigoso?
E como dizer, anjo louco, que a tua insolência solta disparos de fogo que ateiam a minha intranquilidade?
Ah, como dizer, anjo sem nome, que mergulho no rio, me deixo levar pela aragem doce e azul, me afasto da costa segura, tudo, tudo, apenas para me proteger de ti, madrugador intranquilo que te confundes com as palavras loucas que atiras pelos ares?


como dizer aos meus olhos que se afastem
do incêndio que lavra a oriente do teu sangue
rasgando a minha fonte

e me protejam nesta imperfeita madrugada
em que as línguas dos homens e dos anjos
se confundem

[Poema 2 de 'Pelas mãos e pelos olhos eu juro' de Alice Vieira in 'Dois corpos tombando na água]

25 fevereiro, 2016

Uma palavra, um grito, um deslizar manso sobre as águas





Há pouco, talvez umas oito da noite, olhei o céu e vi uma despudorada lua nua, descaradamente amarela. Iluminava o rio e ele, rendido, todo se desfazia em reflexos.

Depois distraí-me. Por vezes acontece-me isto, deixo que pequenas coisas me façam esquecer o que é verdadeiramente importante. 

Agora fui espreitar. Já não a via. Entristeci-me, pensei que a tinha perdido. Olhei em volta. Finalmente vi um rasto de luz incolor. Era ela, lá em cima, já de branco vestida, o rio de negro. Zangaram-se, pensei. Mas entre os amantes que muito se querem, os pequenos nadas são esquecidos e a ausência dilui-se, perdoa-se. Pensei: amanhã já estão outra vez na mesma, trocando sinais de amor, sorrisos, brilhos que só eles parecem ver. Tive vontade de os abraçar com o meu olhar e então pensei: como se abraça com o olhar? Fui buscar a máquina, foquei, olhei-a de perto. Fotografei-a. Branca, manchas, cinzas, crateras. Um luar pleno, carregado de notas de música e de poemas e, no entanto, o que há vem da cinza, vem do que talvez um dia tenha sido verde, azul, agora só pó.

Parece que à sua volta se ouve uma estranha música, acordes soltos, prolongados, vindo da origem dos tempos. E quem lá pousa, quase voa. E eu não sei se uma pessoa se pode perder no espaço, por sobre a lua, e ficar infinitamente solto, a voar sem destino, ouvindo indefinidos acordes, iluminado por uma luz transparente, macia como um leite muito doce.

Não sei o que pensar de tudo isto, nem do que vejo, nem do que sei, nem do que penso. E acho que não faz mal porque me parece que tudo existe para não ser compreendido. E penso que tenho que aprender a ver, a sentir, a aceitar, a gostar -- mesmo sem compreender.

Agora eu estou aqui na minha janela, iluminada pela noite e por luar reservado e branco, e não vejo nuvens, se as há estão envoltas em escuridão, e se prenunciam tempestades eu não sei, e se prenunciam sombras atravessando o coração dos que vivem na escuridão, eles já não estranham. Por isso, é como se não houvesse nuvens. A noite cega-me, cega-nos.

Lá em baixo, nos bares da beira do rio, as mulheres decotadas e ruidosas talvez estejam encostadas umas às outras ou dobradas sobre a mesa de homens disponíveis. Não devem pensar nas águas escuras que correm em silêncio, encorajadas pelos mistérios que o céu esconde. Quando amanhecer, devem sair em silêncio, cansadas, esquecidas da lua, e eu acredito que elas ainda não saibam que, nas noites de luar, o rio se deita enebriado de amor, ignorando os gemidos que elas soltam quando fingem o prazer, e ouve apenas o doce murmúrio que desce da sua amada longínqua, sons muito antigos, acordes luminosos como a alvura enamorada daquela que, de longe, o olha com saudade. Mas o rio não se importa que elas não saibam, que ninguém saiba: ele gosta mais assim, de a ter, à lua, só para si, escondida em si, vivendo em si, o seu brilho deslizando mansamente na corrente dos seus dias. Para sempre. Para sempre.



Movemo-nos entre as noites e as dunas que nos cercam,
espectros de outro tempo e de outra vida;
mas aquelas mulheres juntaram-se a um canto, silenciosas,
pois esperam de nós alguma coisa
que não sabemos o que é:
uma palavra, um grito, um deslizar manso
sobre as águas, ou o mero esplendor do nosso fim
iluminado pelo mais solene dos luares?
As nuvens, sim, as indiferentes nuvens
anunciam um cruel fulgor,
que nós a tempo não saberemos ver

['Ao luar' (Manet, Luar sobre o porto de Bboulogne) de Luís Filipe Castro Mendes in 'Outro Ulisses regressa a casa']

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(Fotografias feitas agora mesmo, enquanto ouvia Catrin Finch e Seckou Keita )

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