Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

21 dezembro, 2015

Ah, eu sei agora que é magia





Olhou-me nos olhos como se me inquirisse. Dócil, eu, aproximei-me, devagar. Continuou a olhar-me. Baixei-me, tentei perceber. Olhava-me como se me quisesse dominar, como se me quisesse fazer sentir que tinha que ser eu a ceder. E eu ali, em silêncio, disposta a todos os olhares.

Então desviou os olhos. Olhei-o bem de frente, eu já quase de joelhos, que me olhasse, bchhh, bchhh, bichinho, bchhh, bchhhh, bichinho lindo... Nada. Olha, olha para mim, bchhh, olha, bichinho, bchhhh. Nada.

Não insisti. Tenho o meu orgulho. Não queres, não queiras. 

Mais à frente ainda pensei voltar-me para trás, ver se me seguia, se queria, afinal, a minha companhia. Mas não o fiz. Orgulho, esse grande inimigo dos acasos. Segui o meu caminho.

Dia de gaivotas pensando na vida, contemplando o mundo, dia de gatos sob as árvores, trepando aos muros, deslizando entre sombras. Dia de veleiros brancos, vermelhos, deslizando no azul, entre árvores. Dia de deslumbramentos.


E eu vou caminhando. A terra está macia, a relva está verde, o rio corre azul, o céu abre-se para receber aqueles que querem sentir a serenidade das nuvens que correm devagar ou dos amantes que se abraçam rente às águas, abençoados por quem passa.

Não sei ainda onde me levam os meus passos. Não sei como vim aqui parar. Não sou daqui. Que raízes são estas que se estendem até ao mar? Que asas são estas que se levantam para me levar a voar? Que amor é este que sinto por tudo? 
Pelas palavras, pelas águas, pelos céus, pelos pássaros, pelos barcos, pelos gatos, pelas paredes, pelos olhares recordados, pelos sorrisos imaginados, por quem o meu coração bate, por quem o meu coração aconchega. 
Um amor assim não tem explicação. Parece ilimitado, parece intemporal. E é inocente, alegre, livre. 

E eu caminho, sem explicações, como se fosse uma gata, uma gata deslizando sobre o azul, como se me nascessem asas, como se pudesse ir para o alto, para lá de onde se vêem as belas cidades, os pequenos homens, para lá onde as angústias perdem o motivo, onde os medos são injustificados, lá onde as saudades aumentam, aumentam tanto, lá onde me sinto tão longe, tão perto, tão livre, tão ilimitada, tão tua.

Não sei explicar, não sei mesmo. Mas dizem-me que é  magia, que é imagiação a explicação -- e eu acredito porque é bom acreditar no que não tem explicação.


Ah, eu sei agora que é magia,
que é imagiação a explicação
disto de estar aqui e não ali,
de vir aqui parar,
de vir aqui andar
e ter um chão onde os meus passos
de gazela insegura
se aventuram no escuro.
Eu sei agora algumas coisas
que explicam o que nada poderia explicar,
e o que não sei ainda
irei imaginá-lo numa não sei que paz
que é imagiação.

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Fiz as fotografias este fim-de-semana no Ginjal.
O poema é 'Ela', poema 33, de Um Teatro às Escuras de Pedro Tamen.
Barenboim interpreta de Bach: Goldberg Variations - Aria
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