Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

25 outubro, 2013

A eternidade do instante, nua, eu a faço tua.


Por esta ponte passámos ambos a caminho do calor partilhado, da pele com pele, da luz nos nossos corpos, do mar nos nossos poros. 

Lambias-me. 

Sabes a sal. 
- Mas como se ainda não fui ao mar? 
Sabes a açúcar. 
- Mas como se ainda não estou madura? 

Depois aventuravas-te. 

É tão doce o teu sumo
- Então não o bebas todo, que ainda te faz mal.

Ríamo-nos os dois, brincando na areia, como animais sem dono, sem moral, sem lei. Tudo podíamos. 

Agora a ponte não vai dar a lado nenhum, já o sabemos, uma sabedoria que a erosão do tempo nos ensinou. Mas, agora, cada pequeno instante nosso é eterno e nós seguramo-lo com cuidado para que ele contenha toda a memória do passado e todos os sonhos do futuro. E eu enrosco-me toda na curva da tua mão, para sempre tua, intocada, nua.



[Uma vez mais a Poetisa Joana Lapa sobre quem ainda não consegui formar opinião. A seguir, voltamos a ter jazz com Donny McCaslin ]


A Caparica



                                                O fruto da luz, extasiado,
                                                dádiva do espaço,
                                                o meu corpo extenso e revelado,
                                                o seu ouro, intocada magia,
                                                os traços que deixou na areia,
                                                o esplendor do sol ao meio-dia,
                                                eu tos ofereço.
                                                A eternidade do instante, nua,
                                                eu a faço tua.



['Eternidade da beleza' de Joana Lapa in 'Lettera Amorosa']

*

nde pára???
Onde paira a gaivota mais bela que conheço? perguntaste
Não sei
Enquanto andámos arredados
e nas falésias do sul comparavas cada gaivota empoleirada
com a gaivota do Ginjal
cansou
e atravessou a ponte
com aquele porte que dizias não haver igual

A altivez da gaivota do Ginjal partiu com dignidade
cansada como nós
de acreditar
que destes nossos mares
ainda nascerá peixe
para alimentar a multidão entristecida

partiu
cansada de esperar
que
(de novo)
do alto da montanha
alguém MULTIPLIQUE
e depois DIVIDA



[Poema de Era uma Vez num comentário aqui abaixo]

Dave Douglas & Donny McCaslin Keystone Special 5tet interpretam Moonshine




Dave Douglas (trumpet), 
Donny McCaslin (tenor sax), 
Jason Lindner (piano & keyboards), 
Tim Lefebrve (electric bass), 
Mark Guiliana (drums)


23 outubro, 2013

O teu corpo assombrou a noite com a sua luz inteira


Há tanto tempo que não ouço a tua voz. Raramente me lembro de ti, sabes? Ficaste lá atrás num dia de verão, numa imagem num espelho, nós dois abraçados, iluminados pela luz doce de uma tarde muito terna. Há tanto tempo. Terá sido verdade? O teu sorriso doce, os teus braços carinhosos, os teus beijos adolescentes. A tua voz. talvez tenha sido um sonho, já não sei.

Há muito tempo.

Nem a tua recordação já vem aconchegar-se a mim, na cama, enquanto durmo. Talvez chegue um dia em que nem vou lembrar-me do teu nome. Terás, então, também desaparecido do espelho que ainda conserva o teu sorriso, o nosso abraço apaixonado.



[Abaixo da cidade que hesita entre o sono e o aconchego, estreia-se uma nova voz: Joana Lapa. Ainda não a conheci o suficiente para saber se vai voltar. Mas, hoje, aqui, dou-lhe as boas vindas. Logo a seguir, continuamos com jazz: Donny McCaslin Group]


Casario da beira Tejo à noite


                                                   Por não ter ouvido hoje a tua voz,
                                                   o teu corpo assombrou a noite
                                                   com a sua luz inteira.



['Ausência III' de Joana Lapa in Lettera Amorosa, Iluminações e Sombras]


Donny McCaslin com Tim Lefebvre, Mark Guiliana, Jason Lindner @ 55 Bar NYC - "Stadium Jazz"



Donny McCaslin-tenor sax
Tim Lefebvre-bass
Mark Guiliana-drums
Jason Lindner-keys

21 outubro, 2013

Vejo o voo brando de uma lágrima


Vejo o voo solto de uma ave que escorre sobre as águas, vejo a paisagem que parece virtual, vejo uma praia abandonada, despojos sobre as areias.

Há um pântano que alastra nas nossas memórias, sonhos que ficam vazios, olhares que se perdem sobre as casas em ruínas.

Nada sei. Nada. Não sei se são paredes gastas, saudades, palavras que se perderam dos corpos, túmulos tristes, não sei.

O meu olhar nada sabe. Se é céu, se são águas, se é uma cidade sem pessoas dentro, pessoas sem coração no peito, mãos gastas, balas perdidas. 

A ave voa em silêncio sobre um rio que outrora foi um destino e que agora quase parece uma imóvel lápide.

Olho. E então vejo um pai e uma filha sozinhos, silenciosos, olhando as águas. E percebo que o que vejo não é o voo de uma ave mas o voo brando de uma lágrima. Uma lágrima que se perdeu de mim e que hesita entre o céu e a água.



[Abaixo da paisagem silenciosa do Ginjal, temos João Miguel Fernandes Jorge, um Poeta que é sempre aqui muito bem vindo. E, a seguir, continuamos com jazz, com o Donny McCaslin Group: uma bela música]



Num dos cais junto a uma das pequenas praias do Ginjal.
E o Tejo imóvel, os veleiros, os grandes cruzeiros, Lisboa



                                       Vejo o voo brando de uma lágrima, eu
                                       que fui o servidor de uma bala perdida
                                       e em cada novo dia o sol sobre a colina,
                                       sino que rebate a ondulante linha - o

                                       som seco e húmido, verão e inverno por
                                       todas as partes, aqui, onde queimaram
                                       gente, e de onde ninguém saíu para
                                       cumprir a lenta panorâmica de um

                                       destino. Na canção da manhã as ruínas
                                       ocupam-se das areias, do pântano da memória, as
                                       pedras derrubadas querem voltar a ser uma

                                       casa - nuvem que obscurece a lápide
                                       de um túmulo vazio. Arde no fogo o
                                       interior da terra. E a água transforma-a no
                                                                    céu verdadeiro.



[Poema XVII de João Miguel Fernandes Jorge in Oferenda, com ilustrações de Jorge Pinheiro]

O Donny McCaslin Group interpreta Madonna



Donny McCaslin - Tenor Sax
David Binney - Alto Sax
Ben Monder - Guitar
Scott Colley - Bass
Adam Cruz - Drums

17 outubro, 2013

Por dever ser divagaria naquele seu sem rumo olhar


Não quero nada em particular. Vou andando e pousando o olhar onde calha. E vejo as águas que correm, os pássaros que partem, os veleiros que passeiam, as árvores que ocultam a cidade magnífica.

Caminho errantemente pelo prazer de aspirar a maresia e de sentir o frescor a lavar-me a pele.

Mas reparo, então, que não sou a única.

Escondo-me, escondendo o olhar atrás da lente e vejo alguém que, como eu, caminha sem destino. Os passos são decididos, pisam sem se deter o grande lajedo do terraço sobre o rio.

Penso: leva-me contigo - mas não me perguntes quem sou.

Perco-me nestes devaneios: amores anónimos, margens sem rios, velas sem veleiros, anjos sem malícia, cavaleiros que passam rente ao rio montados em cavalos de espuma.

E então, quando estou nisto, sinto um braço sobre os ombros. Anda. E eu vou. Nada pergunto. É ele, o meu cavaleiro das vastas marés. Reparo no andar: é o mesmo, a mesma passada confiante. Pergunto-lhe: Confias, então, em mim?

Ri-se, Claro, as gaivotas são as aves mais confiáveis do mundo. E são livres que é como eu gosto das mulheres.



[Abaixo dos passos sobre o lajedo, um belo poema de Maria Andresen. Tanto que eu gosto dos (por vezes) insólitos poemas de Maria Andersen, filha de Sophia. Logo a seguir mais um momento de jazz na voz de Cécile Mc Lorin Salvant]


Na Praia das Bicas no Ginjal



                                                 Não propriamente um lugar
                                                 para pousar os olhos, nem
                                                 isso queria ou permitindo lhe seria
                                                 querer pois que antes de mais
                                                 por dever ser divagaria
                                                 naquele seu sem rumo olhar
                                                 de foragida



['Sem lugar' de Maria Andresen in 'Livro das Passagens']


Cécile Mc Lorin Salvant interpreta "It ain't necessarily so"




16 outubro, 2013

Um amor que desaparece, um desacerto


Despenhei-me do alto do meu sonho. Pensava que vivíamos os dois numa casa comum, que a mão que me davas era prova de afecto, pensava tantas coisas. E estava, afinal, tão enganada. Tudo o que tinha por certo era apenas um engano, um desacerto.

Sem aviso prévio, partiste e eu fiquei partida por dentro. Despenhei-me, caída para sempre num chão que se esvaíu sob o meu corpo.

Quem por mim passou disse apenas 'aqui jaz um sonho' e seguiu indiferente. Morrem tantos sonhos todos os dias...



[Abaixo da lua, um poema de João Vasco Coelho e, logo a seguir, mais um belo momento de jazz. Seria bom que Cecile conseguisse animar este espaço, hoje tão desolado]


A lua sobre uma casa em ruínas no Ginjal



                                            Um amor que desaparece,
                                            um desacerto
                                            que marca um voo a prumo,

                                            ainda ontem o sabia,
                                            não sabia mesmo nada.



[Desacerto de João Vasco Coelho in 'Na ordem do dia']

14 outubro, 2013

O poeta morreu, uma folha arde


Subias, Poeta, para do alto melhor veres o mar, as copas das árvores, o voo das aves, a solidão dos homens.

Subias, Poeta, para do alto mais perto do céu de sentires, anjo sem asas, anjo branco e mudo, subias estes degraus para tentares entrar nas nuvens, no coração dos pássaros.

Tantas vezes, pela calada da noite, te esgueiravas por estes degraus acima, subindo, subindo, sabendo que estes degraus não levam a lado nenhum.

Até que um dia, Poeta, caíste no vazio. Contigo tombaram as folhas das árvores, contigo tombaram os sonhos.

Sobram os degraus puídos pelos teus passos cansados e que, aos poucos, vão ficando azuis como o céu onde talvez agora voes livre e cheio de futuro ou como as águas do rio onde talvez tenhas mergulhado com os bolsos pesados de amargura.

Ah, Poeta porque te foste?



[Abaixo da escada do Jardim do Ginjal, um poema de Abel Neves que nos leva com ele escada acima. A seguir, uma bela canção. É Cecile McLorin Salvant que aqui nos traz um momento de jazz.]



Escada que não leva a lado nenhum no Jardim do Ginjal



                                               vêem-se os degraus que subiu
                                               nenhum abismo aos lados nem acima
                                               só o polido calcário do desgaste
                                               o poeta morreu       uma folha arde
                                               bordada com as últimas palavras
                                               é um branco sujo de caminhar na neve
                                               são os degraus



[Poema da pag.31 de Abel Neves in Quasi Stellar]

Cecile McLorin Salvant interpreta "If This Isn't Love"





Há vozes onde se espelha a vastidão dos séculos


Pelo batimento do meu coração percebo que talvez tenha passado por aqui aquele pelo qual ele tanto bate.

Há quem diga que no peito tenho uma ferida, sangue escorrendo, silêncio, um doloroso vazio. Não é verdade. Dentro de mim tenho um coração fremente, saudoso, é certo, mas ansioso. Ponho a mão no peito e sinto-o, quase o ouço, peço-lhe que se aquiete. Tenho vontade de lhe dizer que o dono já vem.

Por aqui percorro estes caminhos, procuro nas águas marcas de quem por aqui passou, pegadas, palavras esquecidas, procuro nas paredes sombras, restos de abraços, umas letras riscando a superfície. Talvez descubra algum fiapo que me leve até aquele de quem um dia fui tão próxima. Quem tão pouco tem, a qualquer coisa se agarra com esperança.

De dentro das casas em ruínas vêm suspiros, respirações, sons inesperados. Talvez sejam gatos amando-se na noite, talvez sejam apenas sombras procurando os corpos de onde se desprenderam. Por vezes detenho-me. Tento perceber que sons são aqueles mas depois afasto-me e quase corro, tenho medo, não sei que vultos são estes, que vozes são estas que vêm de tempos muito antigos, que escondem segredos sem perdão. Mas volto sempre: pode ser que um dia reconheça a voz daquele de quem o meu coração tantas saudades tem.




[Abaixo dos reflexos e das sombras do cais rente ao Tejo, um poema de José Alberto Oliveira deixa um rasto de inquietação que atordoa o coração e, logo a seguir, estreia-se uma grande intérprete, Cecile McLorin Salvant. É o jazz de volta ao Ginjal.]




O Ginjal à noite, o cais dos cacilheiros



                                                   Há vozes onde se espelha
                                                   a vastidão dos séculos
                                                   e os segredos mais subtis
                                                   da Natureza; há sintomas,
                                                   sinais, pégadas nos caminhos
                                                   do deserto, que evocam
                                                   inquietações tão fundas
                                                   que se corre o risco de ficar
                                                   atónito, a tropeçar na pauta
                                                   de uma história, que se teima
                                                   em não esquecer. Consegue-se,
                                                   então, ouvir a pausa que separa
                                                   os batimentos do coração.


['Semiologia (para o António Barahona) de José Alberto Oliveira in Telhados de Vidro, nº18]

10 outubro, 2013

Kate Aldrich e Daniela Dessì interpretam 'Sola, furtiva al tempio' da ópera Norma de Bellini



Norma: Daniela Dessì
Adalgisa: Kate Aldrich

e todas as improváveis certezas dissolvem-se nos lençóis em desordem


Quando estou deitada, o meu cabelo espalha-se na almofada, tapa-me o rosto. É um mar onde gostas de mergulhar. E eu gosto de te sentir a cheirar-me, a navegar sobre o meu corpo, gosto de sentir as tuas mãos a deslizar sobre a minha pele.

A janela do quarto está sempre aberta. Gosto de sentir o ar fresco, a humidade da maresia, gosto que a frialdade da noite chegue até mim. Queria que as noites fossem todas assim: eu nua, o cabelo como ondas espalhando-se na areia, tu junto a mim, aquecendo o meu corpo disponível. Carícias, beijos, palavras inocentes, uma respiração a dois - não seria preciso muito mais.

Mas a noite traz-me as sirenes dos navios, traz-me a lembrança das partidas. Sei que vais partir. Um dia vais partir.

Um dia vou ficar nesta cama como uma árvore arrancada num areal. Um dia a noite vai trazer-me os sons da solidão. Talvez, então, vá até à janela e olhe o farol junto ao rio e pense que algures, lá longe, muito longe, estejas tu. 

Estarei à tua espera porque sei que sempre voltas, sei que não há outros braços que te abracem como os meus. É que os meus são braços feitos de palavras de amor, de liberdade, braços que jamais te quererão prender. És tu, marinheiro de muitos mares, que me costumas dizer que nunca navegas por mares tão atraentes como o meu corpo, como a espuma do meu cabelo rebentando nos lençóis. 

São tão atraentes os abismos, costumas tu sussurrar-me ao ouvido antes de te fazeres ao mar.



[Abaixo do casal que conversa junto ao farol que ilumina o rio, um poema de uma Senhora Dona Poetisa de quem muito gosto: Alice Vieira. E, a seguir, temos mais um belíssimo momento: Rossini interpretado por Kate Aldrich e Marianna Pizzolato]



Farol de Cacilhas à noite



                              Depois do ruído do elevador e
                              das sirenes do nevoeiro
                              começa-se     lentamente      a recear
                              a noite

                              porque não vai haver tempo de dizer
                              penso no teu cabelo como no mar

                              e todas as improváveis certezas dissolvem-se
                              nos lençóis em desordem
                              no caos da partida



                             ['Dos velhos dias', 6, de Alice Vieira in 'O que dói às aves']



09 outubro, 2013

Kate Aldrich e Marianna Pizzolato interpretam ZELMIRA de Gioachino Rossini



Zelmira: Kate Aldrich
Emma: Marianna Pizzolato

Com os olhos bem abertos abarco toda a queda. Eu sei, é outono.


Não tens mundo, dizias-me. Encolhia-me, eu, encostado à parede na beira do cais, olhando o rio e os barcos que nele buscam outros mundos.

Não tens mundo, tantas vezes o ouvi que quase acabei convencido.

Mas, no fundo de mim, sabia que não tinhas razão.

O mundo para mim é o que vejo e o que sonho e as palavras que digo em silêncio e que constroem caminhos que me levam onde nunca fui. Mas nunca fui capaz de to dizer. E tanto que queria. 

De todas as vezes que percorri estes caminhos, sozinho, sonhador, olhando as asas dos pássaros e as velas dos barcos, pensava que um dia te iria dizer que tenho mundo, sim, um mundo muito puro, muito vasto, sem limites, sem medos.

E esse dia chegou, foi hoje: hoje enchi-me de coragem. A porta estava aberta, a escada escura subindo na direcção da luz e, ao fundo, a buganvília em flor, vibrante, cor de fogo. Subi. Devagar. Coração numa ânsia. Relembrei todas as palavras com que, ao longo de anos, fui enchendo todo o espaço do meu imenso mundo.

Depois sentei-me no último degrau e fiquei a olhar o rio lá em baixo. Esperei por ti até ser noite. Vi o sol afogar-se no rio, em fogo. Tive vontade de me atirar, em queda livre, despenhar-me (na esperança que aparecesses para me salvar).

É outono e eu ainda espero por ti. Quero que entres no meu mundo. 

Esperarei o tempo que for preciso. Até ao fim dos tempos, até ao fim do mundo.




[Abaixo da buganvília que espera no cimo da escada, temos um poema de Armando Silva Carvalho e, a seguir, Kate Aldrich, uma grande intérprete, traz-nos Carmen de Bizet]



Escada numa casa arruinada no Ginjal



                                                 Entrego estes frutos minerais
                                                 tardios.
                                                 Envolvo numa sombra a mão
                                                 que mos recebe.
                                                 A isso chamo eu mundo.
                                                 Entrego mais e mais, amei falsificando,
                                                 e ajeito o pescoço à lâmina
                                                 dos dias.
                                                 Com os olhos bem abertos abarco
                                                 toda a queda.
                                                 Eu sei, é o outono.



[Poema da página 34 de Armando Silva Carvalho in Canis Dei]

Kate Aldrich interpreta "L' amour est un oiseau rebelle" (Habanera) da opéra Carmen de George Bizet


08 outubro, 2013

um mecanismo simples mas delicado


E, no entanto, é tudo tão simples. A ondulação da escrita, o desenho das letras, a atracção de umas sobre outras formando palavras, o tronco das árvores, a terra em que mergulham, o azul para que crescem, tudo tão simples.

Para quê fingir que tudo é complexo, que há mistérios ocultos nas mitologias, que há gramáticas que desvendam segredos, que há deuses e outros labirintos, que é preciso recuar ao grego e ao latim? Para quê?

Tudo tão simples. O rio que corre vagaroso e azul, uma ponte branca e elegante que une as margens, a sombra, a luz, os passos em volta de quem por aqui respira a maresia e a fragilidade das coisas perenes, a respiração, o sangue a correr dentro dos canais que atravessam o corpo. Tudo tão simples, amor.

Deixa que as tuas pálpebras desçam, deixa que as minhas mãos desçam pelo teu corpo.

Ou dança comigo. 

Ou diz-me ao ouvido coisa nenhuma. Deixa que seja eu a adivinhar os símbolos do teu desejo no desenho dos troncos, deixa.

Depois deixa que te ensine a ler.

Meu amor.



[Abaixo da escrita oriental desenhada pelas árvores, um poema de Manuel Gusmão e quanto melhor o vou conhecendo mais vou gostando dele. A seguir é Verdi que aqui nos aparece, pela mão de duas grandes intérpretes, Kate Aldrich e Adina Aaron.]




A Ponte Vasco da Gama, o Tejo, e árvores no Jardim do Ginjal 



                                       um mecanismo simples mas delicado. O sol
                                       acende as árvores na luz e no equilíbrio dos mundos
                                       e imprime o seu leve gesto na tua retina; em resposta
                                       as árvores, com a sua sombra, desenham, na parede
                                       branca, e sonham, nas tuas pálpebras descendo,

                                       uma escrita oriental, levemente dançando.



['Da linguagem das árvores e do vento', 1, de Manuel Gusmão in 'Pequeno Tratado das Figuras']

Kate Aldrich e Adina AaronAida interpretam Verdi - Amneris' Duet da Aida


07 outubro, 2013

Deus vive só e eu sou o único que toca a sua infinita lágrima


Caminho sem saber para onde vou, os caminhos deixaram de levar a clareiras, caminhamos e parece que estamos a afundar-nos num labirinto infecto. No meio desta solidão, olho uma parede que parece sorrir. Mas pode uma parede sorrir, Deus meu?

Olho melhor. Uns olhos abertos espreitam-me de trás de uma janela. Mas são uns olhos que não pertencem a um corpo. São uns olhos colados a um vidro. Mas o que poderão ver uns olhos que não estão ligados a um coração, meu Deus?

Continuo, pois, sozinha. Alguém desenhou um sorriso numa parede em ruínas mas a casa continua fechada, vazia, triste. Em vez de um sorriso, deveria ter sido desenhada uma lágrima. Uma lágrima escorrendo pelas paredes, pelos rostos do meu triste país, pelo meu rosto.

Termino as minhas perguntas com um grito para o vazio, mas em vez de vazio eu digo deus. No fundo eu gostava que houvesse um deus que nos pudesse salvar. No entanto, nenhuma voz me responde. Apenas as cordas que amarram os navios ao cais gemem mas nos gemidos eu não ouço nenhuma resposta, apenas lágrimas, mais lágrimas. 

Não sei onde está o deus em que tanta gente acredita que não responde aos nossos lamentos nem cala os demónios que as trevas vêm vomitando sobre o meu país. Não sei.

Podia rezar mas não sei rezar. Limito-me a tentar tocar a lágrima de deus, a sua infinita lágrima.

Onde estás deus meu que não secas as nossas lágrimas? 



[Abaixo da parede que sorri, temos mais um das belos e simples poemas de Mia Couto. A seguir temos um grande momento: duas mulheres com grandes vozes interpretam Norma de Bellini]



Janela e parede no Ginjal



                                                 Deixei de rezar.

                                                 Nas paredes
                                                 rabiscadas de obscenidades
                                                 nenhum santo me escuta.

                                                 Deus vive só
                                                 e eu sou o único
                                                 que toca a sua infinita lágrima.

                                                 Deixei de rezar.

                                                 Deus está numa outra prisão.



['Versos do Prisioneiro (1) de Mia Couta in 'idades cidades divindades']

Kate Aldrich e Daniela Dessi interpretam "Mira, o Norma" da ópera Norma de Vincenzo Bellini




04 outubro, 2013

serão estes os cálamos calados de setembro?


Cálamos jazentes nas praias de outono, sol dourado espraiado nos areais cansados, pássaros ausentes, ninguém, nada, até as águas se recolheram sem deixarem sequer conchas, ramos. Nada. Apenas o esqueleto de árvores de outras paragens. Corpos desenraizados.

Onde os cabelos das mulheres que se entregaram aos deuses que habitam as cavernas profundas, onde o olhar feliz dos deuses que as possuem, onde os cavalos que antes passavam sôfregos pela rebentação das ondas, onde o voo libertino das gaivotas loucas?

Ansiedade, um estranho silêncio, espera, braços que se erguem ao céu para logo caírem sem alento, olhos vazios, paredes que o tempo cobrirá daquela decadente velatura que anuncia a derrota, a sombra de gatos que partiram, lamentos, penas.

Já não há ninguém para sequer tentar perceber o que aconteceu. Partiram todos. E levaram consigo a explicação para tamanho abandono. É setembro e talvez a seguir venha o choro, as chuvas, o frio. 

Nunca se está suficientemente mal, têmo-lo aprendido.



[Abaixo da árvore arrastada pelo Tejo até à praia do Ginjal, um poema de Vasco Graça Moura. Logo a seguir um momento que prenuncia o reencontro que talvez aconteça lá para a Primavera: o trio de Keith Jarrett interpreta uma música linda]


Numa praia do Ginjal



                                                serão estes os cálamos
                                                calados de setembro?
                                                onda trazendo vénus
                                                seus cabelos dispersos?

                                                ou água aproximando
                                                sedas de sombra e luz
                                                do nó cego intrincado, da
                                                troca indesatável?

                                                será esta a luz rasa
                                                da praia perturbada? a velatura
                                                de alguma flora útil? a medula
                                                dos lugares de setembro?

                                                este é o rigor da ansiedade,
                                                o reencontro.



['nó cego, o regresso', X, de Vasco Graça Moura in poesia reunida]

03 outubro, 2013

Keith Jarrett Trio interpreta 'I fall in love too easily'



Keith Jarrett, Gary Peacock, Jack DeJohnette 

Devolve-me esse corpo


O teu olhar pousa nas águas sem saber quanto desejo que pousasse antes em mim. Olhas o rio e o teu olhar navega e é veleiro e é pássaro e é nuvem. Não sabes que estou aqui olhando o teu corpo e querendo que me vejas, que o teu corpo se abra para mim. 

Em silêncio espreito-te, em silêncio, que medo que me vejas, que te zangues, que te assustes, que me aches ridículo. Mas talvez não. Talvez me queiras. Talvez me chames, talvez queiras que te abrace. Tanto que eu o desejo.

Vejo-te entre as árvores, um corpo pousado entre as árvores e nem vou dizer que és uma flor ou um pássaro ou um gato, nem quero que saibas que tenho pensamentos tão inocentes. 

Levanta-se uma aragem, as folhas agitam-se, escondo-me mais, tenho medo que espreites, que me vejas. Fecho os olhos, quase não respiro. 

E, então, quase como se sonhasse, penso que te estou a ver dourada pelo sol, tão serena. Terei eu alguma vez esse corpo tão intangível? Ter-te-ei alguma vez nos meus braços e eu navegando dentro de ti? 

Depois ouço um bater de asas, o grito livre de um pássaro. Abro os olhos.

O meu coração pára: já lá não estás. 

Voaste. E nunca saberás que, entre as árvores, em silêncio, coração exangue nas mãos, um amante inventado para sempre ficará a sonhar com o teu corpo distante.



[Abaixo da mulher pousada junto ao rio, mais um poema de Pedro Tamen. E, logo a seguir, Bach pela mão de um grande intérprete, Keith Jarrett]





                                               Devolve-me esse corpo.
                                               Esse que não tive, que não tenho
                                               mais que no fugaz olhar
                                               por cima do meu ombro
                                               porém não para trás

                                               Devolve-me o que não é meu
                                               nem nunca será meu,
                                               tal como o pássaro
                                               que por lá fora canta
                                               fora da minha mão,
                                               fora do meu corpo.

                                               Devolve-me esse pássaro
                                               e poisa nesse ramo
                                               que o meu olhar alcança.



                                               [Poema 44 de Pedro Tamen in Rua de Nenhures]

01 outubro, 2013

O portugal futuro - poema de Ruy Belo dito por Mário Viegas sobre música de David Lynch e voz de Chrysta Bell, num belo filme realizado por Cine Povero


Tenho andada um bocado afastada do meu Ginjal e Lisboa. O calor desconcentra-me e, para estar aqui, como gosto de estar, tenho que estar inteira, mergulhada mesmo, e depois deixar que as palavras sigam o seu próprio rumo. Talvez, agora que a chuva voltou, eu consiga retomar a minha assiduidade.

Hoje ainda não são as minhas histórias, as minhas reinterpretações de poemas, os meus voos sem rede.

Hoje é um dos belos filmes do Cine Povero no qual, entre outras fotografias (ver texto abaixo), podem ver-se imagens colhidas pelo próprio realizador no Ginjal. 




Permito-me transcrever o texto que se pode ver junto ao filme:

Quatro estrelas brilham neste vídeo.

(1) "O portugal futuro" (grafado com minúscula no original), poema de Ruy Belo publicado em «Homem de Palavra(s)» (1970). 
(2) A sua declamação por Mário Viegas, em «Poemas de Bibe» (1990), album em parceria com Manuela de Freitas. 
(3) Algumas fotografias (cinco) de um dos maiores fotógrafos de sempre, Henri Cartier-Bresson. 
(4) E o "Polish Poem", escrito por David Lynch e Chrysta Bell e cantado pela última. O vídeo reproduz os últimos versos, com que termina o filme «Inland Empire»: 

"I sing this poem to you
Is this mystery unfolding
As a wing floating?
Something is coming true
The dream of an innocent child...
Something is happening
Something is happening"


POEMA DE RUY BELO

o portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro.

*