Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 setembro, 2012

Tu és homem e és mulher sobre o meu corpo


Voa o teu amor à minha volta e as tuas palavras de amor entram na minha respiração e eu sei que depois deslizam nas minhas artérias e vão chegar, aladas, ao meu coração. E encosto-me a ti para sentir o calor do teu corpo, e sou uma gata enamorada que se encosta ao seu dono, que te cheira, que te lambe e tu abraças-me e aqueces-me e não é só o meu corpo que fica quente, é também o meu coração que se abre com o calor dos teus beijos.

Vamos junto ao rio, abraçados, enleados, e não reparamos nos veleiros, nos cais, nas casas de cor esmaecida, nem nos lembramos de ir nas asas das gaivotas, vamos apenas junto ao rio e, a cada instante, o meu corpo procura o teu corpo, meu amo e senhor, e tu procuras o meu e já não sei se este braço que me abraça é meu ou teu e se o coração que bate no meu peito é meu ou teu.

E dizes-me devagarinho, baixinho, que, por mim, atravessarás sem medo qualquer tempestade e que sempre vais chegar e nunca partir e toda eu toda estremeço e me arrepio e peço que me digas mais palavras assim junto ao ouvido, encostado e apaixonado. E sei que mais logo ainda terei o teu cheiro e o teu sabor em mim, e eu não sei se és anjo, se és nuvem, se és rio, se és apenas o meu homem e eu, que tu abraças e beijas, a tua dona. 

Mas faz sentido falar de quem é dono de quem quando o amor é doce e é invisível enleio? Rimo-nos. Faz sentido, tudo faz sentido. Tu dono de mim, eu dona de ti, eu e tu donos do mundo, eu e tu inventando conversas sem sentido apenas para escutarmos o amor feito de palavras, estas ou outras quaisquer.



[Chega hoje ao fim a semana de Boccherini e a música de hoje, já abaixo do poema, é linda. E esse poema, um belo poema de amor, a seguir ao casal de namorados é da autoria de uma mulher corajosa e inteira, Maria Teresa Horta]


No Ginjal, amor rente ao Tejo



                              Tu és homem e és mulher
                              sobre o meu corpo
                              és mar e és rio ao mesmo tempo

                              és tu e eu misturando o vento
                              velejando a tempestade
                              sem ter medo

                              Tu és calma e turbilhão
                               nos meus sentidos
                               és arcanjo e demónio que domina

                               És aquele que fica
                               e que parte
                               que voa no prazer que não termina


                               ['Simultâneo' de Maria Teresa Horta in Poesia Reunida]

27 setembro, 2012

Lembro-me de quartos onde estivemos


Um tempo houve em que os nossos corpos pediam uma cama que não tínhamos. Procurávamos, então, a intimidade nos locais mais improváveis. Os corpos sentiam uma urgência que a cabeça não cerceava e festejávamos o amor louco sob a lua, sob o sol, sob as árvores, sob as ombreiras, sob impensáveis tectos. 

Até que arranjámos abrigo. Era abrigo alheio, era uma cama que não era a nossa. Era um refúgio especial. Lá ouvíamos Simon & Garfunkel e eu dançava ao som de Janis Joplin e éramos tão inacreditavelmente inocentes e loucos. Ignorávamos os riscos, divertíamo-nos com a beleza dos nossos sentimentos, apaixonados carinhosos, apaixonados felizes e festivos, apaixonados cheios de esperança, com a vida inteira pela frente, apaixonados inseparáveis, até hoje inseparáveis.

Não posso, pois, falar de quartos vazios. Mas posso falar de dunas, de areia molhada, de castelos, da relva sob as estrelas, de vozes do outro lado da parede, de uma certa cama forrada com pele de raposa, posso falar de êxtase, de eros, de descoberta, de muita alegria, de música, de penumbra, de luz.

Tudo nos era íntimo porque vivíamos em permanente estado de intimidade, porque o mundo éramos nós, porque tínhamos o mundo inteiro dentro dos nossos corações e porque os nossos dois corações eram, e ainda são, um só. Meu amor.



[Abaixo do casario do Ginjal, Rui Caeiro fala-nos dos quartos que recorda com amor e, logo abaixo, Boccherini continua a encantar-nos, desta vez com uma música bem conhecida]


Passeio ao fim da tarde no Ginjal


                                Lembro-me de quartos onde estivemos
                                como de seios que se abarcam com a mão.

                                Modestos acolhedores eróticos
                                de tão nus e desguarnecidos

                                E de tão pobres e tão impessoais
                                tão voltados para o seu interior

                                vazio, tão mais íntimos de nós


                                [Poema de Rui Caeiro in O quarto azul e outros poemas]

Boccherini - o Quarteto Vivace (Leonardo Cunha, Richard Wagner, Daniele Alves, Ana Paula Faria) interpreta Minueto


26 setembro, 2012

Vozes para além do rio. São água também.


Escrevo mas não é no papel que escrevo. Escrevo no ar e estas minhas palavras voam pela janela, sobrevoam o rio, descem até ao cais, deslizam sobre as águas, e voam, voam até chegar até vós. Escrevo, pois, palavras que deixam de ser minhas mal acabo de as escrever.

Depois, menina que gosta de fazer desenhos e de os pintar, enfeito as minhas palavras com um rio e depois entusiasmo-me a colori-lo, e é um exagero, cores e mais cores, e as cores saem-me quentes como um corpo em chamas e depois, para embelezar o rio, desenho uma ponte, e desenho-lhe um véu feito de fios transparentes, depois pinto um sol brilhante e o sol fica irreal e eu, sonhadora, peço-lhe que encha de luz a vossa paisagem. Depois, ainda, menina que gosta de amores, desenho um casal de namorados recortado contra um cenário maravilhoso mas quero que se perceba que a vida é pequena e efémera, um breve pulsar, e então eles ficam pequeninos, lá ao fundo, quase invisíveis. E depois desenho uma parede pela qual os anos têm passado voando, leves, brandos porque assim é a vida, vai passando, vai deixando marcas e eu não sei se é o tempo que passa pela vida ou se é a vida que passa pelo tempo como uma estrela cadente.

No fim, olho e digo ao desenho que está na hora da magia: vai rio, sai do écran, vai por aí fora, voa também, vai até à casa dos meus amigos, leva-lhes o teu cheiro a maresia e a tua cor feita de sonho dourado, vai sol, sai daí e voa até ao écran dos meus amigos, enche-lhes a vida de luz, vão namorados, voem também e vão encher de beijos a vida dos meus amigos, vai ponte, vai unir a vida dos meus amigos à minha.

E assim estou agora, na minha mão uns fios que seguram a ponte e esperando que vocês estejam a segurar o outro lado, nós dois unidos pelas palavras, pelo sonho, pelo impossível. A minha mão tão perto da vossa. Sentem? Sentem que estou aí, sentem as minhas palavras voando junto aos vossos olhos?



[Mais uma bela música de Boccherini aguarda por nós logo aí abaixo de mais um poema de Pedro Tamen, Senhor Poeta que tem lugar cativo aqui no Ginjal]


Fim de tarde no Ginjal quando, há dias atrás, os dias ainda estavam quentes 



                                        Vozes para além do rio. São água
                                        também, correm até à foz
                                        do meu ouvido. E refluem agora,
                                        líquidas, da foz do meu olvido.
                                        Alem do rio, vozes e acenos. Gritos
                                        tão leves, sobre os anos voando.
                                        A minha mão, a minha mão também
                                        esgueira um gesto curto enquanto
                                        a outra escreve. Desenha
                                        no papel seco a ponte, as pontes, todos
                                        os corredores das vozes donde chego
                                        à relva desta margem.


                                        [Poema de Pedro Tamen in Memória Indescritível]

Boccherini - Janos Starker interpreta Sonata in A Major


25 setembro, 2012

A mãe disse-lhe escreve-me de lá de longe para onde vais


Escuta, menina que te abraças ao teu namorado, escuta. Beija-o, beija-o muito, sente o coração do teu amor nos beijos que recebes, entrega-te toda nos beijos que lhe dás. Respira o ar que vem deste rio magnífico, cobre-te com a poalha dourada que cai dos céus, e sente o momento como uma bênção, uma bênção que para sempre deverás guardar dentro de ti. 

Vive, vive muito, menina. E sê muito feliz em cada instante. Guarda dentro de ti, menina, a beleza de cada momento. Duram tão pouco os momentos, menina. Guarda-os todos dentro de ti.

Um dia vais dizer à tua mãe que vais viver com o teu amor e a tua mãe vai ficar feliz por te ver feliz, por saber que estás a dar os justos passos para construíres a tua vida. Sim, menina, esse dia vai chegar.

Mas, nessa altura, menina, não olhes muito de perto os olhos da tua mãe, não olhes. Deixa-te ficar feliz, leve, inocente, e pega nas tuas roupas, nas tuas pulseiras e fios, nos teus livros, e vai feliz, abraça a tua mãe, abraça-a muito e vai feliz. E quando estiveres a sair, menina, segue em frente, não olhes para trás, não queiras ver as lágrimas nos olhos da tua mãe.



[Abaixo dos namorados rodeados de uma luz acobreada, poderão ver a explicação do sorriso dada por Daniel Faria e, logo a seguir, mais uma bela música de Boccherini. Talvez eu devesse inverter a ordem dos posts para que pudessem ouvir a música enquanto lêem, mas vocês podem corrigir isso.]


Fim de tarde de amor no Ginjal, sobre um rio brilhante, sob um céu em fogo



                                                       A mãe disse-lhe escreve-me
                                                       de lá de longe para onde vais
                                                       E ela disse não é longe casar
                                                       E a mãe sorria cega de dor
                                                       E parecia de deslumbramento


['Explicação do sorriso' de Daniel Faria in Poesia]

Boccherini: o Carmina Quartet interpreta 'La Musica Notturna di Madrid', Passa Calle


Olhar sem caminho a tranquila onda muscular paralela à mão aberta e livre


Olho as ondas, é o mar que pulsa com vigor, olho este rio que se pôs verde para me encher de esperança e logo a mim que tenho o corpo tão cheio, tão cheio de vida e de esperança.

Se estender as mãos sentirei este ar tão limpo ou esta água tão fresca, tão cheia de vida, ondas puras que balouçam de alegria por mais esta vida que trago em mim.

Aqui onde a terra se junta com o mar, sobre estas pedras rijas como os flancos do meu amor, olho o vasto caminho que se abre à minha frente, tanto caminho, tanto caminho por caminhar.

Olho o meu ventre. Parece uma montanha, é a minha montanha mágica. Dentro dela um outro ser começa a percorrer o seu próprio caminho. Junto ao mar ensino-lhe a frescura da água, a maresia, os voos livres e indomáveis das gaivotas, a liberdade sem dono dos gatos que por aqui vagueiam, ensino-lhe os veleiros que entram sem medo na invisível lonjura, ensino-lhe as pacientes mãos dos pescadores, ensino-lhe o amor que envolve os corações apaixonadas quando as ondas são suave melodia, ensino-lhe o fogo, o fogo que existe, secreto, silencioso, no fundo de todos os mares.



[Depois de mais um belo poema de António Ramos Rosa, se descer um pouco mais, encontrará a música de Boccherini. Talvez lhe apeteça, então, ao som daquele Quartettino, voltar a ler estas palavras ou, então, respirar com vagar  'A paixão do ar']


Rente ao Tejo, no Jardim do Ginjal


                                                 Olhar sem caminho
                                                 a tranquila onda muscular
                                                 paralela à mão aberta e livre

                                                 Uma escrita a nascer dos alvos flancos
                                                 a paixão do ar como uma chama

                                                 Paixão que une a terra cheia ao mar
                                                 o olhar respira em todo o corpo igual
                                                 o corpo eleva-se sobre a montanha fácil

                                                 O fogo flexível.


['A paixão do ar' de António ramos Rosa in Revista Letras com vida, Literatura, Cultura e Arte, nº4]

23 setembro, 2012

Não me importa o pão quando não o divido: farta mesa triste sem companhia


Que me interessa o que tinha, quando não te tinha?

Talvez a mesa fosse farta, não digo que não, talvez os livros já fossem a minha grande companhia, talvez os amigos me rodeassem com os seus sorrisos e amparos, talvez o rio já fosse tão azul e, mesmo, Lisboa já era, certamente, tão bela. 

Talvez os meus passos já me trouxessem até aqui, até onde a maresia perfuma o ar que respiramos, talvez eu já soubesse que os grandes espaços são a minha casa. 

Mas hoje penso que, enquanto sorria como se fosse feliz e enquanto caminhava como se os estes caminhos me bastassem, talvez eu já procurasse um sinal que tardava em vir, um sinal de ti.

Talvez, e tu sabes que é verdade, eu tivesse um ombro, um abraço, uma mão, um corpo que me visitava.

Mas não te tinha ainda a ti e, sem ti, tudo me era pouco. 

Mas um dia o acaso trouxe-te até mim. E nesse dia eu soube que era a ti que eu procurava, era de ti que eu sentia falta. 

Percorro agora os mesmos caminhos mas esses caminhos são percorridos por nós dois e eu agora sou eu e sou também uma parte de ti. E a isto talvez se chame amor.



[Abaixo do belo poema de amor de Maria do Rosário Pedreira, que pode ser visto no seu novo livro, poderemos ouvir uma gostosa música de Boccherini. Sei que tinha dito que ia sair dos compositores para os intérpretes mas a falta de ritmo com que tenho alimentado o Ginjal e Lisboa, pela qual me penitencio, leva-me a ceder a esta vontade que me deu hoje, a de ficar  com este compositor.]


Nesta primeira tarde de Outono no Ginjal, o Tejo muito azul, Lisboa coberta  por nuvens discretas



                                          Não me importa o pão quando não o divido:
                                          farta mesa triste sem companhia. Na tua
                                          ausência não há fome que me devore, e a
                                          gota de vinho na toalha é só mais um borrão
                                          num poema sozinho. Antes de ti nunca

                                          tive apetite pela vida, as costelas vincadas
                                          na camisa. Tantos cães escanzelados iguais
                                          a mim cumprindo a solidão das avenidas,
                                          e tão poucas as esquinas. Milagre mesmo

                                          foi teres parado numa para me alimentares.


[Poema de Maria do Rosário Pedreira in Poesia reunida,'A ideia do fim' - III, para o Manel]

Boccherini - O Carmina Quartet (Matthias Enderle no 1º violino, Susanne Frank no 2º violino, Wendy Champney na viola e Stephan Goerner no violoncelo) interpretam o "Fandango" de Guitar Quintet. Com Rolf Lislevand na guitarra e Nina Corti nas castanholas