Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

24 março, 2015

Talvez seja apenas uma confidência


São instantes mas eu queria que fossem horas. E se são horas eu queria que fossem dias. E os dias somam-se aos dias e já são meses. E em cada instante desenhamos confidências, segredos inocentes, uma verdade tão nossa que parece ter nascido connosco, um pecado original que transportávamos sem o saber. Mas não é pecado, não, parece uma bênção, uma magia.

Afasto-me por vezes, quero ver as palavras de longe, quero ver se brilham como brilham quando em silêncio nos enunciamos secretas descobertas, memórias partilhadas, um registo de uma comunhão que parece imaginada.

E eu quero fechar a minha mão na tua para que feches nelas o nosso segredo, para que as palavras não voem, para que não fiquemos desamparados, sem as nossas asas que são comuns, sem os nossos sonhos que são os mesmos.

Fecha as tuas mãos nas minhas, envolve-me com um abraço, não deixes que os instantes se vão, prende as tuas palavras às minhas, e deixa-te ficar, sereno e alegre, olhando os meus olhos ou os meus sonhos. Guarda bem os nossos segredos. Nas nossas mãos. Meu querido.








Talvez seja apenas uma confidência. Sabemos
que cada vez mais é de nós que essas palavras
se afastam e assim se compreende melhor o sentido
que têm. Depois havemos de esquecê-las, para que se tornem
iguais a um segredo e se possa finalmente dizer
como tudo já cabe noutras mãos tranquilas e abertas.


[de Fernando Guimarães in Os caminhos habitados]




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Hayley Westenra interpreta Bachianas Brasileiras No. 5, Aria,  Heitor Villa-Lobos

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As fotografias foram feitas no Ginjal

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23 março, 2015

Teus dedos recolhendo gaivotas no raso voo sobre o meu peito.


Se eu pudesse abrir agora a janela e procurar na noite o lugar onde dorme o teu coração. Se eu pudesse levar as minhas palavras e deixá-las pousadas junto aos teus sonhos. Ah se eu pudesse dizer-te que as palavras não são só palavras, são bocados de mim. Ah se eu pudesse dizer-te que tenho medo que as palavras um dia se transformem em gente de verdade e queiram mergulhar no mar mais fundo, abraçadas a ti.

As gaivotas suspendem-se no ar e deixam que eu aprenda a voar e eu quero atravessar a noite, atravessar o tempo, sentar-me junto a ti, ver o rio, sentir a leveza do silêncio, e não esperar nada e não querer nada, apenas que agarres as minhas palavras e as tomes para ti, que agarres as minhas mãos e não as soltes mais, que te desfaças no meu olhar, em mim.

Não quero nada de mais. Não quero grutas, labirintos, jardins, espelhos, bibliotecas, não quero livros, barcos, casas, não quero o céu, não quero o mar, não quero a luz nem a sombra, nem a música que se desprende das asas, das velas, dos ventos. Quero apenas um instante, o preciso instante em que o teu coração pousaria junto ao meu. Para sempre, mesmo que apenas por um instante.

Mas sei que isso é querer demais porque esse instante não existe, esse instante está preso no fundo do mar e eu não sei onde, o mar é tão imenso, ah tão imenso, ou talvez esteja numa casa inventada, perdida, algures a sul onde o mar se desfaz no azul do céu.

Ah meu querido, como eu queria esse inexistente instante. 


Guincho* sobre o Tejo junto ao Ginjal com Lisboa ao fundo
(*que eu pensava que era uma gaivota diferente e que, em comentário abaixo, aprendi que não)



Não quero o mar.

Quero o instante
em que o oceano inteiro
se enrosca numa só onda.

Não quero rios.

Um redondo de lágrima me basta:
teus dedos
recolhendo gaivotas
no raso voo sobre o meu peito.

Eu quero um deserto.
Mas de vastidão mindinha.

Desses que cabem num grão de areia.



[Exíguos anseios de Mia Couto in 'Vagas e Lumes']


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A música é Nana de Manuel de Falla, Violencelo: Javier Albarés e guitarra:Marisa Gómez


12 março, 2015

Amanheceu a minha vida no teu rosto de uma doçura intensa e tão suave







Caminhava e não sabia que era na tua direcção que caminhava. Nem sequer sabia de ti. E, no entanto, sem que o soubesses, era também na minha direcção que caminhavas. 

Eu julgava que era uma mulher normal embora soubesse das minhas asas e das palavras que voam em minha volta. Mas agora sei que não sou normal. As asas cresceram muito e quase não me pertencem e o chão parece que está prestes a desaparecer.

De ti sei que te sentas com palavras junto aos braços e que a cabeça está lá bem alto, onde as nuvens transportam a água mais limpa, os sonhos mais imateriais e puros, onde a luz é doce como um sorriso. E que tens asas também.

E caminhamos na direcção um do outro. Por vezes, as palavras de um e do outro voam, perdem-se de nós, brincam, buscam-se, encontram-se e beijam-se sem que as possamos controlar, são pássaros livres, tão livres, tão livres como talvez gostássemos de ser.

Enquanto assim caminhamos, sem sabermos bem em que ponto pararemos, os pássaros brincam também, imitam-nos, riem e dizem as palavras de David:

Nós temos cinco sentidos: 
são dois pares e meio de asas. 

- Como quereis o equilíbrio?

e nós, de longe, ouvimos essas vozes e já nem sabemos se são os pássaros, se os anjos, se somos nós que as sonhamos.

Caminhamos. Não sei se estamos longe, se algum dia nos encontraremos, nada sei. Sei apenas que é na direcção um do outro que caminhamos. Levados nas asas dos sonhos, levados por um estranho e inconfessado desejo, por abraços que inventamos, por beijos que tememos querer, vamos voando, caminhando pelos céus.

E então as palavras de ambos, feitas pássaros tresloucados, ardentes de um amor que sabem não poder ser seu, dizem, como se sonhassem,

Amanheceu a minha vida no teu rosto
De uma doçura intensa e tão suave
Como se um divino fundo nele brilhasse
Eu era o que nascia soberanamente leve
E encontrava na limpideza centro do equilíbrio
Só em ti cheguei amanhecendo na minha madurez
Entrei no templo em que a luz latente era a secreta sombra
Foste sonhada por meus olhos e minha mãos
Por minha pele e por meu sangue
Se o dia tem este fulgor inteiro é porque existes
E é porque existes que se levanta o mundo
Em quotidianos prodígios
Em que ao fundo brilha o horizonte certo.


E eu fecho os olhos: sim, deixa que as palavras sonhem, deixa. Deixa que elas nos digam que talvez um dia entremos num templo só nosso e nos descubramos, as mãos impacientes, inocentes, a pele e o sangue em chama, e os olhos despidos, prontos para a nudez que brilhará, secreta, em dias só nossos, plenos de prodígios também só nossos.



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O primeiro poema é de David Mourão-Ferreira, o segundo é de António Ramos Rosa, Lilac Wine é interpretado por Nina Simone e as fotografias são, como tantas vezes, feitas no Ginjal.

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04 março, 2015

o sonho da matéria com que haverei de lhe tocar a pele dizendo o seu nome






agora a mulher estava no plural
a mulher era potável
a mulher escrevia o missal do seu corpo

um dia o anjo disse - vai à fábula -

então a mulher escolheu escrupulosamente o seu pé esquerdo 
e foi




E então mergulho no azul em busca do teu nome. Quem és? Não sei nem o teu nome.

Diz-me da tua pele, diz-me como brilham os teus olhos. Diz-me de que sombras te escondes ou diz-me a que luz se desnuda a tua alma. Diz-me apenas palavras assim, soltas, livres, palavras sem futuro.

Não quero saber mais, quero apenas adivinhar como bate o teu coração ou a forma como fechas os olhos quando sabes as palavras que nascem de mim. Mulher plural, potável, mulher que se desprende do equilíbrio para se lançar no azul mais limpo, na maresia mais suave, assim sou eu. 

E, sabendo-me assim, meio mulher, meio pássaro, um anjo vem e diz que sobre as águas eu me deite e eu deito-me, e ele diz que sobre mim quer escrever palavras azuis e eu digo que o meu corpo já tem desenhadas as linhas que esperam a sua caligrafia, e ele hesita e diz-me que é de temor que o seu coração bate e eu digo-lhe que escreva todo o silêncio que transporta no seu peito e ele escreve, e eu adivinho palavras inocentes como água, luz, sonho, e depois o anjo e eu olhamos o sol e mergulhamos na luz, numa doce vertigem, e depois vejo que o dia se está a afogar no rio e que tenho que ir e, então, as palavras desprendem-se do meu corpo, e voam e voam e sobre mim começam a tombar fragmentos de luz, lágrimas, sonhos que, mal se desprendem de nós, logo começam a esfumar-se. 

Quando tocar a tua pele direi o teu nome, digo-lhe eu enquanto me dissolvo no azul do céu. E voo. E vou.


Não recordo esse azul, mas sei
que ele se alia ao azul imaginado
pela acústica impressão:

desprende-se a sua voz, bate
no meu rosto, retoma a mais densa
compreensão, o sonho da matéria

com que haverei de lhe tocar a pele
dizendo o seu nome.

......   ......   ......


A música é The Tale of Sweet Sir Galahad  de e por Joan Baez

O primeiro poema é de Catarina Nunes de Almeida in Marsupial da editora Mariposa Azual

O segundo poema é O azul de Wallace Stevens de Luís Quintais in Depois da Música da editora Tinta da China

As fotografias foram feitas no fim de semana e o rio é o Tejo.

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