Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

31 outubro, 2011

amo e logo odeio este poema: lisboa geme e o vento traz-nos açucenas

 
O que eu mais queria, meu amor, era saber que não te deixas ficar assim, de frente para o mar, triste dentro do teu corpo. Queria saber que o teu coração tão doce, que depositavas nas minhas mãos, não está agora envolto em noite. Tenho tanto receio, amor, que as lágrimas escorrram, lentas e pesadas, no teu pensamento.

Dizes que eu fazia de ti um homem melhor, dizes que eu te dava um motivo para viveres cada dia como se fosse sempre um dia novo, dizes que nada substitui a minha ausência. Ouço-te e as tuas palavras caem pesadas no mais fundo de mim, como uma pedra que se atira para dentro de um poço com água lá muito no fundo. Nada te digo, mas sabe, amor, é em ti que penso agora, é em ti que penso nas horas mortas em que o teu sorriso querido, a tua voz quente e macia, mais falta me faz.

Fomos devorados pelas circunstâncias, ficámos submersos pelas nossas vidas normalizadas e felizes. Mas, dentro de nós, as lágrimas escorrem, num coração tantas vezes invadido pelas trevas.



[Isolde chora, lamenta-se, sofre, luta, enternece-se e Waltraud Meier dá-lhe voz, sublime, perfeita. A seguir ao poema de um outro Ricardo desça um pouco mais, ouça por si, é um momento de extrema beleza]

De frente para Lisboa, o Tejo correndo com vagar: há horas assim


                             amo e logo odeio este poema:

                             lisboa geme e o vento traz-nos açucenas,
                             apodrecendo a cidade sob o rio interrompido
                             e nós, nocturnos, sendo devorados
                             pela rosa dos mundos.

                             odeio e logo amo este poema:

                             há horas assim,
                             em que, submerso na parte
                             mais triste do meu corpo,
                             e coração noitedentro,
                             deixo-me escorrer
                             as lágrimas mortas,
                             líquidas trevas transparentes.


                             ('VIII Poema' de Ricardo Gil Soeiro in Espera Vigilante)

MÚSICA NO GINJAL - Tristan und Isolde



ISOLDE LIEBESTOD


Tristan und Isolde - Richard Wagner 


Ópera em 3 actos, com libretto do próprio Wagner e baseada numa épica do séc XII, de Gottfried von Straßburg, foi estreada em Munich em 1865, sob direcção do notável Hans von Bülow.
A história começa durante a viagem de Isolde, que vai ao encontro do Rei Marke para com ele casar. Durante a travessia para Cornwall, os olhares de Tristan e de Isolde cruzam-se, em condições dramáticas e que inelutavelmente os vão ligar num fervoroso desejo que, através de inúmeras peripécias, envolvendo mortes e venenos que afinal eram elixires mágicos, acabará por conduzi-los a uma morte de paixões desencontradas.

Waltraud Meier surge, nesta interpretação do Liebestod, num surpreendente registo de mezzo-soprano, eminentemente wagneriana e com um efeito musical que deverá ser registado como referência.

         Mild und leise                         (sereno e gentil)        
         wie er lächelt                         (como ele sorri) 
         wie das Auge                         (como os olhos)
         hold er öffnet                         (ternamente se abrem)
         seht ihr's, Freunde?               (vêem, amigos?)
         Seht ihr's nicht?                     (não vêem?)

 

30 outubro, 2011

Desentrelaço o amor deslaçando o imprevisto e com ele me visto

    
Tapava a nudez, que tu tanto desejavas, com o meu pudor malicioso. Mas logo tu me forçavas ao impudor, despindo-me de todas as roupas, de toda a timidez. E com a luz que entrava pela janela e com o calor do teu corpo eu me via coberta, impudica e cheia de amor. E se as minhas mãos ainda tentavam cobrir algum recanto de pele, logo as tuas mãos audaciosas brincavam com o meu pudor, louvando a minha nudez, brindando ao nosso amor.



[Mais abaixo, depois da Maria Teresa Horta, encontrará a diva, a divina - um sublime lamento de amor na voz de Maria Callas]

Numa manhã de sol de outono, fotografando Lisboa, com o Tejo, manso, de permeio

                           Desentrelaço o amor
                           deslaçando o imprevisto
                           e se com ele me visto

                          de novo com as tuas mãos
                          torno a tecer
                          o que dispo

                          Entranço a luz no abraço
                          e o baraço no fulgor
                          desembaraço a nudez

                         tiro e uso o meu pudor
                         ponho o sol a iluminar
                         o corpo seja onde for


                        (Entrelaçar de Maria Teresa Horta in Poesia Reunida)

MÚSICA NO GINJAL - D. Carlo

 
TU CHE LE VANITÀ


Don Carlo - Giuseppe Verdi 


Verdi compôs 'Don Carlo' original com libretto em francês, depois adaptado para italiano, baseado num romance de Schiller e estreada em Paris. A ópera, em 5 actos, dramatiza a desgraça de Carlo, apaixonado por Elisabetta (de Valois) a filha de Henri II e de Caterina de Médici que lhe havia sido prometida e que viria a casar, por força de um tratado de paz e em terceiras núpcias, com seu pai, Filipe II.

Maria Callas, inicia a representaçao desta ária com um longo preâmbulo em que, sem uma palavra, acentua a desgraça moral de Elisabetta, cantada junto ao túmulo de Carlos. 
   
    Tu che le vanità conoscesti del mondo          (tu que conheceste as vaidades do mundo)
    e godi nell'avel il riposo profondo                  (e gozas no túmulo o repouso profundo)
    s'ancor si piange in cielo                               (se ainda se chora no céu)
    piangi sul mio dolore                                    (chora a minha dor)
    e porta il pianto mio                                     (e leva o meu choro)
    al trono del Signor                                        (ao trono do Senhor)
    il pianto mio                                                 (o meu choro)
    porta al trono del Signor                              (leva ao trono do Senhor)


  

27 outubro, 2011

Não volto, não. Isto acabou e foi de vez.

  
Não voltarei. Nem tu. Acabou e ambos sabemos que foi de vez. Mas foi um fogo extraordinário o que nos envolveu, não foi? Sabia-nos tão bem, éramos tão felizes, éramos tão livres na nossa efémera paixão.

Sabia-nos tão bem, dava-nos tamanha calma, sonhávamos tanto, andávamos alegres como jovens namorados. E eram tão bons os nossos beijos, beijos conquistados, beijos escondidos.

Já consigo falar disto, destas doces recordações, destas recordações que jamais esquecerei.



[E a seguir, depois de passar pelo poema, desça um pouco mais para ouvir uma outra mulher cantando Hija mia - conversa de mulheres, cântigos íntimos]

Em Cacilhas, junto ao Tejo, tapete azul, tão pertinho de Lisboa, a Bela


                            Não volto, não. Isto acabou e foi de vez.

                            Atleta de uma única vontade,
                            não quero mais prender-me novamente
                            no fumo de uma triste combustão
                            em que eu andei...

                            Sabe-me bem viver, - ser livre, enfim!

                            Já sei falar de coisas esquecidas.

                            Fui ontem ao cinema.

                            Sentei-me, calmo, à noite, num jardim.

                            Beijei uma mulher
                            sem perguntar quem era...

                            - Agora, dou por mim.


                           (Poema de António Botto in 'Poemas com cinema')

  

MÚSICA NO GINJAL - Canto Sefardita



CANTO SEFARDITA


Hija Mia 


Os cantares sefarditas são também cantos monódicos mas neste caso, são cantigas de mulher, intimistas e sensuais, que refletem 'coisas da vida'. Como é típico da música antiga, contam histórias de aviso ou de intuito moralizante ou trocista. Estes cantares denotam influências da música espanhola, italiana e occitana antiga e aparecem nesta peça em castelhano do séc XIV. 
   
  

26 outubro, 2011

Nada de bom fica de verdade e, então, a pena de viver não vale a pena revivê-la

  
Vem meu querido menino, vem, coloca a tua mãozinha no meu peito, sente o meu coração quase gasto.

Vem, meu menino lindo, dá-me a tua mãozinha branca, com refeguinhos fofos, quentinha, deixa-me enchê-la de beijinhos.

Vem, queridinho pequenino, prende-me a ti, prende-me à vida, não deixes que o meu destino se cumpra já, prende a minha mão.

Diz-me, meu menino mais lindo, diz-me que vale ainda a pena, diz-me que fique, que a vida é boa, diz-me que essa é a verdade.

Ou então brinca aqui ao meu lado, deixa-me ver-te, deixa reviver em ti toda a minha vida.



[Meu caro Leitor, se quer ouvir música, está no local certo. Desça um pouco mais - passará pela fotografia, a seguir pelo poema de pedro Tamen e, logo a seguir, estará com Martin Codax que integra o ciclo da música medieval]

Avó e neto no Ginjal, sobre o tejo, de frente para Lisboa


                    Atarda a mão que vai ao rés do colo
                    mexericar no veio da lembrança
                    de brancuras fatais, refegos curtos,
                    olores de tepidez humedecida
                    por suores impalpáveis mas palpados.
                    Atarda: que por mais
                    que a tua mão avance, nunca vence
                    o valor sopesado em loucas e supostas
                    locubrações, destinos. Atarda:
                    nada de bom fica de verdade e, então,
                    a pena de viver
                    não vale a pena revivê-la.


                   (Poema de Pedro Tamen in Memória Indescritível)

   

MÚSICA NO GINJAL - Martin Codax


MARTIN CODAX


Non é gran cousa 


Martin Codax -além de nome deste agrupamento- foi um jogral galego de finais do séc XIII, de quem pouco se sabe mas de quem foi possível recuperar sete cantigas d'amigo - Ondas do mar de Vigo, Mandad'ei comigo ca ven meu amigo, Mia yrmana fremosa treides comigo, Ay Deus se sab'ora meu amado, Quantas sabedes amar amigo, En o sagrad' e Vigo e Ay ondas que eu vin veer - grafadas num valiosíssimo pergaminho encontrado por acaso a forrar a capa de um livro antigo, o Pergaminho de Vindel. 


25 outubro, 2011

Não retomo nos teus braços o calor da tua boca


Gostava tanto de me aninhar nos teus braços, gostava tanto de sentir a tua boca quente e macia.

Gostava tanto das nossas longas conversas ou dos silêncios em que nos olhávamos amorosamente.

Mas sabíamos que um dia terminaria a nossa breve e doce história. Onde existia uma proximidade absoluta, existe agora uma longa e densa ausência. Cedemos ambos, cedemos o nosso terno afecto. Mas não, não existe qualquer rasto de medo. Ambos sabemos que outra coisa não seria possível. Foi com civilizado entendimento que nos despedimos.

Mas, meu amor, não te esqueças nunca que vives como te lembro - puro, bom, meigo, doce, querido - bem dentro de mim, naquele recanto quentinho em que não se sentem as distâncias.



[Depois do Exercício da Maria Teresa Horta, desça um pouco mais, são lindos os cânticos de Santa Maria]



                                       Não retomo nos teus
                                       braços
                                       o calor da tua boca

                                       nem retomo do silêncio
                                       as palavras que se
                                       escoam

                                       Mas se na tua distância
                                       existe um entendimento
                                       na minha lenta cedência
                                       existe um rasto de medo


                                      ('Exercício' de Maria Teresa Horta in Poesia Reunida)

 

MÚSICAS NO GINJAL - Cantigas de Sta. Maria



CANTIGAS DE STA. MARIA


Por que

Afonso X, o Sábio, foi avô de D. Dinis de Portugal o qual foi também, por sua vez, um 'rei sábio' e poeta, além de ter sido ele que estabeleceu as primeiras normas de definição de um Estado moderno no território -Reino de Portugal- que vinha a ser demarcado pela conquista, desde o séc XII. De ambos são conhecidas algumas 'cantigas', uma forma de música de jogral e de trovador cujas variações dependiam do tipo ou do teor da narrativa. Não é clara a dimensão da autoria de Afonso X em Cantigas de Sta Maria; por outro lado, está bem identificada a autoria das sete cantigas de D Dinis - Poys que vos Deus, amigo, quer guisar; A tal estado me adusse, senhor; O que vos nunca cuidei a dizer; Que mui grão prazer que eu hei, senhor; Senhor fremosa, no posso eu osmar; Não sei como me salva a minha senhor; Quis bem amigos, e quero e querrei - que foram encontradas no Pergaminho Sharrer, do Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
  

24 outubro, 2011

Toda a cidade se destina à noite e eu amo-te

 
Há dias assim, em que vivemos em função do nosso amor. Adormecemos a pensar na pessoa que amamos, revivemos momentos, sorrimos às doces recordações; no dia seguinte levantamo-nos a pensar no nosso amor, vestimo-nos, perfumamo-nos, preparamo-nos para seduzir, tudo pelo nosso amor. Vamos no caminho a antecipar o momento em que nos encontraremos e todo o tempo é apenas um longo compasso de espera até que conseguimos estar com o nosso amor. Então ficamos felizes por nos revermos e fazemos planos para prolongarmos o tempo juntos, imaginamos cenários em que vamos conseguir estar juntos, eu imagino-nos a passear num jardim, tu imaginas coisas mais prosaicas, e sorrimos e imaginamos, fazendo durar os doces momentos em que podemos estar perto um do outro, aspirar o cheirinho morno que se desprende dos corpos. Sonhamos com a noite que vamos ter só para nós dois, a noite fantástica dos nossos sonhos.

E a noite nunca mais chega. 

(Vou ser realista: a nossa noite, meu terno e saudoso amor, nunca chegou, foi-nos roubada. Mas sempre existirá, sonhada, no mais fundo do meu coração)



[A seguir, desça comigo até aos claustros que esta semana erigi para os meus queridos amigos do Ginjal e Lisboa. Esta é a semana de todos os recolhimentos]

Gruas num cais em Lisboa

                           Gruas no cais descarregam mercadorias e eu amo-te.
                           Homens isolados caminham nas avenidas e eu amo-te.
                           Silêncios eléctricos faíscam dentro das máquinas e eu amo-te.
                           Destruição contra o caos, destruição contra o caos e eu amo-te.
                           Reflexos de corpos desfiguram-se nas montras e eu amo-te.
                           Envelhecem anos no esquecimento dos armazéns e eu amo-te.
                           Toda a cidade se destina à noite e eu amo-te.


                          (Poema de José Luís Peixoto in Gaveta de Papéis)
  

MÚSICA NO GINJAL - Hildegard von Bingen

  

HILDEGARD VON BINGEN


Laus Trinitatti 

Hildegard von Bingen nasceu em 1098 e foi decidido pela sua nobre famíla que iria dedicar-se ao serviço divino. Assim, ainda muito nova, foi entregue a uma beata anacoreta, residente num anexo de um mosteiro de obediência beneditina e que ficou encarregada da sua iniciação religiosa; sairia deste retiro para fundar o seu próprio convento, perto de Bingen am Rhein, onde desenvolveu grande parte do seu trabalho, do qual transparece a experiência e o saber conseguidos em inúmeras viagens e muitas leituras. Ficou conhecida pela 'Sibila do Reno', devido não só aos escritos teológicos e descritivos das visões que tinha, como também pelo prestígio que adquiriu como conselheira de bispos e de reis numa época em que raramente as mulheres sabiam ler. Foi cientista, teóloga, pintora, poeta e compositora e morreu com 81 anos, deixando vasta obra de natureza mística e em todos aqueles outros domínios.

23 outubro, 2011

Perder-me-ei para sempre em qualquer sítio fora de qualquer sítio

 
Mal sei de ti. Chegam-me notícias que referem a tua apatia, dizem-me que não tens a alegria de antes. Se um dia te voltar a ver, reconhecer-te-ei? Serás o mesmo que ficou lá atrás, sorrindo na minha memória?

Imagino-te na tua rotina diárias, pontual e indiferente, ocupado e vazio. Perdemo-nos um do outro, mas perdemo-nos também de nós próprios. Aqueles que sorriam, felizes, adolescentes, um rapaz e a sua menina, ficaram lá para trás, nos dias em que a vida tinha um sentido.

Andamos agora aqui, eficientes e presentes, mas só eu e tu sabemos que a ausência está sempre presente dentro de nós. Não somos já os mesmos. É pois melhor que não nos reencontremos - não nos reconheceríamos.



[Depois, venha comigo, vamos recolher-nos. Apetece-me a frescura e a solidão de uns claustros que me acolham. Começa hoje aqui neste nosso ponto de encontro o ciclo 5 Medievais e não podia começar melhor - Canto Gregoriano. Desçamos a seguir ao poema]



                            Ouves os meus passos nas escadas?
                            Quando eu bater à porta
                            não me reconheceremos.

                            Voltarei de um dia de trabalho,
                            subirei as escadas
                            e perder-me-ei para sempre
                            em qualquer sítio fora de qualquer sítio.

                            Não foi o caminho de casa que perdi?
                            Não ficou alguém em qualquer sítio,
                            uma sombra passando diante de nós,
                            e principalmente fora de nós?

                           Agora quem sente
                           isto fora de mim,
                           quem é esse ausente?


                          ('Uma sombra' de Manuel António Pina in 'Poesia, saudade da prosa')

  

MÚSICA NO GINJAL - Canto Gregoriano

 
CANTO GREGORIANO 
    

Victime Paschali Laudes

Canto Gregoriano é uma designação que se deve ao apoio e promoção dados por Gregório I à música sacra de origem pagã, que existiria sob a forma de hinos e antífonas na Roma antiga e que será escolhida por S. Ambrósio, no séc IV, para reforço da liturgia cristã; será todavia referência imprecisa, vista a escassez de documentos anteriores ao séc IX, época em que terá atingido o apogeu do seu desenvolvimento. É escrito em latim, em trechos de estrutura monódica e na forma de 'canto chão', podendo ser interpretado em coro ou a solo e exclusivamente por vozes masculinas a capella, vindo a ser, entre os sécs VIII e X, progressivamente acompanhado por música de orgão e tendo mais recentemente, já na modernidade, passado a incluir vozes femininas.
  

20 outubro, 2011

Deixa o sol entrar pela janela do amor enclausurado

  
Estava tanto sol, lembras-te? O sol brilhava sobre mim e tu sorrias-me. Outra vez eu estava junto a ti e tu olhavas-me, quieto, sorrindo. 'O que é?', perguntei-te e tu disseste que a luz da janela incidia em mim e que era uma luz que me rodeava e eu sorri, porque, naquele momento, senti que uma luz qualquer me iluminava mas talvez fosse apenas o teu sorriso que me iluminava.

Outra vez estavamos juntos, ao lado um do outro, o rio lá em baixo, ao fundo, e o sol sobre nós, e eu sentia que o sol nos abençoava e tu sorrias, amorosos, apaixonado e eu sorria, feliz, quieta. Bastava-me o sol e o teu sorriso ambos pousados sobre mim para me sentir invadida por uma paz imensa, uma infinita confiança, um amor tranquilo.

Lembras-te? Lembras-te do sol e do nosso amor?

Sorri uma vez mais, sorri para mim, sorri, meu terno amor. E lembra-te do que fazíamos quando deixavamos o sol do lado de fora e trazíamos o amor para dentro de portas. 

À beira Tejo, no Cais do Sodré


Deixa
o sol
entrar
pela janela
do amor
enclausurado

Deixa
o amor
e o sol
verem-se
muitas vezes

Deixa-
-os
virem-
-se
à sua livre
vontade


(Poema de Rui Caeiro in 'O quarto azul e outros poemas')

MÚSICA NO GINJAL - Lucília do Carmo e Fernando Farinha

  
É o sentir do fado da vida que a D. Lucília e o Farinha aqui trazem, num despique mais conciso mas não menor que as cantorias de Xabregas .



Desgarrada

  

19 outubro, 2011

De nós apenas fique a extrema glória de termos sido castos e corruptos!

 
Tantas, tantas vezes subi e desci esta rua, a mais bela e luminosa de todas as ruas de Lisboa. Entrei em cada uma das suas lojas, detive-me nas montras, maravilhei-me com os antiquários, com as louças de Sant'Ana, deliciei-me com o rio, tão lindo, tão lindo. Tantas vezes sozinha, tantas vezes de mão dada, abraçada.

Tantas vezes ali chegávamos, tantas vezes dali partimos.

Pisava esta rua e já me sentia apaixonada, olhava os barcos no rio e sentia-me enlevada. Era pecado? Nunca senti que o fosse. Embora tivessemos que nos recatar, sentia-me tão livre, tão livre.

Ainda hoje, nenhuma outra rua como esta me transporta para ambientes mágicos de amor e ternura. Esta rua transporta-me para longe, ando aqui nesta bela Rua do Alecrim (só o nome da rua já me agrada), nesta rua onde podemos ver o grande Eça, e sinto que não sou de cá, tudo me é permitido porque não sou de cá e, no entanto, aqui tenho tanto orgulho de ser portuguesa.

Vamos outra vez descer a rua, amor? Vamos?

Quando aqui passo, meu amor, transporto comigo os fios de aurora que recolhi no rio. Com eles enfeitarei os teus sonhos durante a noite. Vem amor, vem ver o rio.


[A seguir, depois do poema, desça comigo e vamos até àquela velha viela ali no Ginjal em que Maria Ana Bobone enche a beira do rio com a sua belíssima voz]


Casal sobe a Rua do Alecrim, o Tejo já ali



De nós apenas fique a extrema glória
de termos sido castos e corruptos!
E que se volva eterna a transitória
e luminosa cor destes minutos!

Que o nosso amor seja maior que nós,
secreto e audacioso como um rio!
- Que tenha, como nós, a nossa voz...
Mas que o seu timbre seja menos frio.


('Inscrição sobre o rio' de David Mourão-Ferreira in 'A arte poética')

   

MÚSICA NO GINJAL - Maria Ana Bobone

  
Também Maria Ana nos mostra que o fado não se ensina se a voz é bela e aprendida, assim foi, de sempre, a alma da sua cantiga.


Fado da Sina

  

18 outubro, 2011

Nada sei de ti, dos múltiplos tus em que te desdobras

  
Dizes que não me conheces completamente, que me desdobro, que sou eu e muitas outras. Dizes que mudo, de dia para dia, ou várias vezes no mesmo dia. Não me preocupo, até gosto. É mesmo como dizes, sou eu e eu e outra eu e outras vezes outra eu e, no entanto, sempre eu. Tenho muitas idades, muitos gostos, muitas identidades, mas todas unas. E tu olhas-me e dizes que nunca sabes quem eu sou. Mas, apesar disso, é sempre comigo que falas, é sempre contigo que eu conto, é a ti, meu amor, que eu regresso, abrigo onde qualquer uma de mim encontra o calor da nossa casa. Meu amor cheio de força, meu amor que me seguras com a tua força.



[Depois da Mãe Índia, desça um pouco mais, abaixo das múltiplas vestes encontrará uma cinta vermelha, a da Ana Sofia Varela]

Nas docas de Belém, uma agradável tarde de outono

                                  Nada sei de ti,
                                  dos múltiplos tus em que te desdobras,
                                  em que sobrevives e renasces
                                  cada dia.

                                  E não saber é a minha única força face a ti.


                                  ('Mãe Índia' de Luís Filipe Castro Mendes in Lendas da Índia)

 

MÚSICA NO GINJAL - Ana Sofia Varela

 
... mas nem por isso se fecharam as portas de toda a gente e linda se mostra a Sofia Varela e assim o canta, lindamente.



Cinta vermelha

  

Que posso eu fazer senão beber-te os olhos enquanto a noite não cessa de crescer?

    
Os teus cabelos estão quase todos brancos? Que me importa isso, amor? A tua carne não tem a elasticidade de antes? Que tem isso, amor?

Queres encostar-te a mim, amor? Está bem, deita a tua cabaça no meu ombro, deita.

Mas que nostalgia é essa, amor? Que interessa que os anos passem por nós? Tens rugas? E então? Já não vês bem? Mas, amor, que tem isso?

Olha, abraça-me, abraça-te a mim, sente o meu calor, sente o meu perfume, sente a minha pele. O tempo está entre nós dois, amor, o tempo está aqui, entre nós, é nosso, aprisionei-o para nós dois. Descansa, amor, que não o vou deixar fugir.

Não tenhas medo, não tenhas, estarei aqui sempre contigo, iremos juntos por este rio acima, voaremos juntos, subiremos junto todas as escadarias, sempre juntos. Quando chegar o momento iremos os dois ver o mar, as nuvens, a luz, ver o sol que nos aquecerá sempre o coração.

Beija-me, amor, e vamos ficar aqui os dois, quietinhos, ao sol, abraçados, abraçados para o resto da vida.

Nada receies, estarei contigo agora, e ao entardecer, e estarei contigo de noite. E, depois dos fantasmas da noite, amor, chegará fresca e luminosa a nossa madrugada.



[Depois do belíssimo nocturno a duas vozes de Eugénio, desça um pouco mais que hoje o dia é de escolhas maiores. Com a sua bela e nostálgica voz, Teresa Tarouca traz-nos um céu carregado de cinzento - coisa que apetece nestes dias de calor]

Amor, carinho, cumplicidade à beira Tejo

- Que posso eu fazer
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?

- Repara como sou jovem,
como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
poisou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação...

- Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre de outra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.

- Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que os meus dedos têm
para colher na noite.

- Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos
e um rumor de água
vem no vento...

- Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhã és tu ainda.

- Cala-te as palavras doem.
Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Amo-te.
Amo-te para que subas comigo
á mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar.



('Nocturno a duas vozes' belíssimo, belíssimo poema de Eugénio de Andrade in Antologia Breve')

  

17 outubro, 2011

MÚSICA NO GINJAL - Teresa Tarouca

 
... e é tanto coisa de dentro, o fado, que mesmo vindo do povo se meteu no paço, de onde Teresa Tarouca nos traz a saudade do tempo da cantiga ouvida na fidalguia



                                                        Cai chuva do céu cinzento

 

o riso quase bastante quase músculo florido deste instante quase novo

  
Dizias-me que eu parecia uma mulher bem mais nova quando caminhava para ti, sorrindo, um ligeiro golpe de aragem no vestido.

Tinha então os olhos quase secos, as lágrimas ainda quase distantes e parecia que caminhava num sonho.

Os cabelos soltos, voavam dourados pelo sol e tu, de longe, olhavas-me e sorrias. Sabias que era para ti que eu sorria, que eu andava, que eu vestia aquele vestido quase branco.

Era de tarde, estava calor, e eu sorria, quase nova, quase feliz, quase tua.

E agora, passado tanto tempo, é ainda para ti que eu sorrio quando ando ao sol, com um vestido quase branco, quase feliz de ainda te ter dentro do meu coração, meu amor quase meu.



 
[Vamos esperar que anoiteça. Depois desça comigo ali até à beira do rio, até a um recanto de uma velha casa onde se canta o fado. Depois do poema, é logo ali]

No Ginjal, mesmo sobre o Tejo


                        Uma mulher quase nova
                        com um vestido quase branco
                        numa tarde quase clara
                        com os olhos quase secos

                        vem e quase estende os dedos
                        ao sonho quase possí
vel
                        quase fresca se liberta
                        do desespero quase morto

                       
                        quase harmónica corrida
                        enche o espaço quase alegre
                        de cabelos quase soltos
                        transparente quase solta

                        o riso quase bastante
                        quase mú
sculo florido
                        deste instante quase novo
                        quase vivo quase agora



('Uma mulher quase nova' de Mário Dionísio in '366 poemas que falam de amor')

 

MÚSICA NO GINJAL - Vicente da Câmara

Vicente da Câmara é pai de filhos fadistas que o são por ter ouvido mas a quem nada foi ensinado; o fado canta-se mesmo sem voz, é coisa da alma e que vem de antigamente...



Fado Lopes

16 outubro, 2011

MÚSICA NO GINJAL - 5 Fados

 Fechado o ciclo do Jazz com 5 Jazz Bands, vamos agora dar agora palco a 5 fados, 5 fadistas.


    Vicente da Câmara é pai de filhos fadistas
    que o são por ter ouvido mas a quem nada
    foi ensinado; o fado canta-se mesmo sem voz,
    é coisa da alma e que vem de antigamente
    e é tanto coisa de dentro, o fado, que mesmo vindo do povo
    se meteu no paço, de onde Teresa Tarouca nos traz a saudade
    do tempo da cantiga ouvida na fidalguia; mas nem por isso se fecharam
    portas de toda a gente e linda se mostra a Sofia Varela e assim o canta, lindamente.
    Também Maria Ana nos mostra que o fado não se ensina e se a voz é bela
    e aprendida, assim foi, de sempre, a alma da sua cantiga.
    É o sentir do fado da vida o que a D. Lucília e o Farinha aqui trazem,
    num despique mais conciso mas não menor que as cantorias de Xabregas.


Silêncio. Vai cantar-se o fado.

13 outubro, 2011

Quando toda a alegria for clandestina, alguém te dobrará em cada esquina?

  
Já não sei de ti. Já não sei se quando olhas as outras mulheres, mentalmente as comparas comigo. Dizias que lhes analisavas o rosto, o riso, a voz e que nenhuma era como eu. Dizias isso, voz baixinha, uma confissão, sorrias devagarinho, e eu acreditava e sorria: tontinho. E ficava enternecida. Dizias que, se ouvias alguém falar de mim, escutavas com atenção e ficavas todo orgulhoso se diziam bem, e eu ficava contente, acreditava, tu sorrias, um menino que confessava as suas fraquezas, uma menina que se sentia amada.

Agora que estás longe e que já não podes olhar para mim, ainda olhas as outras mulheres, comparando-as comigo? Ainda ficas à espera que alguém te traga notícias de mim? Ainda te lembras de mim?

Ouve, deixa-me contar-te: fazes-me falta para me dizeres tudo isso, faz-me falta a tua voz baixinha, sorridente, todo ternura, a tua voz que guardava uma alegria clandestina, faz-me falta a tua permanente vontade de me dobrar atrás de uma parede, atrás de uma porta, numa qualquer esquina.



[Apetece-me ir até ali abaixo, apetece-me ouvir boa música, desça comigo, vamos.]

Homem que se ausentou de si mesmo, ali, rente ao Tejo

                      Quando eu um dia decisivamente voltar a face
                      daquelas coisas que só de perfil contemplei
                      quem procurará nelas as linhas do teu rosto?
                      Quem dará o teu nome a todas as ruas
                      que encontrar no coração e na cidade?
                      Quem te porá como fruto nas árvores ou como paisagem
                      no brilho de olhos lavados nas quatro estações?
                      Quando toda a alegria for clandestina
                      alguém te dobrará em cada esquina?



('Quanto morre um homem' de Ruy Belo, cidadão de longe e de ninguém, in Antologia Poética)

  

MÚSICA NO GINJAL : Benny Goodman Orchestra


Estou a escrever num momento em que ouço na televisão medidas que me deixam aterrada. Não sei o que escrever aqui face a isto. Olhe, meu amigo ou minha amiga, vamos ouvir música, vamos cantar que, quem canta, seus males espanta! O que lhe posso garantir é que a música é da boa e que a animação é contagiante. Acho que chega.



BENNY GOODMAN ORCHESTRA


Benny Goodman
cria a sua primeira orquestra em 1934 e numa sua biografia autorizada, pode ler-se
"Musicians had begun working their way north from New Orleans about the turn of the century, and by the early 1920s giants like "Jellyroll" Morton, Sidney Bechet, "King" Oliver and Louis Armstrong were playing in Chicago.
Benny Goodman was only 10 when he first picked up a clarinet and at 14 he was in a band that featured the legendary
Bix Beiderbecke. By the time he was 16 he and was asked to join a California-based band led by another Chicago boy,
Ben Pollack and when, in 1934, he heard that Billy Rose needed a band for his new theatre restaurant, the Music Hall,
he got together a group of musicians who shared his enthusiasm for jazz and got the job."

One o'clock jump é um original de Count Baise, em estilo 'riff'
-ostinato- e que constituía o tema de apresentação e fecho dos
concertos da sua orquestra.

12 outubro, 2011

Fora do teu sorriso a minha vida parecia a vida de outra pessoa

      
Sabes que o teu sorriso sempre foi alimento para o meu coração. Ver-te chegar a sorrir. Olhares para mim e depois sorrires. Olhares para mim de longe e, (nada) disfarçadamente, piscares o olho e, maroto, sorrires. Sentares-te à minha frente e tentadoramente sorrires. O teu sorriso. Queria que me sorrisses sempre. Fico tranquila se me sorris, sinto-me amada se me sorris. Lembras-te de como sempre me fizeste sorrir? Nunca o esqueço. Jamais esquecerei cada um dos teus sorrisos. Fecho os olhos e vejo-te a sorrires para mim. Meu querido rapaz. Sorri uma vez mais para a tua menina, sorri. Tenho um jeito manso que é só meu, tu sabes. Então com o meu jeitinho manso peço-te, meu rapaz: sorri que o teu sorriso aquece o meu coração, sorri, meu amor, sorri de mansinho, aqui bem juntinho ao meu coração.



[E agora vamos ouvir o Manuel António Pina e depois vamos sorrir de mansinho com o Manhattan Jazz Quartet]

O Tejo sempre presente, embora o sorriso esteja ausente


                                 Nunca tinha caído
                                 de tamanha altura em mim
                                 antes de ter subido
                                 às alturas do teu sorriso.

                                 Regressava do teu sorriso
                                 como de uma súbita ausência
                                 ou como se tivesse lá ficado
                                 e outro é que tivesse regressado.

                                 Fora do teu sorriso
                                 a minha vida parecia
                                 a vida de outra pessoa
                                 que fora de mim a vivia.
                                 E a que eu regressava lentamente
                                 como se antes do teu sorriso
                                 alguém (eu provavelmente)
                                 nunca tivesse existido.


 ('Café Orfeu' de Manuel António Pina in 'Algo parecido com isto, da mesma substância')


.

MÚSICA NO GINJAL: Manhattan Jazz Quintet


Let us swing, ladies and gentlemen, Moanin's on the air!

Directamente de Manhattan para o Ginjal, para festejar connosco a poesia, os sítios de beleza e frescura, para festejar sobretudo a boa música ouvida em boa companhia, nesta fantástica noite em que um luminoso  luar se reflecte generosamente sobre o Tejo - a vossa atenção, por favor: é o Manhattan Jazz Quintet.

Enjoy!


MANHATTAN JAZZ QUINTET


Manhattan Jazz Quintet
é um agrupamento de swing que pouco terá tocado em Manhattan,
tendo a sua actividade começado por sugestão de uma revista japonesa
que deu origem às primeiras gravações, com etiqueta também japonesa.
Além desta pecularidade há uma outra; mesmo depois de se terem
separado, os músicos do MJQ reunem-se ocasionalmente para concertos e
é já com este perfil que passam a gravar para a Sweet Basil, agora sim
e finalmente, em Manhattan.

Moanin' é uma obra de referência que deu título à primeira gravação
dos Art Blakey Jazz Messengers (1958) e que aparece aqui reposta
num registo 'livre', a sublinhar o caracter sui generis deste quinteto.
 

11 outubro, 2011

Sobre o teu corpo caio


Que calor está, meu amor. Estendo-me e o sol chega-se a mim sem pudor, toca-me, aperta-me, entra no meu corpo. Que calor este, meu amor. Desato o cabelo, deixo que se espalhe no chão em que me deito. E o calor vem, despudorado, meu amor, cai sobre o meu corpo, molha-me o cabelo, molha-me o corpo. Que impúdico, meu amor. Mergulho então, na água, no calor, em ti meu amor. Só depois penso que não devia. Tarde demais.



[Noites quentes de um verão em outono - apenas se está bem junto ao rio. Ouçamos a voz quente de Eugénio e, então, desçamos até ao Ginjal. Take five, pois claro, pelo Dave Brubeck Quartet.]

Numa bela tarde de um outono que parece verão, esplanada de rua à beira Tejo


                 Sobre o teu corpo caio -
                 daquele modo que o verão tem de espalhar os cabelos
                 na água esparsa dos dias
                 e faz das peonias uma chuva de oiro
                 ou a mais incestuosa das carícias.


                 ('Sobre um corpo' de Eugénio de Andrade in Antologia Breve)

MÚSICA NO GINJAL: Dave Brubeck Quartet

  
Todos conhecemos esta música, é uma música que nos acalma, que nos bem dispõe. Take five, my friend!



DAVE BRUBECK QUARTET


Dave Brubeck
foi pianista e dedicou-se à música de jazz desde muito cedo
tendo depois mantido a actividade do seu famoso Quarteto durante
cerca de 17 anos e é considerado um percursor do chamado Cool Jazz
da West Coast.

Take Five, de  Paul Desmond, é uma composição do memorável album
Time Out, de 1959. 

10 outubro, 2011

Todo o poema é sobre aquele que sobre ele escreve

 
Estou a falar do poema ou estou a falar de mim?

Falo do azul de que me rodeio, falo das asas que voam sobre os grandes espaços, ou estou a falar de mim?

Falo do calor que me afaga, falo do céu que me envolve, dos veleiros que levam o meu pensamento e estou, sim, a falar de mim, estou mesmo.

Falo da paixão do poema, do teu olhar que me abraça em amor, falo das palavras do poema e falo das tuas palavras, falo da alegria do poema e falo do sorriso com que me olhas. Palavras. Eu e palavras.

Onde é que as palavras se desprendem de mim? Ou nunca se desprendem? Estão aqui a passar para o écran mas ainda as tenho presas a mim, posso recolhê-las, posso dispô-las de outra forma.

Sou eu que aqui estou.  Sempre.



[Vamos ouvir a Ana Luísa Amaral que o diz melhor, ah muito melhor, que eu e depois, faça-me companhia, está bem? Vamos lá abaixo, hoje na Música no Ginjal it's Summertime, my friend]

No Ginjal, junto ao Tejo, Lisboa do outro lado

                     Mesmo que fale de sol e de montanhas,
                     mesmo que cante os ínfimos espaços
                     ou as grandes verdades,
                     todo o poema
                     é sobre aquele
                     que sobre ele escreve

                     Quando os traços de si
                     parecem excluir-se das palavras,
                     mesmo assim é a si que se descreve
                     ao escrever-se no texto
                     que é excisão de si

                     Todo o poema
                     é um estado de paixão
                     cortejando o reflexo
                     daquele que o criou

                     Todo o poema
                     é sobre aquele
                     que sobre ele escreve
                     e assim se ama de forma desmedida,
                     à medida do verso onde a si se contempla
                     e em vertigem
                     se afoga


                    ('Psicanálise da escrita' de Ana Luísa Amaral in Vozes)

MÚSICA NO GINJAL - Bill Evans Trio

  
A leveza de uma composição intemporal, a suavidade de uma interpretação perfeita - com este tempo de calor, nada mais apropriado que este Summertime.



THE BILL EVANS TRIO


Bill Evans
aparece 'na Village', no início dos anos 60, a tocar com LaFaro e Paul Motian;
entre essa data e 1978, data da constituição do seu último trio, surge este
Summertime, de 1965, agora com Chuck Israels e Larry Bunker.
Evans morreu cedo, em 1980, mas a sua presença mantem-se viva, como músico
arrojado mas que não abandonou nunca uma atitude de exigência e rigor
relativa à estrutura da composição ou ao legado histórico do jazz.

Summertime é uma ária de Porgy and Bess (1935), de Georges Gershwin,
com co-autoria interrogada de Heyward, o autor do libretto, e Ira Gerswhin.

09 outubro, 2011

A minha vida é assim - verde, sentada. Tocando para baixo as raízes da eternidade.


Estou aqui, sentada, tranquila à beira deste rio que tanto amo. As minhas raízes estão aqui, na beira da água, dentro da água. Alimento-me da maresia, da aragem, do azul, do espaço. Por isso os meus pensamentos mergulham nas águas, voam nas asas das grandes aves.

Estou aqui e espero, espero. O tempo espera também. Desfruto lentamente os sentimentos, recordo as doces recordações, sonho com doces futuros.

Penso em sorrisos, penso em palavras de amor, penso num olhar que me afaga, penso em mãos que me percorrem com vagar, penso em mãos sempre disponíveis.

Os homens têm mais pressa, têm uma voracidade impaciente. Mas sossegam quando aprendem que o amor é bom quando há tempo para vivê-lo. É a um homem assim que eu espero quando me sento aqui, ao sol, olhando o azul.

Eu, talvez pela idade que tenho, sei que o tempo espera por aqueles que o sabem usar, por aqueles que deixam que as suas raízes mergulhem fundo no mar e as suas asas se levantam para voar livres pelos largos espaços, espera pelos amantes que sabem que os beijos são eternos, que as doces lembranças são eternas.


[A seguir ao Herberto, vamos andando os dois, está bem? Vamos até ali abaixo que há jazz, a fantástica Eureka Brass Band está à nossa espera para começar]

Mulher sentada à beira do Tejo, no Cais do Sodré


           A minha idade é assim - verde, sentada.
           Tocando para baixo as raízes da eternidade.
           Um grande número de meses sem muitas saídas,
           soando
           estreitos sinos, mudando em cores mergulhadas.
           A minha idade espera, enquanto abre
           os seus cndeeiros. Idade
           de uma voracidade masculina.
           Cega.
           Parada.
           Algumas mãos fixam-se à sua volta.

          
           (Excerto de 'Ou o poema contínuo' de Herberto Helder)

MÚSICA NO GINJAL - Eureka Brass Band


Inicia-se hoje na Música no Ginjal o ciclo do Jazz. São 5 Jazz Bands.

É a alegria da música, a festa, o improviso, o prazer de inundar de ritmo quem está por perto. É a representação, é a joie de vivre.

Começamos com a Eureka Brass Band e imaginemo-los a actuar aqui no Ginjal, numa noite iluminada pelo luar, junto ao Tejo, tendo, como cenário, Lisboa iluminada - e eles, animados, tocando para nós, para mim, para si. Já imaginou?

Então, aceite este convite: hoje esta é para si, deixe-se ir. Enjoy!


 EUREKA BRASS BAND


Eureka Brass Band
foi assim designada por Willie Parker e tocou com regularidade desde 1920,
data em que foi fundada por willie Wilson, até 1975, data em que deixou de
actuar como conjunto permanente.
 Actualmente aparece apenas, com formações
ad-hoc e em intervenções ocasionais de iniciativa de Percy Humphrey, trompetista
e seu último dirigente.

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PS: E porque este domingo o Ginjal faz 1 ano, há festa. Desça um pouco mais que Louis Armstrong tem uma surpresinha reservada para si, meu Caro Leitor. Venha.