Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 abril, 2013

Luís Cília canta Poesia Portuguesa (... e eu fiquei encantada com esta descoberta): 'Carta a Ângela' de Carlos de Oliveira, 'Ternura' de David Mourão-Ferreira, 'Não me peçam razões' de José Saramago, 'O menino de sua mãe' de Fernando Pessoa e 'Margem Esquerda' de Urbano Tavares Rodrigues


 Para a Leitora Ana de Sá, 
com os meus sinceros agradecimentos 
(pois não me lembrava do Luís Cília nem sabia que ele tão bem tinha cantado a nossa poesia)



 Luis Cilia - Carta a Ângela, letra de Carlos de Oliveira 


Para ti, meu amor, é cada sonho
de todas as palavras que escrever,
cada imagem de luz e futuro,
cada dia dos dias que viver.

Os abismos das coisas , quem os nega,
se em nós abertos inda em nós persistem?
Quantas vezes os versos que te dei
na água dos teus olhos é que existem!

Quantas vezes chorando te alcancei
e em lágrimas de sombra nos perdemos!
As mesmas que contigo regressei
ao ritmo da vida que escolhemos!

Mais humana da terra dos caminhos
e mais certa, dos erros cometidos,
foste, de novo, e de sempre, a mão da esperança
nos meus versos errantes e perdidos.

Transpondo os versos vieste à minha vida
e um rio abriu-se onde era areia e dor.
Porque chegaste à hora prometida
aqui te deixo tudo, meu amor!



  

 Luís Cília - "Ternura", letra de David Mourão-Ferreira


Desvio dos teus ombros o lençol
Que é feito de ternura amarrotada
Da frescura que vem depois do sol
Quando depois do sol não vem mais nada.

Olho a roupa no chão - que tempestade
Há restos de ternura pelo meio
Como vultos perdidos na cidade
Onde uma tempestade sobreveio.

Começas a vestir-te lentamente
E é ternura também que vou vestindo
Para enfrentar lá fora aquela gente
Que da nossa ternura anda sorrindo.

Mas ninguém sabe a pressa com que nós
A despimos assim que estamos sós.




 Luis Cília - "Não me peçam razões", letra de José Saramago


Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, nascem todas
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.




 Luís Cília - "O menino de sua mãe", letra de Fernando Pessoa 

No plaino abandonado 
Que a morna brisa aquece, 
De balas trespassado 
Duas, de lado a lado, 
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos, 
Alvo, louro, exangue, 
Fita com olhar langue 
E cego os céus perdidos. 

Tão jovem! Que jovem era! 
(agora que idade tem?) 
Filho único, a mãe lhe dera 
Um nome e o mantivera: 
«O menino de sua mãe.» 

Caiu-lhe da algibeira 
A cigarreira breve. 
Dera-lhe a mãe. 
Está inteira 
E boa a cigarreira. 
Ele é que já não serve. 

De outra algibeira, a lá da 
Ponta a roçar o solo, 
A brancura embainhada 
De um lenço deu-lho a criada 
Velha que o trouxe ao colo. 

Lá longe, em casa, há a prece: 
Que volte cedo, e bem! 
(Malhas que o Império tece!) 
Jaz morto e apodrece 
O menino da sua mãe 




"Margem Sul". O poema é de Urbano Tavares Rodrigues 


Ó Alentejo dos pobres
Reino da desolação
Não sirvas quem te despreza
É tua a tua nação

Não vás a terras alheias
Lançar sementes de morte
É na terra do teu pão
Que se joga a tua sorte

Terra sangrenta de Serpa
Terra morena de Moura
Vilas de angústia em botão
Dor cerrada em Baleizão

A foice dos teus ceifeiros
Trago no peito gravada
Ó minha terra vermelha
Como bandeira sonhada

28 abril, 2013

Jorge de Sena - a Poesia e o Homem (por si próprio e pelos outros - Ana Luísa Amaral, Mário Viegas, Catarina Guerreiro)


Gaivota num cais do Ginjal ao cair da tarde




Catarina Guerreiro diz 'Uma pequenina Luz'


Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha

['Uma pequenina luz' de Jorge de Sena in Fidelidade]



 

'Ode para o Futuro' dita pelo próprio Jorge de Sena


Falareis de nós como de um sonho. 
Crepúsculo dourado. Frases calmas. 
Gestos vagarosos. Música suave. 
Pensamento arguto. Subtis sorrisos. 
Paisagens deslizando na distância. 
Éramos livres. Falávamos, sabíamos, 
e amávamos serena e docemente. 

Uma angústia delida, melancólica, 
sobre ela sonhareis. 

E as tempestades, as desordens, gritos, 
violência, escárnio, confusão odienta, 
primaveras morrendo ignoradas 
nas encostas vizinhas, as prisões, 
as mortes, o amor vendido, 
as lágrimas e as lutas, 
o desespero da vida que nos roubam 
- apenas uma angústia melancólica, 
sobre a qual sonhareis a idade de oiro. 

E, em segredo, saudosos, enlevados, 
falareis de nós - de nós! - como de um sonho. 


['Ode para o futuro' de Jorge de Sena in 'Pedra Filosofal']





Mário Viegas apresenta o excerto de uma entrevista do poeta Jorge de Sena a Joaquim Furtado, em 1976.





Ana Luísa Amaral fala de Jorge de Sena


 

Mário Viegas diz 'Carta a meus filhos Sobre os fuzilamentos de Goya' de Jorge de Sena


Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. 
É possível, porque tudo é possível, que ele seja 
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, 
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém 
de nada haver que não seja simples e natural. 
Um mundo em que tudo seja permitido, 
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, 
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. 
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto 
o que vos interesse para viver. Tudo é possível, 
ainda quando lutemos, como devemos lutar, 
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, 
ou mais que qualquer delas uma fiel 
dedicação à honra de estar vivo. 
Um dia sabereis que mais que a humanidade 
não tem conta o número dos que pensaram assim, 
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, 
de insólito, de livre, de diferente, 
e foram sacrificados, torturados, espancados, 
e entregues hipocritamente â secular justiça, 
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.» 
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, 
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas 
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, 
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, 
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, 
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória. 
Às vezes, por serem de uma raça, outras 
por serem de urna classe, expiaram todos 
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência 
de haver cometido. Mas também aconteceu 
e acontece que não foram mortos. 
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, 
aniquilando mansamente, delicadamente, 
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus. 
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, 
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha 
há mais de um século e que por violenta e injusta 
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, 
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria 
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos. 
Apenas um episódio, um episódio breve, 
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis) 
de ferro e de suor e sangue e algum sémen 
a caminho do mundo que vos sonho. 
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém 
vale mais que uma vida ou a alegria de té-la. 
É isto o que mais importa - essa alegria. 
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto 
não é senão essa alegria que vem 
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém 
está menos vivo ou sofre ou morre 
para que um só de vós resista um pouco mais 
à morte que é de todos e virá. 
Que tudo isto sabereis serenamente, 
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, 
e sobretudo sem desapego ou indiferença, 
ardentemente espero. Tanto sangue, 
tanta dor, tanta angústia, um dia 
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - 
não hão-de ser em vão. Confesso que 
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos 
de opressão e crueldade, hesito por momentos 
e uma amargura me submerge inconsolável. 
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, 
quem ressuscita esses milhões, quem restitui 
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado? 
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes 
aquele instante que não viveram, aquele objecto 
que não fruíram, aquele gesto 
de amor, que fariam «amanhã». 
E. por isso, o mesmo mundo que criemos 
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa 
que não é nossa, que nos é cedida 
para a guardarmos respeitosamente 
em memória do sangue que nos corre nas veias, 
da nossa carne que foi outra, do amor que 
outros não amaram porque lho roubaram.

****


[Abaixo poderão ouvir um grande pianista de jazz, Brad Mehldau.]


Brad Mehldau interpreta Dream Brother de Jeff Buckley




Eugénio de Andrade, Natália Correia e Mário Cesariny. O sorriso, o romance de paloma - e em todas as ruas te encontro. Poesia dita pelos próprios e cantada por outros (no caso, pela Filipa Pais)



"O Sorriso" dito por Eugénio de Andrade

Creio que foi o sorriso, 
o sorriso foi quem abriu a porta. 
Era um sorriso com muita luz 
lá dentro, apetecia 
entrar nele, tirar a roupa, ficar 
nu dentro daquele sorriso. 
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.                  


^^^^



Transcrevo do Youtube: 

Senhora da Rosa, chamou-lhe Manuel Alegre e falava de Natália Correia. Uma rosa de amor e morte de uma poetisa que não aceitava a ditadura da razão (...). Ela era mais do que isso, era a pitonisa, a vestal iluminada, uma máquina de passar vidro colorido, como disse Mário Cesariny, referindo-se à sua dimensão cromática. Um documentário que nos leva ao encontro de Natália Correia, seguindo um caminho que ela própria traçou - A partir de agora, se alguém me quiser encontrar, procure-me entre o riso e a paixão.

(Um documentário que nos leva ao encontro de Natália Correia. 
Produção: RTP-Açores
Realização: Teresa Tomé
Autoria: Teresa Tomé
Origem: Portugal - 1999)

*


Filipa Pais - Em Todas as Ruas te Encontro (À Porta Do Mundo_2004), poema de Mário Cesariny

Em Todas as Ruas te Encontro
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Mário Cesariny, in "Pena Capital"


25 abril, 2013

Uma frase começa antes da frase como um rio começa antes de um rio


Antes de tudo era o quê? Um imenso vazio, negro, espesso, silencioso? A ausência do verbo? A solidão mais absoluta?

Ou nada disso? A mais bela melodia? O som puro da ausência de qualquer ruído? A luz mais límpida da infinita transparência? A mais total liberdade? O tudo por nascer? Todos os caminhos por descobrir?

E, quando começou, como foi? O sobressalto do erro? O medo do desconhecido? A indecisão perante o imenso labirinto? 

E em que ponto estamos agora? É isto ainda o começo? Ainda estamos a cometer os tropeços da infância? Ou estamos a caminhar, cansados e descrentes, para o inexorável fim?

Não sei. Nada sei. Cada vez menos sei.

Que palavras são estas, as que agora escrevo? Palavras mil vezes ditas, sem respiração, velhas, sem vigor? Ou palavras novas, que descubro, feliz, à medida que aqui, à minha frente se desenham? Palavras que caminham sozinhas, livres, sem dono? E que um dia a mim regressarão como meninas a uma mãe?

E eu própria? Estou percorrendo os caminhos mil vezes trilhados por tantos outros antes de mim, que por aqui passam e depois desaparecem sem deixar rasto? Ou já vivi antes, não eu mas outros eus que passam testemunho de uns para outros, tal como eu passei aos meus filhos e estes aos seus filhos e assim o sangue vai, quente e fértil, deixando um invisível e silencioso rasto de saudade e vida?

Nada sei. Uma frase antes da frase, um rio antes de um rio, um começo antes do começo, Deus antes de Deus, diz o Poeta. E eu, aqui, junto a vós, recolho-me e junto as mãos. E espero sem saber o que espero.



[Abaixo do cravo vermelho abandonado junto ao Tejo que corre, mais um poema de Manuel Alegre. Abaixo dele um momento de limpidez pelas mãos de Chick Corea]


No Ginjal, cravo abandonado numa mesa junto ao Tejo neste 25 de Abril



                                                        Uma frase começa antes da frase
                                                        como um rio começa antes de um rio.
                                                        Uma frase começa onde tropeço
                                                        no amor que antes de ser já era adeus
                                                        começa antes do fogo e antes do frio
                                                        como princípio inverso ou fim do avesso
                                                        como começo antes do começo
                                                        ou talvez como Deus antes de Deus.



                                                        ['Como um rio' de Manuel Alegre in 'Nada está escrito']

     

Chick Corea & Gary Burton interpretam Armando's Rumba






No 25 de Abril, a desditosa pergunta: Para quê?, testemunhando que a perda se instalara para sempre


Nós não somos a Grécia, dizem os amigos dos destruidores da Grécia. Eles são pobres mas nós não somos uns pobres iguais a eles, nós somos uns pobres mais submissos que eles, o melhor povo do mundo, um povo que empobrece pacificamente, um povo que por delicadeza se deixa morrer, dizem. 

Mas eu digo que nós somos pobres como os pobres da Grécia porque todos os pobres são iguais. E ainda mais iguais se espoliados. E ainda mais iguais se sem esperança, sem tecto, sem chão.

Para quê? Para que empobrecem os povos? Para que empobrecem os que já são pobres?

Porque abandonam à sua sorte aqueles a quem já retiraram quase tudo?

25 de Abril parece distante quando olhamos para o nosso pobre País entregue às mãos de gente cuja missão parece ser destruir a esperança e o futuro.

E, no entanto, há um povo que por vezes não se deixa pisar e se levanta cantando. Ouvi há menos de uma hora uma multidão cantando a Grândola e vi que do chão se levantavam mil clarões que iluminavam os céus, que levavam a força de mil braços que se erguiam. 25 de Abril sempre! 25 de Abril sempre!




[Abaixo do fogo de artifício, um poema de Hélia Correio relembra a tragédia grega e a nossa e, a seguir, Sérgio Godinho recorda-nos que a vida não acaba quando nos colocam uma barreira à nossa frente: hoje é o primeiro dia das nossas vidas. Sempre.]

Há poucos minutos, fogo de artifício comemorando o 25 de Abril



                                       Diz-se: a nossa indigência nada tem
                                       de semelhante é dele. E o seu grito,
                                       essa pergunta, a última a sair
                                       da garganta cortada, pouco audível
                                       entre o golfar do sangue, a desditosa
                                       pergunta: Para quê?, testemunhando
                                       que a perda se instalara para sempre,
                                       era o filho abandonado, aquele
                                       que os deuses, retirando-se, não olham
                                       nem favorecem mais.



                                       [Poema 5 de Hélia Correia in A Terceira Miséria]


24 abril, 2013

Neste 25 de Abril, que este seja o primeiro dia do resto das vossas vidas, umas vidas repletas de alegrias e de esperança


sei de pintores que se inquietavam por pressentirem uma relação entre a cor e a palavra - numa sala cheia de livros, num vão de escada


Havia um poeta. Tinha gatos, tinha afectos. Tinha livros. Escrevia palavras. Transformava músicas e cores em palavras.

Decantava a luz, as ervas, as pernas suaves dos rapazes, as flores, as mãos da mãe - e de tudo nasciam palavras inocentes como crianças.

Olhava a sombra da luz nos muros caiados de branco, olhava o voo das aves, aspirava o cheiro doce da fruta, do calor, da erva alta como uma haste, da glande como uma flor - e escrevia palavras límpidas como um dia de verão.

Esse poeta acompanha-me deste sempre, está agora aqui ao meu lado, silencioso, paciente.

E há um poeta que escreve sobre esse outro poeta. E que olha com carinho as palavras que nascem de outros poetas, e que acolhe as pinturas e as músicas e as mulheres e o desejo forte - e, depois, os transforma em poemas que contam histórias e soam como uma toada que já existisse antes de nascer.

Está também aqui, esse poeta, irónico, galante.

Das palavras destes e de outros poetas me alimento eu que aqui estou nesta noite quieta e boa depois de ter caminhado rente ao rio, aspirando a maresia e a cor quente das tardes sobre as paredes.

Junto a mim seguia a minha sombra e a sombra daquele cuja vida se misturou com a minha.


O afecto impresso nas paredes que o tempo dourou


Impressos nas paredes douradas, seguíamos, eu pensando em palavras que traduzam o que vejo - os abraços dos casais que se descobrem, os barcos que, lentos, em silêncio, deslizam no rio, o sol que mergulha no meio de chamas, a ponte que parece um rendilhado sobre o horizonte, a fantástica gaivota que se eleva e cruza o espaço como uma deusa alada - ele, ouvindo-me, esperando por mim, uma boa companhia, um permanente abraço. 

Afectos e palavras, cor e silêncio, luz e voos livres. 

Assim é a minha vida, uma vida leve, habitada pelas palavras que os poetas soltam no espaço e que voam, luminosas, livres, sobre os rios, que voam, cheias de cor e afecto através dos céus, que se aconchegam, bondosas e em silêncio, quando o meu amor me dá a sua mão.



[Abaixo da gaivota que voa como uma deusa, está o poema de Vasco Graça Moura sobre Eugénio e, a seguir, mais uma grande interpretação de Chick Corea, desta vez com Keith Jarrett tocando Mozart]


Gaivota voando sobre o Tejo, com a ponte 25 de Abril em fundo




                                      sei de pintores que se inquietavam por
                                      pressentirem uma relação entre a cor e a palavra.
                                      era nos anos sessenta em s. lázaro, quando
                                      a luz entardecia, muita gente se afadigava no

                                      lento regresso a casa, as aves recolhiam e
                                      eles sabiam que havia alguém para falar
                                      das águas e das luas e da sombra
                                      das cores, dos gestos entre as hastes e os farrapos

                                      do silêncio. seria à mesa do café, numa
                                      sala cheia de livros, num vão de escada a caminho
                                      do atelier que lhe propunham essa
                                      revisita das fontes, das perturbadas melancolias

                                      que ele havia de dizer por palavras no papel.
                                      mostravam-lhe os trabalhos, esperando as
                                      justas perífrases, os ritmos em que haviam de rever
                                      a sua fome do real nas artes da pintura.

                                      era o cruzar das solidões comovidas: tudo
                                      seria reescrito, portuense, partilhado
                                      com uma densa, irisada exactidão, lá onde
                                      umas pétalas da música começam

                                      a partir de uma cor ou de um murmúrio,
                                      de um rosto ou de uma nuvem,
                                      de uma explosão do sol, de uma agonia.
                                      era nos anos sessenta, era em s. lázaro.




['eugénio e os pintores' de Vasco Graça Moura in 'visto da margem sul do rio o porto', uma antologia poética com fotografias de Maria Manuela Graça Moura e aguarelas de António Cruz - um belo livro, vos digo eu]

*


Encontrar,
encontraste Poeta
a luz exacta das palavras
o vento, a brisa lenta
rente
à voz dorida
das sílabas anunciadas.
Em ti
o rigor branco da cal
um olhar eterno de uma Mãe
que nas crianças se prolonga.
Em ti, agora,
o amor liberto da carne
a sombra do tempo que se repousa
na folhagem branda
das árvores que olham o mar.


['A eugénio de Andrade' de Joaquim Castilho no comentário abaixo]


22 abril, 2013

Transformas-te em lobo e tigre mal chegas à cama


Aninhas, minha linda, tão fofinha, tão miguinha do teu quidinho... Aninhas, linda, linda menina, minha gatinha, vem aqui fazer rom-rom ao pé do teu cãozinho. Vem, Aninhas, minha quidinha, vem aqui dar uma lambidela no teu cãozinho, vem, quidinha, vem que eu não te mordo, Aninhas.

Aninhas, minha prendada mulherzinha, mais linda, mais lindinha, tão meiguinha, tão sossegadinha, tão poupadinha, tão caladinha, vem, vem aqui ao pé do teu gatão, deixa que eu te faça uma festinha, deixa, deixa lá, ó Aninhas..

Aninhas, minha docinha Aninhas, tão lavadinha, tão perfumadinha, deixa-me cheirar os teus peitinhos, Aninhas, deixa que eu tenho muito cuidadinho, deixá lá, ó Aninhas, deixa-me lá ver e cheirar os teus peitinhos branquinhos e lavadinhos, ó Aninhas.

Aninhas, gatinha, anda cá, vem dar-me uma dentadinha, vem, que eu não sou nenhum lobo mau. Vem, Aninhas, que eu só te quero dar beijinhos, está calminha que eu não sou o lobo mau, tenho a boca grande, Aninhas, mas não é com a boca que te vou comer, ó Aninhas.

Vá lá, Aninhas... 

... Mas então que é lá isso, ó Aninhas?! Mas que gatinha tão malandrona, Aninhas... Mas que tigrêzinha me estás a sair, Aninhas...

Mas, ó Aninhas, espera lá, então, que é lá isso, Aninhas, mas isso são lá maneiras de te portares, ó Aninhas?! Quase pareces uma cadela, ó Aninhas, e das que têm cio, ó Aninhas...

Cala-te lá, ó Aninhas, ou, ao menos, baixa o volume, ó Aninhas... A miares e a latires dessa maneira, ó Aninhas, ainda desinquietas a vizinhança inteira, ó Aninhas. Ai, Aninhas, ai, ai...

...

Uff.... Bolas, Aninhas que dás cabo aqui do tigrão... deixa-me respirar, Aninhas...

E olha lá, ó Aninhas, que é lá isso de andares a escrever o A de Aninhas aí pelas paredes, todo floreado, todo prosa, todo letra francesa, mas a dar ares aqui do teu amiguinho, ó Aninhas, sua ganda maluca?




[Bem. Passando agora às coisas sérias. Abaixo da letra A desenhada com grande estilo, temos mais um poema de Helder Moura Pereira, desta vez um contido no seu último livro. Abaixo, dá-se início a uma semana dedicada a um grande intérprete de jazz, Chick Korea e começa logo em grande, com uma composição de Tom Jobim - e mil vezes obrigada ao Leitor tão amigo que adivinha os meus pensamentos e me enviou tão desinteressadamente esta sugestão (esta e as seguintes!)]


Pintura rupestre numa das paredes do Ginjal



                                                      Tu para quem qualquer cão
                                                      é lobo, qualquer gato
                                                      é tigre, transformas-te
                                                      em lobo e tigre mal chegas
                                                      à cama. O fenómeno chegou
                                                      a suscitar debates domésticos
                                                      dos que se prolongam pela noite
                                                      dentro e aventou-se até
                                                      a hipótese de uma ida ao médico
                                                      da cabeça. Não chegou a ser
                                                      preciso, uma vez que a cama
                                                      era suficiente divã: não havia
                                                      palavras, só latidos, miados
                                                      e uma gritaria desmedida.



['Tu para quem qualquer cão' de 'Uma ideia da coisa', poema de Helder Moura Pereira in 'Pela parte que me toca']

Chick Corea no piano (com Gary Burton) interpreta Tom Jobim - Chega de Saudade




não quero o teu retrato nem o meu, a não ser num templo em ruínas


Alguém anda a pintar as paredes do Ginjal de cores que latejam, que brilham com o sol. As paredes gastas reflectem agora o sol que se põe. O rio e o céu e as paredes brilham com a mesma cor doce, vibrantes e cheios de vida.

Na fotografia não estou eu, nem tu, meu amor. Mas na rua que eu fotografei, passa uma mulher com o seu amor. 

Noutras fotografias estás tu, andando, esperando por mim. 

Tantas fotografias tuas que tenho aqui, meu amor, meu gato aparentemente esquivo, meu gato indecente. Por aqui andas quando o sol se põe, por aqui andas de manhã, respirando a maresia fresca. Outras vezes, quando as noites estão frias e ventosas, passas por entre os gritos e os rangidos dos cais, passas indiferente, tantas vezes já aqui passaste.  Caminhas com determinação, e esperas por essa mulher que se perde a olhar as gaivotas ou os veleiros. Tão diferentes: tu um gato, eu uma gaivota. 

Nessas fotografias em que estás sozinho no meio deste templo decadente, não estás, de facto, sozinho. Atrás do olhar que assim te viu está a mulher que nunca se cansa de te ver, para quem o tempo nunca é tanto, para quem o amor não será nunca uma casa em ruínas.



[Abaixo de mais um poema de Vasco Graça Moura, temos mais uma grande interpretação no violoncelo. Desta vez é Jacqueline du Pré interpretando Saint-Saëns] 


Entardecer no Ginjal. O Tejo e a Ponte 25 de Abril ao fundo



                                         não quero o teu retrato
                                         nem o meu, a não ser
                                         num templo em ruínas:
                                         aí o tempo tanto

                                         gastou degraus, colunas,
                                         e fez do musgo acanto
                                         que podemos sentar-nos
                                         sobre a pedra votiva

                                         e ficar de mãos dadas
                                         sob um céu de ameaça
                                         olhando a objectiva. há
                                         felizmente um disparo

                                         automático a
                                         fuzilar-nos de amor na nossa imagem.


[Poema XIX de 'nó cego, o regresso' de Vasco Graça Moura in 'poesia reunida']

*



Rectângulos de um dia
escritos com luz
escolhas recortadas
janelas transpostas
do olhar de alguém.
Nas páginas impressas de um livro,
no papel efémero de um jornal,
no cartaz que olhamos ao passar
na cuidada elaboração de uma foto de autor,
descobrir
o que sempre tínhamos visto
ou o que jamais poderíamos ter observado.
Alguém nos guia o olhar
para que possamos ver.


[Fotografias de Joaquim Castilho num comentário abaixo]

Jacqueline du Pré interpreta Saint-Saëns - Allegro appassionato Op.43.wmv




20 abril, 2013

Nasce para a mudez mas, como a música, respira por sons


Quando o sol se deita envolto em fulgor, deixando-nos deslumbrados, está, de facto,  a enganar-nos. Não é o sol que se deita. É a terra, esta bola em cima da qual nos movemos, que vira as costas ao sol. Não tem mal: é apenas mais um pequeno equívoco.

Quando achamos que é sólida e eterna esta terra a que pertencemos, esquecemo-nos que não é completamente sólida, muito menos eterna. Estamos de passagem, insignificantes, efémeros. Não, não pertencemos a este planeta azul que se desloca num imenso e solitário espaço sideral, um espaço onde apenas se ouve a música dos longínquos deuses.

Mas assim somos nós, contraditórios, alheados, iludidos. Vivemos esquecidos do mundo em que vivemos, vivemos no desconhecimento do que se passa à nossa volta ou, mesmo, do que se passa dentro de nós - e achamos que somos o centro do mundo. Não tem mal: é apenas um pouco engraçado.

Julgamos que sabemos muito mas nada sabemos, julgamos que importamos mas somos não mais que ínfimas partículas de pó, ínfimos pontos de luz. Contradições. Equívocos. 

Apesar de tudo isso, continuo a procurar a luz mais límpida, a absoluta ausência de cor, a pureza mais transparente, e o silêncio mais limpo. Continuo  a alimentar-me de sonhos, continuo a procurar a palavra mais perfeita, de todas a mais simples, a mais luminosa, a que transporte em si o grande, grande silêncio. Continuo, sim. Como se tivesse todo o tempo do mundo para os encontrar. Não faz mal: é apenas uma ilusão quase infantil.

E continuo a tentar que do meu coração jorre, como água pura, o afecto mais verdadeiro, como se o mundo inteiro dele precisasse, como se a terra fosse não uma pequena esfera flutuando no imenso espaço sideral mas a fonte onde todos os meus amigos vão beber. Não faz mal: são apenas ilusões, sonhos abstractos e bondosos que voam à minha volta quando de mim nascem brancas e infinitas asas.



[Abaixo de mais um poema de Inês Lourenço, temos mais uma virtuosa interpretação de Yuja Wang que, com Prokofiev, se despede de nós. Mas é apenas um até já porque vou querer que ela venha visitar-nos muito mais vezes]


Há pouco, ao fim do dia, Lisboa e o Tejo anoitecidos, enquanto o sol incendeia os céus



                                                    Falas muito
                                                    de silêncio, nos
                                                    teus livros, como
                                                    alguém que jejua
                                                    entregue a lautos
                                                    banquetes. É essa
                                                    a contradição do poema. Nasce
                                                    para a mudez, mas
                                                    como a música, respira
                                                    por sons.


                                                    [Silêncio' de Inês Lourenço in 'Câmara Escura']

**


Pôr do sol
Pôr de luz
Pôr do dia
Pôr do vento.
Repousa o tempo
no sulco da noite
aguardam manhãs
no silêncio nosso
um novo despertar.



[Poema de Joaquim Castilho num comentário abaixo]

19 abril, 2013

Yuja Wang no piano (com a Orquestra da Academy Santa Cecilia, conduzida por Antonio Pappano) interpreta Prokofiev - 3º Concerto para Piano




Hoje os deuses ainda passam os olhos pelas suas casas


Havia uma ideia. Dessa ideia nasceu um desenho. Desse desenho nasceu uma obra. Quando a obra acabou havia uma casa. A casa tinha janelas. A essas janelas assomavam pessoas que viam o rio.

O tempo passou. As pessoas eram felizes, o rio corria para o mar, a luz entrava pelas janelas. Tudo estava certo.

Até um dia.

Aos poucos, as pessoas foram abandonando as casas. Até que, um dia, a última pessoa também foi. Dia triste esse. 

As casas são como as pessoas: querem companhia, carinho. Sozinhas, definham. Foi o que aconteceu: um dia o vento abriu uma janela. Assim ficou. Entrava o sol, a chuva, as ventanias. Entrava pelas janelas e pelo telhado que também deixou de existir. Aos poucos, a casa foi ficando arruinada. Vazia, decaída, infeliz.

Anos de desolação.

Agora alguém pintou um rio azul na parede. Ou o céu. 

E ontem, ao passar por lá ao fim do dia, vi uns jovens em frente desta parede azul. O céu e o rio vieram banhar as velhas paredes, vieram para ficar perto dos jovens. E os jovens riem com a sua pele fresca e a sua voz alegre e a beleza assume formas novas e eternas. 

À noite, quando a casa está tomada pelo silêncio e as gaivotas se recolhem, este azul refulge e as estrelas descem do céu para virem deitar-se nesta parede coberta com as cores iluminadas da inocência. E os deuses, antes de  mergulharem no fundo do mar, ainda passam os olhos por esta casa vazia, sem janelas, mas com um rio azul correndo nas suas paredes.




[Maria do Rosário Pedreira, uma Senhora Poetisa, que é muito cá do Ginjal, volta a fazer-nos uma visita e eu, encantada, deixo-a falar de luz que entra pelos telhados e do que ela quiser. A seguir, Yuja Wang, essa prodigiosa intérprete de piano traz-nos Mendelssohn e eu fico também encantada. A música de uma ilumina as palavras de outra]


Parede parcialmente pintada de azul no velho casario do Ginjal



                                                 No princípio, aprenderam a ter medo e protegeram-se.
                                                 Construíram casas de pedra e lama, pequemos refúgios
                                                 onde não tardaram a sentir-se cada vez mais sós.

                                                 Sonharam que, um dia, um feixe de luz haveria
                                                 de afagá-los. E, fascinados pelo céu, desenharam
                                                 óculos pelos telhados.

                                                 Tiveram, desde logo, a companhia das estrelas.
                                                 Hoje os deuses ainda passam os olhos pelas suas casas
                                                 todas as noites, antes de adormecerem.



['A invenção das clarabóias' de Maria do Rosário Pedreira in 'A casa e o cheiro dos livros']


*



Noite já,
a noite tua,
o teu dia,
por fim, adormecido.
Noite,
o teu regaço de silêncio.
Procuras,
na penumbra da tua casa,
nos recantos mais profundos
das tuas sombras,
nos pedaços dispersos do teu tempo
no Ginjal?
a semente esquecida dos teus textos.



['Em homenagem ao seu labor literário' de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]


16 abril, 2013

Nas cidades do sul há violência e há excesso


Há lugares onde os rios são dóceis. Passam, citadinos, sossegados, entre margens maquilhadas. Por ele descem frágeis barcos e são frágeis porque podem ser frágeis, porque os rios são inofensivos, quase inertes, cansados. 

Nas cidades do norte os rios que passam a meio das cidades são rios estreitos, pacíficos. Civilizados, claro. Nunca se exaltam, não ultrapassam as margens, não arrancam árvores à passagem, não devoram frutos, não carregam restos de vida no seu ventre.

Aqui, no sul, é o que se vê: uns dias o rio traz árvores inteiras, outras traz frutos, outros traz pedras, tijolos, restos de casas, restos de carros. Um desatino, estes rios das cidades do sul.

Aqui no sul há um rio como este, ágil, voluntarioso, que desliza e salta indómito, uns dias azul, outras verde, outras chumbo, e corre, ligeiro, a misturar-se no mar. Por isso, aqui o rio é salgado, cheira a maresia, tem algas, tem mexilhões agarrados às colunas do cais, tem limos verdes, e tem grandes cargueiros e suaves veleiros e pequenos barquinhos e pobres pescadores. E por ele saíram navegadores que desafiaram monstros, que descobriram mundos. Loucos, valentes.

Um rio excessivo, violento, vibrante, carregado de vida, este.

Este, tal como outros rios das cidades do sul, fala muitas línguas: fala português, espanhol, italiano, grego, cipriota. Um rio que uns dias está cheio de sol, inundado de luz, outras tolda-se perante uma chuva pesada, outras salta levado pelo vento. Sempre o mesmo, irrequieto, volúvel, irreflectido. Dizem. 

Não sabem o que dizem.

Não é o mesmo. São águas que nascem do fundo da terra e, por isso, são outras, sempre outras, correm diferentes, estrangeiras, nativas, o que for. Inocentes, puras, fortes, vigorosas estas águas. Sempre dispostas a irem correr à procura de mundos novos.

Que nenhuma apagada figura do norte sombrio venha pretender parar estas águas felizes que aqui correm no sul. As águas vibrantes do sul jamais se deixarão prender entre margens soturnas, tristes.

Porque aqui há corações que não se vendem, há braços cheios de força, há colunas direitas, corpos inteiros. 

E há poetas que inventam palavras cheias de luz e há gaivotas passeando entre os escombros, entre as marés, indiferentes à espuma dos dias. Séculos de história não se apagam facilmente, pensa a gaivota. E penso eu também, mas eu, é sabido, sou meio gaivota.



[Abaixo do belo poema de Luiza Neto Jorge, uma mulher pássaro, poderemos ouvir, uma vez mais, uma menina maravilhosa, Yuja Wang, desta vez numa virtuosa interpretação de Rachmaninov]


Gaivota na beira do tejo, numa das pequenas praias do Ginjal



                                                   Nas cidades do sul
                                                   há violência e há excesso,
                                                   de semente.
                                                   Estalam os rios e foge a água.
                                                   O corpo, encortiçado, racha.

                                                   Lendas vêm de há séculos assoreando
                                                   as margens.
                                                   E quando à boca de um poço vamos
                                                   provar o nosso eco,
                                                   águas puras irrompem,
                                                   noutra língua.


                                                   [Poema da pág 259 de Luiza Neto Jorge in 'poesia']

*


O RIO ONDE


Rio, mar aconchegado
braço longo de água silenciosa
onde as distâncias se repousam
e repousa também o meu olhar cansado 
sem medo, sem angústia
na água que de si mesma se esquece
caminhando, caminhando sempre
para algum mar.
Tapete de Sol, 
onde barcos lentos deslizam, 
sem pressa de chegar. 
Espelho aberto, onde o dia se reflete, 
corredor que corre sem correr, 
que não se atarda, olhando as margens,
que continua 
mesmo quando 
não tem vontade de continuar.


[De Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]



15 abril, 2013

Yuja Wang interpreta Rachmaninoff - Concerto Nº 2 para Piano


Este vídeo tem uma duração mais longa do que os que habitualmente escolho. Mas não resisti. Esta miúda é simplesmente fantástica.


nos pequenos medos que a espaços te assaltam


Prendes-te na teia dos teus medos. Labirintos que percorres em segredo. Talvez se tivesses uma mão que te ajudasse nos momentos de solidão. Talvez se tivesses um corpo quente que se deitasse ao teu lado e te fizesse festas, meu querido, estou aqui. Talvez.

Andas às voltas na grande casa em que persistes, uma casa sem fronteiras definidas, onde as paredes se movem, o tecto desce, uma casa que não te abriga. Não sabes ao que andas, apenas sabes dos riscos, das indefinições, das dúvidas, das coisas informes que te rodeiam. Não dizes a ninguém dos temores, dos tremores, da ansiedade nocturna, das noites sem dormir. Finges, disfarças. O sorriso, uma triste farsa. 

Que destino estás a escolher para ti? Não sabes. 

O rosto mostra o cansaço. As rugas, a pele triste sem viço, manchas de idade alastrando, os olhos sem brilho. Tanto cansaço, tanto.

Para quê isto tudo? Perguntas, mas perguntas sem voz, na calada da noite, sem ninguém que te ouça, a medo.

Há quanto tempo não te debruças numa janela, não sentes o aroma fresco de uma rua feliz, há quanto tempo não sentes o coração num alvoroço de amor?

Tanto, tanto. 

Prendeste-te nesse labirinto e dele não vês como sair.

No entanto, por vezes, sentas-te às escuras numa cama triste e vazia e sentes que, dentro de ti, a inocência se mantém intacta, e que o teu corpo está ainda inteiro.



[Abaixo do poema de Tatiana Faia, temos uma nova grande intérprete, Yuja Wang que aqui faz uma entrada espectacular com Chopin, Gluck e Strauss.]


Janelas, paredes, ruínas - o velho casario do Ginjal



                                      ombro a ombro mede-se contigo
                                      na luz inclinada de clarabóias nos pequenos
                                      medos que a espaços te assaltam
                                      falará até cair de cansaço nunca dirá teu corpo inteiro
                                      e olhar limpo atravessando o limite da casa
                                      o teu pensamento como a mais intacta ânfora


                                      ['Naxos-IV' de Tatiana Faia in Lugano]

*


NON SENSE


Quando te vi, 
antes mesmo de romperem 
todas as madrugadas
tinhas 
uma réstea de vento no olhar 
e pássaros perdidos 
navegavam em ti
sem o limite de qualquer horizonte.
Encontrei-me ao ver-te, 
eu que me procurava 
por entre todas as multidões.
Porque não te alcanço 
se estás tão perto? 
Meus braços não chegam para te tocar,
cobre-te o rosto 
um silêncio de mármore 
nenhum rio te ouvirá dizer:
Quero-te



['Non sense' de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]


Yuja Wang interpreta Chopin, Gluck e Strauss - respectivamente, Waltz, Orfeo ed Euridice:Melody, Tristsch-tratsch Polka (...espero não estar a escrever nenhum disparate...)





14 abril, 2013

Tabacaria de Álvaro de Campos dita por Mário Viegas







Poema do heterónimo de Fernando Pessoa, recitado por Mário Viegas, e encenado na última casa onde o poeta morou. 

A récita e a encenação pertencem ao programa PALAVRAS VIVAS sobre Fernando Pessoa, emitido pela RTP em 1991.



Anne Akiko Meyers interpreta Arvo Pärt - 'Spiegel im Spiegel' (Mirror in Mirror) de 'Smile'




Com os meus agradecimentos ao Leitor que generosamente me tem dado a conhecer maravilhas como esta.

11 abril, 2013

Tu trazes até mim a tua longa mão


O teu braço alonga-se e abraça-me pela cintura. Retribuo: o meu braço alonga-se também, a minha mão aconchega-se no bolso das tuas calças. Seguimos rente ao rio, ao longo do rio, como se fossemos entrar na água, caminhar até à linha do horizonte.

Quem nos veja caminhar assim, como se andássemos abraçados, dir-nos-ia apaixonados, envoltos numa suave luz azul.

Vamos em silêncio. Não há pontes entre nós e nem as palavras tentam alongar-se para tecerem laços que nos unam. Há muito que o silêncio ocupou o espaço antes ocupado pela intimidade e pelo amor.

No entanto, continuamos a caminhar, unidos, levados pela ilusão de ainda sermos um casal. Mas não somos. Por vezes ainda me dizes que na tua mão que me afaga está um gesto do coração, por vezes ainda sorrio para fazer de conta que, também eu, coloco o meu coração no olhar com que pareço despir-te. Reminiscências de outros tempos. Apenas.

A verdade é esta: vamos sozinhos, uma solidão disfarçada de enamoramento, uma mulher sozinha abraçada a um homem sozinho, sem palavras, sem um bater conjunto de corações.

Digo-te, a partir de agora és apenas meu irmão. Não dizes nada. Insisto, ouviste? Nada mais! Irmão! Ouviste?

Não dizes nada.

Insisto, não ouves? Acabou! Podemos ficar amigos, irmãos, mas mais nada e que isto fique muito claro. Ouviste?

Viras-te então para mim, calmo, calmo como sempre. Nada dizes. Parado, à minha frente, seguras a minha cara entre as tuas mãos. E dizes, sabes qual é o teu mal, não sabes?

Espero. Agora sou eu que não digo nada.

Continuas, não dormes, andas cheia de sono e eu que te ature. A ver se hoje te deitas mais cedo. Esse mau humor já não se atura. E agora fecha os olhos, dorme, dorme mesmo de pé, dorme que é para não dares pelo beijo que o teu irmão te vai dar.

Obedeço, fecho os olhos, deixo-me beijar e nem sei se é incesto, se é sonho, se é apenas mais um dia na vida de um casal.



[Ruy Belo, o Homem de Palavra(s) juntou-se hoje a nós, e já é a 11ª vez que o faz - e é sempre muito bem vindo. A seguir a ele, Uri Caine, numa fantástica onda jazística, tem mais uma bela interpretação ao piano]


No passeio do Ginjal, bem junto ao Tejo
(desejo uma vida longa, feliz e muito enamorada a este casal)




                                           Tu trazes até mim a tua longa mão
                                           estende-la como uma ponte entre nós dois inverno e verão
                                           garantes que ela tem por trás o coração
                                           e no entanto só te chamo irmão
                                           Cada um de nós é como antes uma solidão
                                           e nada significa a nossa saudação


                                            ['Inverno e Verão' de Ruy Belo in 'Homem de Palavra[s]]

/\



Acomodaste-me
num cantinho resguardado
do teu peito
Aqueço-te
Aqueço 
a superfície rugosa dos teus dias
Sinto-me útil
como um bálsamo,
um manipulado farmacêutico
Chamas-me 
Chamas-lhe 
amor?


[Poema de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]