Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

08 julho, 2013

Somos blocos de plasticina entregues a mãos infantis e cruéis


Torpes pequenos seres, cruéis seres, inimputáveis criaturinhas, míseras, míseras criaturinhas. Juntam-se em bandos e destroem as casas, as ruas. Atacam as pessoas, roem-lhes a carne, os ossos, sugam-lhes o sangue, depois de lhes terem retirado o ânimo, a esperança. 

Por onde passam fica a ruína. Assistimos à falência, ao desmoronar do que parecia sólido, do que custou tanto a construir. Um dó.

De dia, de noite, sempre, sempre. Já lá vão dois anos. E a desgraça continua sem que os consigamos deter. Somos plasticina, somos menos que isso, somos nada. Estamos a ser desfeitos às mãos imaturas e cruéis de impiedosos e ignaros pequenos seres.



[Abaixo da casa em ruínas, chega de novo um Poeta muito cá da casa, Luís Filipe Castro Mendes e chega trazendo novas dos tempos de chumbo que atravessamos. A seguir, música e intérpretes portugueses: os Dead Combo]



Uma parede partida e pintada no Ginjal



                                                      Pouca realidade nos cerca de noite,
                                                      quando todos se calam à nossa volta
                                                      e as coisas se acomodam no escuro, como se fosse o seu natural.

                                                      E nós, que deixámos toda a espantosa realidade do mundo
                                                      amassar-nos até aos ossos,
                                                      olhamos para a noite com a estranheza
                                                      de não podermos mais ser nós próprios.

                                                      Somos blocos de plasticina entregues a mãos infantis
                                                      e cruéis.




                                                      ['Noite impassível' de Luís Filipe Castro Mendes in 'Lendas da Índia']


Dead Combo interpretam "Esse Olhar Que Era Só Teu"


05 julho, 2013

António Aleixo, na terra acho na terra deixo



Vinho que vai para vinagre   
Não retrocede o caminho;
Só por obra de milagre,
Pode de novo ser vinho.


Vós que lá do vosso império
Prometeis um mundo novo,
Calai-vos, que pode o povo
Qu'rer um mundo novo a sério.


Uma mosca sem valor  
Poisa, c'o a mesma alegria,
Na careca de um doutor
Como em qualquer porcaria.


Versos do poeta António Aleixo (1899-1949), recitados por Mário Viegas




04 julho, 2013

Silêncio é uma palavra impossível. Não há silêncio no cosmo e nem em cada um de nós.


Fugindo do ruído que me polui as entranhas, desloco-me até à beira do rio. Tardes quentes, quase abafadas, estas. Chego-me à beira do cais, tento que alguma aragem suba das águas azuis e me refresque a alma. Mas não consigo. Não há nem um sopro. O ar está quente, abúlico.

Há um estranho silêncio, pesado, no ar. Não há gaivotas, não há gatos, não há ondulação. Não passa um único barco. Parece que o mundo parou. Abafado, pesado, parado - assim está o ar, assim está o tempo, estes tempos.

E, então, eis que vejo um homem entrando com uma bicicleta para dentro desta grande casa arruinada. Não sei o que busca ele, entrando assim pela janela. Imagem dissonante, esta. Dir-se-ia que a única coisa com vida neste espaço belo e decadente é algo que parece não fazer sentido.

Talvez o homem busque, tal como eu, um silêncio puro, um ar limpo. Talvez no interior desta grande casa ele encontre a frescura, o aconchego de uma sombra, a protecção de sete paredes, sete sombras. Talvez procure ouvir o eco da sua respiração e nada mais que isso. Ou nem isso.

No entanto, aí chegado, o homem e a sua inseparável bicicleta, ele irá reparar que não há silêncio absoluto, não há pureza total, nem limpidez perfeita. Há apenas a rarefacção do momento. Há apenas solidão. Há apenas a companhia constante do pulsar do coração. O sangue que corre dentro de nós como um rio azul numa tarde de verão. Quase silencioso. Quase parado.




[Neste verão quente (em duplo sentido), trago aqui ao Ginjal um outro novo poeta, António Barahona. A seguir, uma vez mais, a arte de Pavel Psorcl ocupa-se de nós. Desta vez ele toca Saint-Säens]


Ginjal ao entardecer



                                                     Silêncio é uma palavra impossível.
                                                     Não corresponde a nenhuma realidade.
                                                     Não há silêncio no cosmos
                                                     nem em cada um de nós.
                                                     Numa sala sem eco,
                                                     entre sete paredes de cimento isolante,
                                                     ouve-se ecoar a circulação
                                                     do nosso próprio sangue.


[Poema da pag 137 de António Barahona in 'Raspar o fundo da gaveta e enfunar uma gávea']

Pavel Sporcl interpreta Saint-Saens - Introduction and Rondo Capriccioso op.28


01 julho, 2013

A tentação fita-me como um gato


Ah os teus olhos que me tentam, me desafiam, me desequilibram, ah os teus olhos nus, impúdicos, maliciosos. Sorris com ar de quem me está a imaginar nua, de quem sabe, de antemão, que me vou desnudar para ti. Malandro. Convencido. Olhas-me e derrubas-me com o teu olhar vadio, arriscas, ah se arriscas. 

Arriscas tanto. Olha se eu me viro a ti... Quem te diz que o não farei? Sabes lá se não te vou arranhar todo?

Mas arriscas, gostas de arriscar, a tua carne gosta de me tentar.

Passas a língua indecente ao de leve pelos lábios, e olhas-me lentamente, e não sei se sabes que eu tenho tanta dificuldade em resistir a tentações... Espreitas-me o decote e nem disfarças, espreitas-me as pernas e queres que eu veja que me espreitas, guloso, olhos gulosos, lábios gulosos e vejo que o teu corpo todo se levanta para me desafiares ainda melhor. Que descarado, que descarado.

E eu, pobre gata, inocente gata, ingénua, inocente, coquette, olho-te com olhos de menina. E finjo que sou uma menina assustada, uma gatinha inexperiente, temerosa, e finjo que não quero que te aproximes, e deixo que me olhes como se tivesses que vencer o meu pudor. Eu, gatinha, faço de conta que receio esses impúdicos avanços, gatinha de olhos límpidos e virgens. Mas deixo que te aproximes, deixo que me espreites, que me tentes. Deixo, deixo, tu sabes que deixo, mas sabes que eu gosto que me tentes, malandro, vadio.

Ah o que eu gosto de uma boa tentação... Sou uma gata vadia, sabes.




[Abaixo da gata do Ginjal, uma nova Poetisa: Marta Chaves. Boas descobertas as que me estão a aparecer debaixo destes Telhados de Vidro. A seguir a raça de Pavel Sporcl interpretando Tchaikovsky]


Uma gatinha no Ginjal



                                                  A tentação fita-me como um gato.
                                                  Desses que não gostamos
                                                  de ver passear nos parapeitos
                                                  num desafio de gravidade
                                                  que nos parece desnecessário e arriscado,
                                                  embora alto e corajoso.


['Guarda-Mor' de Marta Chaves in Telhados de Vidro, nº 18]


Pavel Sporcl interpreta Tchaikovsky - Concerto para Violino (3º mov)