Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

04 julho, 2016

A solidão de um anjo cego abrindo pouco a pouco os olhos





Num lugar distante, perdidas na noite, umas mãos vagueiam entre palavras mudas, pálidas de solidão. Sombras e véus rasgados acariciam o seu rosto e é como se um vago murmúrio sussurrasse lamentos antigos.

Da gentileza desconhece os preceitos, dos gestos galantes ignora a doçura. Quase não fala, apenas escreve e, quando são suas as palavras, elas soam como afiadas lâminas, dolorosas agulhas, ferem, ferem as suas ariscas mãos. Cansados os olhos, cansado o corpo, cansadas as esgotadas mãos que não sabem da luz os afectos, da cor a cortesia, da aragem a carícia.

Memórias, tristezas, inquietações desenham-se sob os seus pés como caminhos na escuridão. Escombros, ruínas no passado, vazio no tempo que se aproxima com cruel lentidão -- assim a sua vida. Em vão, as suas mãos cegas tentam que outras mãos surjam de entre as trevas para agarrar as suas. Mas não sabe procurá-las, não sabe perceber quando alguém se aproxima. Encosta-se, então, à parede, sozinho, perdidas as mãos, perdido o olhar.

Contudo, não chora. Dos olhos, rentes às trevas, há muito que as lágrimas também se evadiram. Agora, deles, escorrem fios de mercúrio, gelados como o sopro de estrelas mortas.


Apagaram-se as luzes. Na memória
vibra a última sombra, a solidão
de um anjo cego abrindo pouco a pouco
os olhos. Desta noite
nascem todas as noites de quem fala
em silêncio e afoga
as suas dores no sangue incandescente
de uma estrela já morta, a cintilar
sob escuros escombros, entre sonhos
ainda por viver. Em cada alma
escorre um fio de mercúrio, essa lágrima
anunciando o paraíso, algures
no interior da treva.


[De Fernando Pinto Amaral in 'Às cegas']

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As fotografias foram feitas no Ginjal. 
A música é de Jocelyn Pook.

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