Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

31 dezembro, 2012

De toda a matéria escura sufocada e contraída nasce o grito claro - Morra 2012, viva 2013!


Prisioneiros de um mundo que não escolhemos, um mundo triste, soturno, escuro, corrompido por outros que não nós, mas também vítimas das nossas más escolhas, da nossa permissividade e passividade, estamos assustados, receosos, tolhidos. Este é um mundo que encerra um sonho que acabou, que se transformou num pesadelo. Não era isto que queríamos.

Escuridão, solidão, medo.

Mas, do mais fundo de nós, arrancaremos um grito claro e, juntos, ajudaremos a refazer o mundo, construiremos de novo o mundo que sonhámos.

Ergueremos as asas e voaremos e, livres, limpos, puros, traçaremos as rotas que queremos percorrer. Nossos serão os caminhos do futuro.

Feliz 2013!



[E dancemos, e festejemos o amor. Que nossas sejam todas as alegrias! Abaixo o Grupo Corpo dança o amor, uma música de Ernesto Lecuona]



Gato ontem no Ginjal



                                           De escadas insubmissas
                                           de fechaduras alerta
                                           de chaves submersas
                                           e roucos subterrâneos
                                           onde a esperança enlouqueceu
                                           de notas dissonantes
                                           dum grito de loucura
                                           de toda a matéria escura
                                           sufocada e contraída
                                           nasce o grito claro


['O grito claro' de António Ramos Rosa in Antologia Poética]



Gaivota ontem no Ginjal, o Tejo e Lisboa belíssimos, limpos, cheios de futuro

Ernesto Lecuona - Grupo Corpo interpreta Mi Corazon. E haja muito amor em 2013



23 dezembro, 2012

Não digo do Natal - digo da nata do tempo que se coalha com o frio


O domingo está a começar e eu hesito em desejar-vos já um bom Natal. É dia 23 de Dezembro, ainda faltam dois dias. E, depois, para mim, Natal é a tradição do dia em família, da troca de presentes, é a alegria e a surpresa das crianças, é a ternura dos olhares e dos sorrisos. Não há religiosidades que nos façam ter outras interpretações para este dia.

Recordo vagamente o nascimento de uma figura corajosa da história de todos os tempos e lembro que os heróis são assim, defendem os seus com a força interior que lhes permite vencer medos, dores, abandonos.

Mas, porque sei que, para a maioria das pessoas, o dia é um dia com uma importância muito especial, sinto-me no dever de desejar uns dias muito felizes, vividos com muito sentimento e alegria.

No entanto, as minhas palavras vão em especial para as pessoas para quem o Natal é um dia como todos os dias, ou um Natal vivido em solidão, ou um dia em que sentem, como um peso terrível, a ausência de sonhos e de sorrisos.

Para vocês, queridos Leitores, que não têm crianças e alegrias por perto, que gostariam de receber abraços calorosos, presentes festivos, e que, pelo contrário, têm lugares vazios à mesa, sombras, ausências, saudades, ou para os que estão doentes, para os que não encontram felicidade num dia assim, vão as minhas palavras.

Recebam, da minha parte, um abraço feito de palavras, recebam o meu carinho e a minha companhia, recebam as minhas imagens de gaivotas rodeando o rio e os homens, recebam os cânticos de crianças (abaixo) que encontrei para vos acompanhar. Entendam, por favor, estas minhas palavras como uma visita, como um abraço caloroso. Estou aqui, deste lado, pensando em vós, agradecendo a vossa companhia, tentando que as minhas palavras cheguem até vós. 

E, apesar de tudo, desejo-vos também um bom Natal.



Este sábado de manhã no Tejo, com o Terreiro do Paço do outro lado e eu no Ginjal



                                        Não digo do Natal – digo da nata
                                        do tempo que se coalha com o frio
                                        e nos fica branquíssima e exacta
                                        nas mãos que não sabem de que cio

                                        nasceu esta semente; mas que invade
                                        esses tempos relíquidos e pardos
                                        e faz assim que o coração se agrade
                                        de terrenos de pedras e de cardos

                                         por dezembros cobertos. Só então
                                         é que descobre dias de brancura
                                         esta nova pupila, outra visão,

                                         e as cores da terra são feroz loucura
                                         moídas numa só, e feitas pão
                                         com que a vida resiste, e anda, e dura.


                                        [Soneto de Pedro Tamen in Memória Indescritível]

Concerto de Natal - Cântico ao Menino - Grupo Coral Infantil da Escola da Porta Nova



Organizado pela Freguesia de Santo Agostinho em Moura e com a colaboração do Grupo Coral e Etnográfico do Ateneu Mourense

19 dezembro, 2012

Uma parte de mim parte sem mim


Estou cá em cima, junto às nuvens, junto à copa das árvores, junto às palavras que voam. 

Daqui de cima te vejo. Caminhas rente à orla do Tejo, percorres os caminhos que o rio deixa na rebentação, caminhas na areia. 

O velho casario está deserto, abandonado. Em dias assim até as gaivotas se afastam, gritando, procurando um amparo que por aqui não encontram.

Vejo-te avançar cabisbaixo. Talvez procures vestígios de outras vidas no rebentar da ondulação, talvez procures vestígios de ti. Talvez nem procures nada, talvez caminhes apenas, vazio, disponível para uma nova vida.

Partiste e, ao partires, partiste-te. Atrás de ti ficou o que foste. Pela frente tens o que serás. E é nesse preciso instante em que o teu passado e o teu futuro se encontram que eu te vejo, percorrendo o imenso silêncio, sozinho, descobrindo o teu caminho, construindo a tua vida. Que seja ela uma vida inteira, a vida com que sonhas. A vida de um homem inteiro, íntegro.



[Abaixo do velho casario e do sempre novo rio, temos o encantamento de um pequeno poema de Mia Couta. Um poema como eu hoje estava mesmo a precisar. Logo a seguir um belo momento de violoncelo, e é ainda a música de Elger]


O casario do Ginjal e o Tejo



                                       Uma parte de mim
                                       parte sem mim
                                       e, assim, partida,
                                       em mim nasce repartida,
                                       ávida e sem fim,
                                       a vida inteira, enfim.



                                        ['Despedida' de Mia Couto in 'idades cidades divindades']

Edward Elger - Sol Gabetta no violoncelo com Danish Radio Symphony Orchestra interpretam Sospiri


18 dezembro, 2012

As coisas do universo são também feitas de vidro, mas soprado


De entre todas as coisas, procuro as transparentes, as que se deixam tocar, as que deixam entrar e passar e a luz.

De entre todas as coisas recolho as que foram moldadas pelo mundo, pela vida, pelo tempo. Procuro as afáveis, as que recolhem os olhares, as palavras de amor.

Um pedaço de pedra, um pedaço de erva, a sombra de um pássaro, o rasto de um navio, o olhar de um gato, uma névoa branca e molhada. Ou o silêncio.

De todas as coisas, escolho as que se confundem com o espaço, as que voam, as que dançam nas minhs mãos, no meu pensamento, as que entram no meu coração.

De todas as coisas transparentes e perfeitas, eu guardo dentro de mim as palavras que me disseste, o teu nome, o meu nome sussurrado ao meu ouvido, o sopro da tua respiração, o bater do teu coração. E o silêncio. 



[Abaixo das minhas palavras que falam de amor, a fotografia do homem que procura coisas perfeitas e, abaixo dele, o poema de Inês Fonseca Santos que fala das coisas do universo e de um certo amor, e mais baixo ainda, logo a seguir, o Salut d'amour de Elger. Estamos, pois, em dia sim] 



Jardim do Ginjal, sobre o Tejo, de frente para Lisboa



                                 São também feitas de vidro,
                                 mas soprado. As coisas do universo habitam
                                 o espaço frio de um nome redondo. Chamam-lhe
                                 esfera. Nenhuma palavra, nenhuma lembrança a parte.
                                 Ensinou-me o poeta a teoria das cordas. Espreito
                                 à transparência da esfera. Os sons não me dão o entendimento das coisas
                                 do universo, apenas do teu nome. Guardo na boca
                                 o gelo da língua
                                 ao pronunciá-lo.

                                 Assim me calo.



                                ['As coisas do universo' de Inês Fonseca Santos in 'As coisas']


Edward Elger - A Berliner Philharmoniker conduzida por Ion Marin interpreta Salut d'amour


Possível é, todavia é fodido em português ir-lhe dando andamento


A câmara deixou de ser clara pois que é chegado o tempo das trevas. À gente da cultura o passos atira-lhes com o da ponte e vai mais uma imperial. Em particular aos poetas o passos atira-lhes com o relvas que de poesia percebe ele. Aos músicos o passos atira-lhes com o gaspar, que para roubar notas não há outro como ele. Aos actores o passos atira-lhes com o moedas já que tanto precisam delas para sobreviver. Pois que é chegado o tempo das trevas.

Aos pobres o passos diz que não andassem metidos no casino, aos velhos o passos diz que vivam de esmolas que a pensão é luxo a que não têm direito. Aos desempregados o passos diz que deixem de ser piegas.

Aos jornalistas e a quem o ouve o passos baralha o sujeito com o predicado, inverte a ordem dos factores, troca-se todo, troca-nos as voltas à vida, o sacana do passos. Pois é chegado o tempo dos relvas. E das trevas.

Aos jovens o passos diz que se ponham daqui para fora, ao presidente diz que chora agora porque não quer que lhe vão à reforma, milionários chama ele aos remediados. E do relvas diz que as acusações são infundadas. Não têm fundo as acusações ao relvas. São tantas que parece que vêm de um poço sem fundo, o sacana do relvas, diz o passos à laurinha. No fim disto tudo, quem fica rico ainda vai ser ele, lamenta-se a laurinha enquanto ajeita a dobra do lençol. Mas isso já é o passos a sonhar. 

Aos alemães o passos diz que o banqueiro diz que aguentam, aguentam, e diz também que os portugueses são fofinhos, muito limpinhos, e aos deputados o gaspar diz devagarinho que eles fazem juízos apressados e o deputado amorim treme na sua enxúndia para dizer que o passos e o relvas e o gaspar são bons, ai tão bons, do melhorzinho que há. O deputado amorim é o máximo, é o máximo, pim pim pim.

São todos tão bons, prrrim pim pim. Todos tão pirosos, tão ignorantes, pim pam pum, e andam todos mal encarados menos o relvas que anda todo rosado e esgargalado, pim pam pum.

E nós andamos fartos deles todos, pum pum pum e, apesar de tanto ruído, ainda conseguimos perceber que para aqui andamos roídos, erodidos, delidos. E fodidos, ai tão fodidos. E pardon my french. Pim pam pum.



[Bom. Hoje saíu-me isto, num registo não usual aqui no Ginjal. Adiante. A culpa é de Vasco Graça Moura que pegou na ponta da minha língua e vá de puxar. Para ver se me desculpam e se se lembram que sou uma erudita, mostro-vos uma fantástica interpretação da malograda Jacqueline du Pré tocando Elger - e agora estou a falar muito a sério]



Mural numa parede do Ginjal



                                                   o decassílabo menos ouvido
                                                   na quarta e sétima leva o acento:
                                                   possível é, todavia é fodido
                                                   em português ir-lhe dando andamento.
                                                   com solidão, natural sentimento,
                                                   fica erodido, doído, delido:
                                                   entre silêncio e ruído é roído
                                                   e um solavanco lhe dá o sustento.


                                                   ['o decassílabo' de Vasco Graça Moura in Poesia Reunida]

Elgar - Jacqueline du Pré interpreta o 4º movimento do Concerto para Violoncelo


16 dezembro, 2012

As palavras mordendo a solidão, atravessadas de alegria e terror, são a grande razão, a única razão


A solidão intransponível, a incompreensão sem remissão, a estranheza de que dá vontade fugir.

Pelo contrário, a atraente largueza dos espaços, o mar, o horizonte aberto e limpo.

E, então, sentindo o vento, eu, daqui, olhando-te ao longe - nós dois tão distantes, quase estrangeiros - penso que não sei se quero transpor esta distância. As minhas pernas, o meu peito, a minha boca. Eu. Eu aqui. Tu, ao longe, distante, visto daqui tão insignificante.

Dizes querer-me. Dizes querer as minhas mãos, os meus afagos, os meus beijos. Fazes poemas em que toda eu estou num altar. Dizes que eu sou a tua razão de viver, a tua única razão. Exageros.

A verdade é que não sabes amar-me como eu quero ser amada. Que me interessa ler que as minhas pernas são colunas triunfantes, que o meu peito é fluido, feito de água, que a minha boca tem a cor de um fruto que apetece comer? Que me interessa isso? São palavras, só palavras.

Onde os gestos? Onde os actos? 

De que me serves tu, estando assim, tão longe de mim? De que me servem palavras loucas quando a minha boca sente o travo tão amargo da solidão?



[Abaixo do belo poema de Eugénio de Andrade, abro a semana dedicada a um novo compositor, Elger. Um prazer a sua música]



Fim de dia à beira do oceano


                               O teu rosto inclinado pelo vento;
                               a feroz brancura dos teus dentes;
                               as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
                               e contudo sombrias, e contudo transparentes;

                               o triunfo cruel das tuas pernas,
                               colunas em repouso se anoitece;
                               o peito raso, claro, feito de água;
                               a boca sossegada onde apetece

                               navegar ou cantar, ou simplesmente ser
                               a cor dum fruto, o peso duma flor;
                               as palavras mordendo a solidão,
                               atravessadas de alegria e de terror,

                               são a grande razão, a única razão.


['Litania' de Eugénio de Andrade in 'Os poemas da minha vida' de Miguel Veiga]

*



Mais do que no riso
na distância
se descobre
o peso doce da ternura
a presença ausente
o halo exacto
de quem está longe.
Tu 
estás presente
no meu silêncio
nos vazios opacos
do meu tempo
estás
mesmo sem estar
Tu
um pedaço assumido de mim.



[Poema de Joaquim Castilho num comentário abaixo]

Edward Elgar - Daniel Barenboim conduz a Chicago Symphony Orchestra interpreta Nimrod (de "Enigma Variations")


13 dezembro, 2012

Não é ainda a pele, apenas um rumor de lã nas camisolas


Quando vier o sol, os pêssegos estarão dourados e a tua pele também. A pele dos pêssegos estará macia, uma penugem loura, doce, e a tua pele também.

Quando vier o sol, os frutos estarão tenros, os gomos carnudos e sumarentos, muito doces. Tu também. Carnuda e sumarenta como eu gosto, saborosa na minha boca.

Quando vier o sol, o feno está maduro, dourado, bom para nos deitarmos em cima dele. Tu também, madura, dourada e macia e eu deitar-me-ei em cima de ti.

Quando vier o sol, o rio ficará brilhante, quieto, uma cama de água macia, linda, e nela navegarão os veleiros. Tu também, brilhante, quieta, macia e eu em ti navegarei.

Agora está frio, eu estou sozinho, e as camisolas não guardaram o teu cheiro. Espero o calor do verão. Até lá continuo sem olhar para trás. 

Sei que virás com o calor, meu amor. E eu já sonho com o teu aroma carnudo, doce, com o sabor quente dos teus lábios, meu amor. 



[A seguir ao poema de Maria do Rosário Pedreira, uma música que traz bem o espírito de um verão com que se sonha, um sonho carregado de promessas de amor]



Subindo a estrada que vai do Ginjal à Boca do Vento, em Almada antiga


                             
                                       Não é ainda a pele, apenas
                                       um rumor de lã nas camisolas, um recado
                                       a lembrar tardes no feno, linho lavado, o sol
                                       mordendo um rio pela manhã ―
                                       assim a distância entre a minha mão e o pessegueiro.

                                       Na estrada
                                       as flores demoram-se até às laranjas,
                                       mas o aroma do pomar faz sede e os olhos cegam
                                       na promessa de gomos novos e doces, os mais doces. Talvez

                                       por isso se continue a viagem sem olhar para trás.



                                       [Poema de Maria do Rosário Pedreira in Poesia Reunida]

Ernesto Lecuona - Ashley Ball interpreta 'Yo te quiero siempre'


11 dezembro, 2012

Não acordes a mortal infância


Um dia uma mulher teve uma criança. Um dia essa criança brincou, sonhou, talvez, até, tenha sido feliz. Um menino que se fez um homem alto, um corpo forte, um homem que talvez gostasse de dançar, de amar ao som da música.

Um homem que talvez tenha tido o seu amor nos braços, que talvez olhasse o céu e o mar e amasse o azul e esperasse o bem que lhe viria do futuro.

Um homem que avançou no tempo, talvez com o seu amor ao lado, talvez lhe passasse o braço sobre os ombros, talvez passeasse ao longo do rio, talvez olhassem as gaivotas, talvez se deslumbrassem em uníssono perante Lisboa, a bela, ali do outro lado, talvez, se beijassem perante tamanha beleza.

Talvez este homem tenha um coração grande, talvez à sua volta a luz dance, talvez recorde ainda o menino que foi numa distante infância. Talvez. Talvez. Tomara que sim, meu deus.

Ou, então, não. Talvez os deuses o tenham abandonado, talvez a música se tenha silenciado, talvez a luz tenha escurecido, talvez o menino que viveu dentro de si esteja agora morto.

Talvez este homem que, indiferente à beleza do rio e da magnífica cidade, por aqui anda vasculhando os restos, procure apenas restos de sonhos, restos de inocência. Ou restos de comida.



[Por vezes há palavras que me doem enquanto as escrevo. Hesitei em usar esta fotografia, sabia que, se a usasse, me iria doer. Mas há agora tantas situações assim. Não quero que existam. Lutarei para que não existam. Mas tenho tão poucas armas para lutar que aproveitarei todas, mesmo as mais inócuas, como esta. O poema de Manuel António Pina, abaixo, nem puxava estas palavras. 

A seguir, para ver se espanto esta dor, uma música animada ainda de Ernesto Lecuona.]



Na beira de um dos cais do Ginjal, de frente para Lisboa, o Castelo de S. Jorge no alto




                                               A música tem olhos fulgurantes
                                               movendo-se à volta do fogo.
                                               Se és visto por eles tornas-te canto,
                                               tu que és, como tudo é, canto.

                                               Afasta-te do coração,
                                               a tua vida canta sob a música,
                                               não acordes a mortal infância,
                                               foge do que sabes, porque não o sabes.

                                               Talvez sejas apenas o sonho
                                               de um deus não mais desperto que tu.
                                               Ouve-o dentro de ti, ao deus,
                                               cantando luminosamente à tua volta.


['Canção' de Manuel António Pina in 'Todas as Palavras', Poesia Reunida]


Ernesto Lecuona - Los Romeros interpretam Malagueña


10 dezembro, 2012

Ofereço-te o silêncio de um pequeno quarto recuado


Esperava por ti. Alisava a colcha, endireitava as almofadas, via-me ao espelho, penteava-me, espreitava a janela, via as horas, bebia água, ajeitava as cortinas, baixava um pouco o estore, espreitava a janela, via-me ao espelho, via as horas, espreitava a janela.

O gato olhava para mim. Eriçava o pêlo, ansioso, olhava para mim, saltava para o parapeito, olhava para mim.

Esperávamos por ti. Uma inquietação, uma ansiedade, uma vontade de ti, e tu, quando chegavas nem suspeitavas. Estávamos calmos, em silêncio esperando por ti - assim nos vias.

A casa estava na penumbra, o estore para baixo, os cortinados corridos. Apenas eu e o gato. Gostavas de chegar, furtivo, coração aos saltos, e ver que nós estávamos ali, tão serenos. A paz da casa e a paz da nossa serenidade tranquilizava-te. Nunca desfiz essa tua ideia, nunca te contei da nossa ansiedade quase descontrolada.

Depois abraçavas-me, beijavas-me, impaciente, despias-me, querias logo a minha pele. E eu deixava porque o meu corpo só te queria a ti. Nessa altura, eu fechava a porta para o gato não nos ver, sempre aquele receio que o gato depois revelasse o nosso segredo. O gato, tu mesmo o dizias, é meio gente, meio deus, e eu acrescentava que era também meio espírito de pássaro, de pássaro cigano, sem querer saber que três metades são mais que um e que isso não faz sentido.

Deitava-me então sobre ti, abraçava-me e deixava que me abraçasses com muita força, oferecia-me e tu oferecias-te. Éramos então gatos com cio, amantes, clandestinos na penumbra de um abrigo. 

A seguir, atencioso, levantavas-te e ias abrir a porta ao gato. E este vinha, cúmplice, os grandes olhos cheios de magia e malícia, olhando-nos, compreensivo, protector.

Quando partias, eu espreitava-te pela janela e o gato encostava-se a mim, triste pela tua partida, triste pela minha tristeza.

E, até que viesses de novo, desfiávamos as horas, desfiávamos lembranças, segredos, amores proibidos, os olhos húmidos de saudade. Eu e o gato.



[Logo abaixo de um dos gatos do Ginjal que me traz encantada, mais um belo poema de Maria do Rosário Pedreira, já o décimo oitavo. Logo a seguir mais uma maravilhosa música de Ernesto Lecuona]



No Ginjal, o meu belo gatinho tigrado, lindo, lindo




                                   O gato lembra-se de ti nos intervalos. Espera
                                   de olhos acesos as histórias que nos contas.
                                   Passeia-se inquieto sobre o meu parapeito e eriça
                                   o pêlo, cúmplice, quando pressente que regressas.

                                   Chegas sempre de noite. Sei quem és e ao que vens
                                   e ofereço-te o silêncio de um pequeno quarto recuado,
                                   as sombras das traseiras na minha pele, o tempo
                                   de repetir um gesto inevitável. Ouço-te contar
                                   a mesma lenda com lábios sempre novos. Aprendo-a
                                   e esqueço-a . Nunca a saberemos de cor, o gato ou eu.

                                   Depois partes. Levas contigo a tua voz, mas a música
                                   fica. Eu fecho as portadas devagar. O gato mia baixo
                                   à janela. Ninguém acena: guardamos com os outros
                                   a segredo das tuas visitas. Ambos. O gato e eu.


                                   [Poema de  Maria do Rosário Pedreira in Poesia Reunida]





*


Igual à minha Necas
raiada de três tons
(quem sabe da família)

Era tão pequena
ainda nem andava
desamparada
gatinhava no meio da rua 
tão frágil
tão fugidia da ninhada

e nós de partida
finalmente as férias desejadas
as malas arrumadas
o carro já ligado
portão fechado
e o seu miado ai aquele miado...

Foram vitaminas biberons 
(um ai Jesus)
e depois se fez crescida e deu em namorar
pois não
um gato grande e louro
rondava a porta
fazia serenatas (garanto eu)
e lá se foram encontrando em segredo em bailes de garagem
coisas da vida...até que aconteceu

pior foi mesmo 
quando nos vimos de parteiros
e ela se enroscava em nós gemendo
as dores pareciam lancinantes
e o seu esforço quase em vão
e aquele pelo multicor molhado
até que um gato bebé louro louro igual ao pai
finalmente rabiava
e ela lambia lambia aliviada

e nós ali embasbacados
chorando de alegria diante do milagre da vida

A Necas sempre foi arisca
poucos lhe tocam
(ainda hoje)
mas a MÃE NECAS
cheia de carinho
vigiava de perto o seu menino
tanto cuidado tanto amor
que fez dele um gato tão lindo enorme mimado e sonso
(juro que é)
que ainda hoje é conhecido por"Bébé" 


['A MINHA NECAS' de 'Era uma Vez' num comentário aqui abaixo]

Ernesto Lecuona - Cristy Arias interpreta "Maria la O"



Cristy Arias com a Florida Chamber Orchestra, com a maestrina Marlene Urbay, e Jorge Emilio Rodriguez no piano.


não perguntes se estas são as vias da perfeição da alma


Colado ao caminho que percorro há um rio mas mal se vê. Do outro lado do rio há uma cidade mas também não se vê. Posso ter sonhado com esta cidade, se calhar é uma cidade magnífica que apenas existe nos meus sonhos. Olho, tentando ver através do manto branco, mas não vejo nada, nenhuma cidade. Ninguém acreditará em mim se insistir nessa cidade inventada.

Dir-lhes-ei, é Lisboa, a magnífica, a bela, a que se deita envolta em luz. Encolherão os ombros. Não há ali cidade nenhuma.

Passo em silêncio neste caminho silencioso e talvez quem me veja de longe pense que estou a entrar dentro de uma nuvem abstracta, que vou desaparecer, dissipar-me, eu névoa, eu quase nada, eu nada.

Passo em silêncio junto a estas paredes que o tempo vai comendo, as cores em delíquio, as janelas tapadas, as portas fechadas, as vozes silenciadas, casas vazias que guardam segredos, corações e conchas.

Mais além, prestes a confundir-se com a névoa, um vulto prepara-se para atravessar uma parede. Desaparecerá no vazio, nesse espaço imenso e silencioso onde repousam os espíritos dos gatos, dos pescadores, das gaivotas, das mulheres transparentes.

Sinto o vento, tão cru, tão limpo. 

É isto, então, a perfeição? São estes os caminhos ferozes da luz?

Continuo. Não sei se ali está um rio, se ali está uma cidade, não sei para onde me leva este caminho. Pouco vejo. Nada ouço. Caminho, em silêncio, no branco indefinido que me leva não sei onde, talvez para um qualquer desconhecido ocidente. Não sei. 


[Mas se estas minhas palavras são vazias e brancas, percorramos antes as palavras de Vasco Graça Moura e, a seguir, desçamos um pouco mais: abro a semana com um compositor que nos irá aquecer a alma, Ernesto Lecuona, um pianista e  compositor cubano (1895-1963)]



Ginjal numa manhã fria de nevoeiro



                                    não perguntes se estas
                                    são as vias
                                    da perfeição da alma,
                                    as concordâncias

                                    duma arte de viver;
                                    o tempo é excessivo nos vestígios: as
                                    antiguidades de roma, as histórias
                                    da morte no ocidente.

                                    súbito um perfume
                                    de remos no rio (audíveis?)
                                    e vento nas conchas resguardadas:
                                    guardam o coração e as suas

                                    certezas ferozes, a sombra
                                    resguardando a luz.


                                    ['nó cego, o regresso, XIII' de Vasco Graça Moura in Poesia Reunida]


*


Névoa
exercício branco
de olhar 
para além do olhar
aprender a ver
sem conseguir olhar
espaço aberto
livre
para imaginar!


[Poema de Joaquim Castilho num comentário abaixo]

*


Esta névoa sobre a cidade, o rio,
as gaivotas doutros dias, barcos, gente
apressada ou com o tempo todo para perder,
esta névoa onde começa a luz de Lisboa,
rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,
nada mais quero de degrau em degrau.



Viera do rio pela mão de uma criança.
A cidade é agora de porcelana branca.



[Respectivamente 'Lisboa' e 'Nevoeiro' de Eugénio de Andrade in 'Escrita da Terra']


06 dezembro, 2012

Brasília despojada e lunar como a alma de um poeta muito jovem - desenhada por Lúcio Costa, Nieymer e Pitágoras. No dia em que Oscar Niemeyer voou para a curva de uma alta montanha


Muitas horas depois no fundo da noite, da distância e da solidão Brasília surgiu, como uma estrela que se levanta no horizonte do mar. Foi crescendo devagar direita e lisa, destacando os seus volumes, desenhando as suas linhas, cada vez mais luminosa e fabulosa. 
(...)
De dia Brasília é uma cidade clara. Uma cidade lógica e lírica. Limpa de pitoresco. e não tem nada faraónico, não tem nada de oficial, não tem nada de retórica, não tem nada de discurso. É exacta, esguia e lisa como um coqueiro. E nunca é enorme, nunca sucumbe à retórica da monumentalidade. A sua beleza é contida e discreta como a beleza de um coqueiro.


(Texto inédito de Sophia, escrito em 1966, relativo a uma 'viagem de automóvel do Rio a Brasília' in Revista Ler, Dezembro 2012)



[Hoje não há palavras minhas. Hoje há as palavras, em prosa e em poesia, de Sophia sobre Brasília, uma cidade essencialmente feita de edifícios desenhados por Oscar Niemeyer. Abaixo há um concerto para violino de Haydn, uma música boa para imaginarmos um espírito luminoso que se liberta da lei da vida]


Buscando os grandes espaços



                               Brasília
                               desenhada por Lúcio Costa, Niemeyer e Pitágoras
                               lógica e lírica
                               grega e brasileira
                               ecuménica
                               propondo aos homens de todas as raças
                               a essência universal das formas justas

                               Brasília despojada e lunar
                               como a alma de um poeta muito jovem
                               nítida como Babilónia
                               esguia como um fuste de palmeira
                               sobre a lisa página do planalto
                               a arquitectura escreveu a sua própria paisagem

                              O Brasil emergiu do barroco e encontrou o seu número
                              no centro do reino de Ártemis
                              - Deusa da natureza inviolada -
                              no extremo da caminhada dos Candangos
                              no extremo da nostalgia dos Candangos
                              Athena ergueu sua cidade de cimento e vidro
                              Athena ergueu sua cidade ordenada e clara como um pensamento

                              E há nos arranha-céus uma finura delicada de coqueiro



                              ['Brasília' de Sophia de Mello Breyner Andresen in Geografia]

Joseph Haydn - Sergey Dogadin no violino interpreta o Concerto para Violino


05 dezembro, 2012

A nau vagueia entre punhais que o vento sul afia


Quem nos encena? 

Quem te vê dirá que, laboriosamente, enrolas as velas, que esticas as cordas, testas os cabos. 

Quem me vê dirá que, com total entrega, fotografo os céus, os mares, os barcos, o azul, o vento.

Agimos com naturalidade. Somos actores experientes. 

Um dia após o outro. Tu, belo e forte, corpo de homem do mar. Eu, uma gata de beira de cais, vadia, sem dono, com vontade de ser gaivota. Ausentes um do outro, estranhos, distantes.

E, no resto do tempo, uma vida também normal, tudo certo. Tu aí, longe de mim. Eu, ausente, em falta, em falta, eu sei, querendo marcar uma distância que quero definitiva. E tu, aí, esperando uma palavra que não virá, uma única palavra, um qualquer pequeno nada. E nada.

E nada. 

Nos bastidores sabemos ambos que todas as peças têm um fim, que se apagam as luzes e cada um segue o seu destino. E a nau vai vagueando como se tivesse um destino. Talvez não o tenha, mas que sei eu?

O que sei é que há ainda algum sal nas minhas mãos, nas tuas mãos - e o que dói o sal nas feridas...! Punhais. 

Afasto-me, afastas-te. Assim deve ser. Para sempre. Fico com o cheiro da maresia, uma recordação longínqua que me chega do sul. Mas isso basta. É muito.



[Abaixo do homem que prepara o veleiro, um poema de Daniel Filipe e, logo abaixo, uma belíssima peça de piano de Haydn]



Junto ao cais em Cacilhas



                                          Meço o dia com gestos naturais.
                                          Sereno - na aparência - reinvento
                                          o aroma do aloés, o mar, o cais,
                                          no exacto momento.

                                          Mas só o sal é paga deste duro
                                          ofício de cruzar o teu destino.
                                          Ó moço de convés, jovem e puro!
                                          Ó tempo de não ser o loiro menino!

                                          Nos bastidores da peça, a nau vagueia
                                          entre punhais que o vento sul afia.
                                          Nem ponto, nem actores - sinais de areia,
                                          corpo de limos, cheiro a maresia.


                                         ['Lírica' de Daniel Filipe in 'Pátria, lugar de exílio']

Josph Haydn - Paul Barnes interpreta Sonata para Piano, Adagio


03 dezembro, 2012

Que a onda é imagem do tempo, que ela corre como o tempo corre sobre a vida


Sobre um mar de água azul, eleva-se uma outra água, altaneira, sobranceira. Avança, cavalga as águas que correm mansamente, desperta atenções. Da margem, os olhos enfeitiçam-se, que grande onda, que mar tão grande, espectadores de margem, admiradores da força quando longínqua. Mas há outros, os que se arriscam e querem montá-la e fazer cavalinhos, outros querem cavalgá-la e ir à garupa, outros querem vencê-la, furá-la, intrépidos cavaleiros sobre uma onda resfolegante de patas erguidas ao céu.

E a onda avança, bela, limpa, forte, invencível.

Mas, quando perde a força e se desmancha (tudo se desmancha), eis que a grande onda vem, vagarosa, súplice, lamber os pés de quem dela se aproxima. Cãozinho meigo, língua doce, beijinhos de espuma, a onda vem, menina, banhar os pés dos homens.

E os homens sentem-se enfeitiçados, a grande onda veio beijar-lhe os pés, fica, onda, fica, envolve-me.

Enganoso. A onda é enganosa. Quando se afasta de novo (e sempre se afasta), deixa atrás de si um rasto de vida arrancada pela raiz, troncos, árvores, conchas, roupas, tudo.

É como o tempo, o tempo apenas aparentemente belo, amigo mas, de facto, traiçoeiro, enganoso, destruidor. O tempo que sepulta a vida.

Apenas vencem a onda, e o tempo também, aqueles que os deuses amam e que conseguem libertar-se da lei da vida, os artistas, os doidos, os anjos.



[Abaixo da onda no Tejo, um inspirado poema de João Miguel Henriques e, logo abaixo, mais uma bela interpretação de uma outra obra de Haydn]



No Ginjal, rasto deixado por uma onda no Tejo num dia de vento



                                     que da onda nos era contado
                                     ser espírito autónomo e solto
                                     viajando lesto sobre os mares
                                     crescendo sempre e sempre indiferente
                                     a danos, desaires, modos de corpo
                                     e nós ali escutando tudo sobre a onda
                                     a grande vaga, o maior abarcamento
                                     sem ainda perceber ou suspeitar
                                     (só mais tarde e com que estrondo)
                                     que a onda é imagem do tempo
                                     que ela corre como o tempo corre
                                     sobre a vida, sem detença
                                     sepultando tudo sob as águas


                                     ['Da onda' de João Miguel Henriques in 'Isso passa']

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HAIKU


Morta
Na praia te encontrei
Concha vazia
Exausta
De percorrer o mar.


[Do Leitor Joaquim Castilho num comentário abaixo]

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Enganas-te 
não estava nem morta nem vazia
o teu olhar apressado é que não viu
(raramente vê)
o brilho clássico da preciosa pérola
ansiosa pela tua descoberta

na certa
só tu sabes porquê...


[Da Leitora 'Era uma Vez' num comentário abaixo]



Joseph Haydn - O Jerusalem Quartet interpreta o Quarteto de Cordas Op 20 n.5



Alexander Pavlovsky - 1st violin
Sergei Bresler - 2nd violin
Amichai Grosz - viola
Kyril Zlotnikov - cello

02 dezembro, 2012

Onde talvez se esconda o contorno quase terno do rosto de deus


Por estes lados não se sente o sopro quente do deserto, nem há tamareiras de doces frutos, nem areias levantadas pelo caos. Não.

Por aqui não passam cavalos endoidecidos, resfolegando, bafo quente, patas inquietas. Não, nem pensar.

Por aqui não há rosas nómadas, flores ardentes, terras sequiosas, corujas em telhados de zinco. Não, meu amigo, não há.

Aqui há água, muito céu, barcos, há pescadores, há sombras, ruínas, telhados abertos, paredes despedaçadas. Gatos vadios, gaivotas loucas, gansos imaginados, cães sábios, bichos e homens muito velhos, mulheres que voam, também.

Por aqui ninguém os chama para as orações da tarde, e, por isso, ninguém se ajoelha, ninguém reza. Por aqui os deuses são desconhecidos. Quem por aqui anda, anda à procura da imensidão que há para além do horizonte, anda à procura das vozes dos que por aqui muito amaram e que por aqui deixaram a alma à solta.

Não passam, pois, cavalos em correria, nem se ouvem chamamentos, nem sinos, nem uivos, nada. Apenas silêncio. Gente sem dono. Gente que os deuses abandonaram.

E, no entanto, por vezes, alguém que passa em absoluto recolhimento olha ao longe, olha para além do azul e vê, lá muito ao longe, uma sombra ou apenas o esboço de uma sombra, ou apenas um suave contorno. E nisso pensa ver o abençoado o rosto de um terno e muito distante deus. E isso basta a quem nada tem. Isso basta, meu amigo.



[Abaixo do poema de Al Berto, estreia-se hoje um compositor de quem, nem sei como, me tinha esquecido, Franz Joseph Haydn. Na tentativa de reparar tão irreparável erro, abro com uma interpretação a cargo de Rostropovich]


No Ginjal, caminhando rente ao Tejo


                                 a luminosidade é uma placa de zinco suspensa
                                 do céu do deserto

                                 em redor
                                 a imensidão das areias vibra contra o caos
                                 de pedra e de eufórbios que se multiplicam
                                 a perder de vista

                                  o bafo inquieto dos cavalos acende
                                  a pólvora das festas inesperadas

                                  uma coruja morre
                                  no cimo açucarado da tamareira

                                  caminhas
                                  sitiada pelo canto agudo do muezzin
                                  chamando à oração

                                  mektoub

                                  sítios onde a vida cessou e tudo está escrito
                                  há séculos - onde o coração dos homens
                                  é uma rosa nómada e calcária

                                  no limite da escassa água e desta terra seca
                                  mal abençoada - caminhas
                                  na plana noite das ardósias
                                  nas jeiras de súplicas e recolhimento onde
                                  talvez se esconda
                                  o contorno quase terno do rosto de deus



                                 ['mektoub' de Al Berto in 'Horto de Incêndio']

Joseph Haydn - Rostropovich interpreta o Concerto No.1 para Violoncelo


30 novembro, 2012

Até ausente soube cercar a terra inteira com seu abraço


Nestes dias de pesado desalento e de medos no horizonte, atravessamos as cidades como cães sem dono. O frio arrepia-nos o pêlo, cosemo-nos às paredes, uns esfaimados, outros protegendo a medo o pouco que têm, olhamo-nos uns aos outros com olhos aflitos. O que vai ser de nós?, murmuramos quase sem voz.

Pensávamos que os mostrengos estavam no meio do mar, temíamos o escuro das profundezas e as tempestades que desciam dos céus para se abaterem sobre nós. 

Aflitos, desprotegidos, percebemos agora que, afinal, desgraçadamente, os mostrengos estão no meio de nós. Aqueles que pensávamos que eram os nossos timoneiros são afinal os verdadeiros monstros, terríveis monstros. Sobre nós abate-se agora a sua impiedosa fúria. Devastam a terra, destroem as embarcações, assaltam-nos, violentam-nos, agridem os velhos, expulsam os jovens. De olhar implacável, sorriso fixo, dentes afiados, sugam o nosso sangue, desprezam-nos, vendem-nos. Somos nada a seus olhos.

Indefesos, os mais fracos encostam-se agora uns aos outros, sem forças, sem lágrimas, apenas medo. Muito medo, um medo cobarde, um medo envergonhado. O medo da fome e da solidão.

Tempos houve em que havia nesta terra gente com visão, com determinação. Nessa altura, fazíamo-nos ao mundo, éramos ousados, galgávamos vales, atravessávamos horizontes, percorríamos os contornos do mundo. Nada nos detinha. Procurávamos o futuro e, pondo a vida em risco, lutávamos pelos mais jovens, pelos mais velhos, pela riqueza, pelo país que sempre amámos.

Mas, entre os que atravessam as ruas ganindo, chorando, tremendo de frio e medo, há alguns, não muitos mas os suficientes, os que não desistem, os que ainda lutam, os que ainda se mantêm de pé, sentindo o sangue quente a correr-lhes nas veias. 

Um dia virá! Um dia virá! Um dia virá!, dizem baixinho, tentando animar os outros. E juntos lá vão.

Acreditam que um dia virá.

Um dia virá! Um dia virá! Um dia virá!



[Abaixo da caravela de pedra que carrega um povo inteiro, encontra-se um poema da Mensagem, no dia em que passam 77 anos desde que Fernando Pessoa passou a observar-nos de longe. Logo a seguir ao poema, uma música muito límpida. É Froberger que se despede.]



O Padrão das Descobertas avistado do Ginjal




                             Dançam, nem sabem que a alma ousada
                             do morto ainda comanda a armada,
                             pulso sem corpo ao leme a guiar
                             as naus no resto do fim do espaço:
                             que até ausente soube cercar
                             a terra inteira com seu abraço.

                             Violou a Terra. Mas eles não
                             o sabem, e dançam na solidão;
                             e sombras disformes e descompostas,
                             indo perder-se nos horizontes,
                             galgam do vale pelas encostas
                             dos mudos montes.



                             ['Fernão de Magalhães - 2ª parte' de Fernando Pessoa in Mensagem]


Johann Jacob Froberger: Yan Snimschikov interpreta Toccata II


28 novembro, 2012

O meu nome fantástico e secreto que só os anjos do vento reconhecem


Hoje é um desses dias. Não me reconheço em grande parte dos que me cercam. Sou diferente. Pareço idêntica, tenho duas pernas, dois braços, na aparência falo a mesma língua, aparentemente percebo o que querem, o que fazem.

Mas só eu sei como me sinto tão distante. Andam às voltas, não saem do mesmo sítio apesar de andarem sempre à pressa, dizem coisas que não interessam ou que não fazem sentido, interessam-se muito por coisas efémeras e irrelevantes, interessam-se mais por coisas do que pelos outros a quem não ouvem nem conhecem. Aquietam-se quando se deveriam revoltar, acatam quando deveriam desobedecer, vergam-se quando se deveriam erguer.

Parecendo igual, em dias assim sinto-me uma estranha.

Em dias assim, vendo que não consigo mudar o mundo, busco a noite. Entro pela noite dentro, procuro as águas, mergulho nas ondas, uma e outra e outra e eu submersa, tentando purificar-me, libertar-me.

Então, quando o silêncio invade o meu peito, por momentos ouço o meu nome, o meu nome soprado, cantado, sussurrado.

Não estranho. Sei quem assim chama por mim, quem assim tenta embalar-me. São os anjos, os anjos de grandes asas, os que habitam os meus grandes espaços. E fico tranquila, os anjos sabem o meu nome, reconhecem-me. Talvez apareçam para me tranquilizar, talvez saibam que, em dias assim, me sinto melhor sozinha no meio da noite, debaixo das águas tingidas com o negrume da noite, tocada pelo seu sopro mágico, do que no meio de gente que me é tão estranha, tão estranha, meu deus. 

Em dias como o de hoje não quero voltar aos dias áridos cheios de gente assim, tenho medo de me ver cercada por quem não saiba sequer o meu nome, medo que os meus anjos me abandonem. Oh deus.



[Abaixo da gaivota solitária, um belo poema de Sophia e, logo a seguir, a música de Froberger para nos tirar daqui.]



Em Cacilhas, gaivota caminha pensativamente pela beira do cais,
acompanhada apenas pelo seu próprio reflexo  



                                    No mar passa de onda em onda repetido
                                    o meu nome fantástico e secreto
                                    que só os anjos do vento reconhecem
                                    quando os encontro e perco de repente


[Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen in 'No tempo dividido']

:.:.:


DISTÂNCIA

Distância
É a estrada longa que nos resta
Quando o tempo se estende
Para além da esperança
E os rostos se diluem em névoa.
Procuramos
Estranhos recantos
Lugares de Primavera
No peso agreste da memória.



SILÊNCIOS

Encontrar o silêncio
quando os dias se rasgam
de gritos ácidos
e os ouvidos se enchem
de bandos loucos de palavras vãs.
Encontrar o silêncio
onde a Paz se acolhe
e o vazio se enche
de sombras brancas.
Silêncio,
quando a angústia se esvai
e o olhar voa
como chama matutina.
Encontrar o Silêncio e morar nele
até que nos encontremos
e um sorriso se abra em nós.


GUNDULA STEGLITZ

(em comentário abaixo)

.:.:.



PARA TI

Caso não saibas
minha querida Tá
hoje
escreveste um poema (e ai de quem disser que não)

esvaziaste de tédio a tua alma
organizaste desencantos espaços e memórias
e retomada a tua arrumação
cobriste a tristeza com asas de anjo...

(não ouvi nem discursos nem mentiras
recuso...não quero...não quis)
e quanto a ti
gosto bem mais de sentir zangada... furiosa... mas feliz


Era uma Vez

(em comentário abaixo)