Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

30 junho, 2011

Se eu definisse o tempo como um rio, a comparação levar-me-ia a tirar-te de dentro da sua casa


Sento-me à beira do rio e o tempo suspende-se.

Leio um livro e, quando chego ao fim, o relógio da beira do cais, marca as mesmas horas que quando comecei.

Subo as escadas que vêm do rio e me levam até um sítio suspenso no tempo.

Tu sentas-te comigo, pedes-me que leia para ti, e ficamos os dois, aqui, neste local perfeito em que o rio nos envolve e em que tempo pára para nós.

No Ginjal, sobre o Tejo, e com Lisboa logo ali, mulher pescadora

Se eu definisse o tempo como um rio,
a comparação levar-me-ia a tirar-te
de dentro da sua água, e a inventar-te
uma casa. Poria uma escada encostada
à parede, e sentar-te-ias num dos seus
degraus, lendo o livro da vida. Dir-te-ia:
«Não te apresses: também a água deste
rio é vagarosa, como o tempo que os
teus dedos suspendem, antes de virar
cada página.» Passam as nuvens no céu;
nascem e morrem as flores do campo;
partem e regressam as aves; e tu lês
o livro, como se o tempo tivesse parado,
e o rio não corresse pelos teus olhos.

('Tempo fluvial' de Nuno Júdice, in A a Z)

Joana Amendoeira interpreta a Gaivota

Vibrante Joana Amendoeira aqui interpretando um fado histórico, letra de Amália.

O fado português, renascendo com as novas gerações que com elegância e sentimento puxam pela alma como se puxassem pelas cordas da guitarra, é, sem dúvida, a canção de Portugal.


Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

(Letra de Gaivota da autoria de Amália Rodrigues)

Este poema começa por te comparar com as constelações

Será a mulher amada sobretudo um refúgio triste da imaginação? Não, não creio. Refúgio sim, refúgio da imaginação, sim, mas triste, não.

Será a mulher a mais perfeita realização do milagre da criação? Sim, creio que sim.

Estrelas, luz, natureza divina, silêncio, são palavras que ocorrem quando um homem pensa na mulher amada? Talvez (... geralmente 'silêncio' não...).

Deve um homem dizer bem alto que tem falta da mulher amada? Pode, mas não leva a nada. O que deve fazer é ir procurá-la.

Há poucas horas, numa paragem de autocarro em Cacilhas, mesmo às portas do Ginjal

Este poema começa por te comparar
com as constelações,
com os seus nomes mágicos
e desenhos precisos,
e depois
um jogo de palavras indica
que sem ti a astronomia
é uma ciência infeliz.
Em seguida, duas metáforas
introduzem o tema da luz
e dos contrastes
petrarquistas que existem
na mulher amada,
no refúgio triste da imaginação.

A segunda estrofe sugere
que a diversidade de seres vivos
prova a existência
de Deus
e a tua, ao mesmo tempo
que toma um por um
os atributos
que participam da tua natureza
e do espaço criador
do teu silêncio.

Uma hipérbole, finalmente,
diz que me fazes muita falta.


('Paráfrase' de Pedro Mexia in Menos por Menos)

GNR interpretam "Sangue Oculto"

Rui Reininho aqui com idade para ser filho do actual Rui Reininho.

Mas a voz e a irreverência agora estão melhores que na altura. Contudo, uma grande canção, uma grande interpretação.

Forever young. 


Há luz na artéria principal,
Ardem as chamas de dois sóis
Há luta na arena artificial
Corre o sangue mato-me primeiro e a ti depois

Al huir de una investida
Es como saltar una hoguera
La barrera de fuego una frontera

Ao fugir da própria vida
Sem correr e sem saltar
Oculto o sangue que tenho para dar

Flores como la sangre
Correran entre mis venas
Ardem como el deseo
Tu prison y mis cadenas

Ao fugir da própria vida
Sem correr e sem saltar
Oculto o sangue que tenho para dar
Al huir de una investida

Es como saltar una hoguera
La barrera de fuego una frontera

Ao fugir de uma investida
Como saltar a fogueira
A barragem de fogo, uma fronteira
Al dejar la propria vida

Sin volver la pista atras
Guardaré la sangre que tengo para dar
Al huir de una investida
Es como saltar una hoguera
La barrera de fuego una frontera

Ao fugir da própria vida
Sem correr e sem saltar
Oculto o sangue que tenho para dar
Ao fugir de uma investida

Es como saltar una hoguera
Uma barragem de fogo, uma fronteira
Al dejar la propria vida
Sin volver la pista atras

Oculto o sangue que tenho para dar


(Letra de 'Sangue Oculto', composição dos GNR)

28 junho, 2011

Pelo teu corpo, pelo seu calor, humidade e frescura eu troco as minhas poucas résteas de esperança

Há palavras de amor e paixão que atingem com força quem as diz e quem as ouve.

O amor faz-se de gestos e faz-se de palavras.

As palavras  há que saber escolhê-las, há que saber dizê-las.

Mas há também que saber ouvi-las, que saber acolhê-las. 

Um amor que é desejo e imaginação e dádiva é um amor que é eterno mesmo que dure apenas um momento   e há momentos que valem uma vida, que valem todas as résteas de esperança.

Há pouco, de frente para Lisboa, à beira do Tejo

Pelo teu corpo
pelo seu calor  humidade e frescura
pelos seus odores vários que vão da raiz
à flor e ao mais lento e impaciente dos frutos
pelas bocas que nele há
das mais húmidas às mais expectantes
pelo seu todo indissociável
para a minha necessidade
e para o meu imaginário
pelo seu todo poderoso
pelo teu corpo eu troco:
as minhas poucas e últimas
résteas de esperança
e ainda (mãos largas que estou)
as angústias todas as minhas
angústias de estimação.


(Poema de 'O quarto azul - e outros poemas' de Rui Caeiro)

Maria Bethânia interpreta Teresinha

Há muitas canções que vivem dentro de mim e esta é uma delas.

Há intérpretes que vivem no meu coração e Maria Bethânia é uma delas.

Esta canção é linda e dedico-a todos os que chegam do nada, nada perguntam e que se instalam dentro dos nossos corações.



O primeiro me chegou como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia, trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens e as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio, me chamava de rainha
Me encontrou tão desarmada que tocou meu coração
Mas não me negava nada, e assustada, eu disse não
O segundo me chegou como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente tão amarga de tragar
Indagou o meu passado e cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta me chamava de perdida
Me encontrou tão desarmada que arranhou meu coração
Mas não me entregava nada, e assustada, eu disse não
O terceiro me chegou como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada também nada perguntou
Mal sei como ele se chama mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama e me chama de mulher
Foi chegando sorrateiro e antes que eu dissesse não
Se instalou feito um posseiro dentro do meu coração


(Letra de 'Teresinha', composição de Chico Buarque)

27 junho, 2011

De repente, as letras. O rosto no meio das letras, sufocado a um canto.

Mulheres e letras e o seu som, correndo na noite.

Letras correndo na noite, de porta em porta, de país em país, de continente em continente.

Mulheres que dão as letras à luz e as deixam, levadas pelo vento, como lenços.

Mulheres correndo na noite atrás das palavras, decifrando o que está dentro das palavras, para além das letras.

Mulheres que se perdem por palavras.

Mulheres pela tarde dentro, no Ginjal, o céu por cima, o Tejo correndo ao lado

De repente, as letras. O rosto sufocado como
se fosse abril num canto da noite.
O rosto no meio das letras, sufocado a um canto,
de repente.
Mulheres correndo, de porta em porta, com lenços
sufocados, lembrando letras, levando
lenços, letras - nas patas
negras, grandiosamente abertas.
Como se fosse abril, sufocadas no meio.
Era o som delas, como se fosse abril a um canto
de noite, lembrando.


(Fragmento de 'Ou o poema contínuo' de Herberto Helder - poesia em estado puro, de uma beleza quase excessiva)

Rui Veloso interpreta Porto Côvo

Rui Veloso de novo e nunca é demais. Aqui em Porto Covo, praia onde passei várias férias, aldeia encantadora com uma ilha com um pessegueiro.

Não há melhor sargo, fresquinho, acabadinho de pescar.


Roendo uma laranja na falésia
Olhando o mundo azul à minha frente,
Ouvindo um rouxinol na redondeza,
No calmo improviso do poente

Em baixo fogos trémulos nas tendas
Ao largo as aguas brilham como pratas
E a brisa vai contando velhas lendas
De portos e baias de piratas

Havia um pessegueiro na ilha
Plantado por um Vizir de Odemira
Que dizem que por amor se matou novo
Aqui, no lugar de Porto Covo

A lua ja desceu sobre esta paz
E reina sobre todo este luzeiro
Á volta toda a vida se compraz
Enquanto um sargo assa no brazeiro

Ao longe a cidadela de um navio
Acende-se no mar como um desejo
Por tras de mim o bafo do destino
Devolve-me à lembranca do Alentejo

Havia um pessegueiro na ilha
Plantado por um Vizir de Odemira
Que dizem que por amor se matou novo
Aqui, no lugar de Porto Covo

Roendo uma laranja na falésia
Olhando à minha frente o azul escuro
Podia ser um peixe na maré
Nadando sem passado nem futuro
(Letra de 'Porto Covo' da autoria de Carlos Tê - a música é de Rui Veloso)

26 junho, 2011

É muito bela esta mulher desconhecida que me olha longamente

Uma mulher desconhecida olha longamente as palavras que alguém desconhecido escreve no vento.

Uma mulher desconhecida, sem nome, nos curtos espaços da manhã, nas distantes e quentes noites, pergunta-se tantas vezes quem é aquele outro que percorre florestas, longas estações, sem conseguir esquecer feridas irreparáveis de um doce amor.

Há dois dias, ao entardecer, junto ao Farol de Cacilhas, o Tejo em fundo.

É muito bela esta mulher desconhecida
que me olha longamente
e repetidas vezes se interessa
pelo meu nome

eu não sei
mas nos curtos instantes de uma manhã
ela percorreu ásperas florestas
estações mais longas que as nossas
a imposição temível do que
desaparece

e se pergunta tantas vezes o meu nome
é porque no corpo que pensa
aquela luta arcaica, desmedida se cravou:
um esquecimento magnífico
repara a ferida irreparável
do doce amor


('A mulher desconhecida' de José Tolentino de Mendonça in "A noite abre meus olhos", poesia reunida, Assírio & Alvim)

Isabel Silvestre interpreta 'A gente nao lê'

Já é tempo de reparar uma grande lacuna. Isabel Silvestre,  com o seu grupo de dos Cantares de Manhouce, é a voz de Portugal, um Portugal muito autêntico, de um Portugal ainda puro.

Ouço a Isabel Silvestre e sinto as raízes do meu País. Obrigada Isabel Silvestre.


Aí senhor das furnas
Que escuro vai dentro de nós
Rezar o terço ao fim da tarde
Só para espantar a solidão
Rogar a deus que nos guarde
Confiar-lhe o destino na mão

Que adianta saber as marés
Os frutos e as sementeiras
Tratar por tu os ofícios
Entender o suão e os animais
Falar o dialecto da terra
Conhecer-lhe o corpo pelos sinais

E do resto entender mal
Soletrar assinar em cruz
Não ver os vultos furtivos
Que nos tramam por trás da luz

Aí senhor das furnas
Que escuro vai dentro de nós
A gente morre logo ao nascer
Com olhos rasos de lezítia
De boca em boca passar o saber
Com os provérbios que ficam na gíria

De que nos vale esta pureza
Sem ler fica-se pederneira
Agita-se a solidão cá no fundo
Fica-se sentado à soleiro
A ouvir os ruídos do mundo
E a entendê-los à nossa maneira

Carregar a superstição
De ser pequeno ser ninguém
E não quebrar a tradição
Que dos nossos avós já vem

(Letra de 'A gente não lê, da autoroa de Carlos Tê - a música é de Rui Veloso)

25 junho, 2011

Como recebeu ela Adão? Despojou-o, e o desflorou, ajudando?

Meninos ou adultos, é a mesma coisa em qualquer idade, quando duas pessoas entregam os seus corpos ao reconhecimento mútuo.

Hesitantes, ternos, aprendizes, despojados, agradecidos, felizes, arrancando de si sementes ou lágrimas e sorrisos.

E palavras de amor e desejo e beijos.

Assim deve ser.

Um subtil jogo de aprendizagem.

Junto ao Tejo, jovem casal de namorados, uma ternura

Como recebeu ela Adão?
Despojou-o,
e o desflorou, ajudando?

Adão, brutal ou terno?
Acometeu, cervo
ou foi penetrante andorinha?

Arrancou de si
sementes, o coração
latindo, cão grato?

Felizes, torturantes,
aprendizes, falsos,
sortílegos, infames?

Inteiraram-se um no outro?
Desejaram a morte
de quantos séculos?


('Mistérios de amos, de cada criatura' de António Osório in '366 poemas que falam de amor', antologia organizada por Vasco Graça Moura)

Céu interpreta Malemolência

Desconhecia esta cantora que tão bem canta e que traz até nós a bela sonoridade do Brasil.

Apetece, de facto, cair na roda, cair na dança.

Desconhecia também esta palavra e, ao ver o seu múltiplo significado, não sei bem, aqui, neste caso, qual o mais adequado.




Veio até mim
Quem deixou
Me olhar assim
Não pediu
Minha permissão
Não pude evitar
Tirou meu ar
Fiquei sem chão...

Menino bonito
Menino bonito, ai!
Ai menino bonito
Menino bonito, ai!...(2x)

É tudo o que eu posso
Lhe adiantar
O que é um beijo
Se eu posso ter o teu olhar?
Cai na dança, cai!
Vem prá roda
Da Malemolência...

Menino bonito
Menino bonito, ai!
Ai menino bonito
Menino bonito, ai!...(2x)

É tudo que eu posso
Lhe adiantar
O que é um beijo
Se eu posso ter o teu olhar?
Cai na dança, cai
Vem prá roda
Da Malemolência...

Menino bonito
Menino bonito, ai!
Ai menino bonito
Menino bonito, ai!


(Letra de Malemolência da autoria de Alec Haiat; a música é de Céu)

23 junho, 2011

Esta mulher no centro do corpo traz uma ilha

Sou uma mulher por vezes numa ilha só minha. Sou uma mulher com muitas ilhas dentro de mim.

E tu como me vês?

Decerto não num templo. Sou muito terrena, demasiado profana.

Apenas o amor tenho como sagrado mas não isolado num templo no centro de uma ilha.

No Ginjal, ao cair da noite, mulher junto ao Tejo, contempla Lisboa

Esta mulher
no centro
do corpo traz uma ilha

Esta mulher
um templo
no centro da sua ilha

Esta mulher
o centro
já do templo não da ilha

Esta mulher
oh templo
de tudo na minha vida


('Esta mulher' de David Mourão-Ferreira in 'A arte de amar')

22 junho, 2011

Vitorino interpreta Alentejanas e Amorosas

Em véspera de dia feriado e com o calor a aumentar, ocorre-me o Alentejo e Alentejo é Vitorino.

Aqui temos, pois, Vitorino a interpretar Alentejanas e Amorosas.



O alentejo é uma terra
Cheia de moças airosas
Pr'a passear à tardinha
Alentejanas e amorosas

O alentejo é uma cantiga
Com quadras das mais formosas
Cantemos à desgarrada
Alentejanas e amorosas

O alentejo é um jardim
Plantado de flores vistosas
Do malmequer ao jasmim
Alentejanas e amorosas

O alentejo é uma tristeza
Suas canções dolorosas
Pr'a cantar á despedida
Alentejanas e amorosas

O alentejo é um encanto
Uma braçada de rosas
Vou bailar com meus amores
Alentejanas e amorosas

As cantigas e as mulheres
É bom que sejam mimosas
Pr'a ficarem no sentido
Alentejanas e amorosas


(Letra de Alentejanas e Amorosas' de Francisco Martins Ramos)

21 junho, 2011

Na orla do mar, no rumor do vento, onde esteve a linha pura do teu rosto

Passeio junto ao mar que é rio, que é azul, aspiro a maresia, a frescura do entardecer. Se por aqui passasses nem me vias, o meu corpo estava convertido em alma e a alma voava sobre as águas.

Não sei onde estás, se estás do outro lado do rio, se estás do outro lado do mundo, se estás aqui ao meu lado.

Não sei se a aragem que roça o meu rosto é o vento, se és tu, aqui junto a mim, intenso, secreto, só meu.

Hoje ao fim do dia, junto ao Tejo, jovem mulher contempla Lisboa
Na orla do mar,
no rumor do vento,
onde esteve a linha
pura do teu rosto
ou só pensamento
- e mora, secreto,
intenso, solar,
todo o meu desejo -
aí vou colher
a rosa e a palma.
Onde a pedra é flor,
onde o corpo é alma.


('Na orla do mar' belíssimo poema de Eugénio de Andrade in Antologia Breve)

Ana Vieira e Rodrigo Leão interpretam Voltar

Não me canso de aqui colocar o Rodrigo Leão. São composições intemporais, de uma refinada qualidade. Além disso, escolhe criteriosamente as suas intérpretes. Aqui a sensível Ana Vieira que dá tanta espessura e vivência às belas composições que interpreta.


Manhã Cinzenta
Faz me chorar
A chuva lembra
O teu olhar
As folhas mortas
Caem no chão
A dor aperta
O coração
Quanto eu não daria
Para poder voltar atrás
Volta pra meu peito
Daqui não saias mais

Perdi me amor
Pra te encontrar
Na solidão
Do teu olhar
No teu olhar
Se perde o meu
Também o mar
Se perde no céu
Quanto eu não daria
Para poder voltar atrás
Volta pro meu peito
Daqui não saias mais
 
(Letra de Voltar, belíssima composição com a marca de Rodrigo Leão)

20 junho, 2011

Disseste: o sol nasceu. Foi verdadeiramente então que o sol nasceu

Digo-te que o sol está a nascer e tu, que mal reparas, vês então que o sol já aí está. Ou digo-te, olha que bonito o sol a pôr-se, e tu dizes que sim.

Coisas banais, todos os dias o sol nasce e se põe mas, para mim, todos os dias isso é um milagre a que, rendida, assisto.

E, se estou junto ao rio, imersa em todo o imenso azul, digo, convertida, meu amor, olha o sol nasceu, ou meu amor o sol está a pôr-se. E fico feliz se tu comprovas que o sol nasceu, que o sol se pôs.

Sei, então, que não estou a sonhar com tão improvável milagre.

Flor de cardo, de um etéreo lilás, na descida para o Ginjal - o Tejo e a Ponte ao fundo

Disseste: o sol nasceu.
Foi verdadeiramente então que o sol nasceu
e que nos habituámos todos a dizer
que o sol nasceu.
Às vezes pensamos que acontece várias vezes
mas é uma ilusão de óptica que não nos deixa ver
o grande círculo azul em cujo centro
tu dizes eternamente: o sol nasceu.

('Disseste: o sol nasceu', poema de Pedro Tamen in 'Memória indescritível')

João Afonso,Uxia,Júlio Pereira interpretam 'Entre Sodoma e Gomorra'

Lembrei-de do João Afonso ao vê-lo no documentário José e Pilar. O João, de facto, herdou parte da fisionomia do tio, algum do timbre do tio e, tal como ele, coloca uma honestidade e uma inocência nas canções e nas interpretações a que, dificilmente, somos indiferentes.

Esta canção, interpretada em festa com os amigos Úxia e Júlio Pereira, é uma canção muito ao jeito do Mestre Zeca. Um prazer.


Entre Sodoma e Gomorra
entrou na cama a barata
a virginal favorita
que às escondidas me mata

São horas de perder horas
ou de minutos apenas
entre Sodoma e Gomorra
fui ver o mar a Atenas

Entre Sodoma e Gomorra
entrou na cama a barata
a virginal favorita
que às escondidas me mata

Entre Sodoma e Gomorra
somaras a minha vida
barata minha barata
não me deixes à deriva

Entre Sodoma e Gomorra
entrou na cama a barata
a virginal favorita
que às escondidas me mata

São horas de perder horas
ou de minutos apenas
entre Sodoma e Gomorra
fui ver o mar a Atenas

(Letra de 'Entre Sodoma e Gomorra, da autoria de António Afonso)

18 junho, 2011

Agora lês saramagos & coisas assim e eu já não fico a ouvir-te como antigamente

Gostas das minhas pernas, gostas de as percorrer e o tempo não passa por nós. E leio Saramago, sim.

Leio Saramago, e não é coisa do passado. É de hoje e de sempre.

Dizem que se foi embora há exactamente 1 ano mas não foi.

Estou agora a vê-lo na televisão, passa o documentário José e Pilar. Vejo-os a renovarem os votos, abraçam-se.

E hoje as suas cinzas foram colocadas junto à raiz de uma oliveira que veio da aldeia da Azinhaga. Junto à oliveira há um banco. A partir de agora, um local muito especial. Saramago estará lá.

Às vezes, nesse banco sentar-se-á um casal, ele olhará as pernas da mulher, percorrê-las-á e falarão de coisas perfeitas.


No cais de Cacilhas, casal olha Lisboa, o Tejo a seus pés

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.



('Esplanada' de Manuel António Pina in 'Poesia, saudade da Prosa')

Paulo Bragança canta "a cappella"

Uma gravação quase com 20 anos de um Paulo Bragança que está afastado de Portugal há vários anos mas que, soube hoje, se prepara para regressar.

Uma voz fantástica.


Não sei o nome da canção que canta pelo que, infelizmente, não poderei colocar a letra.

16 junho, 2011

Da paixão bebi o vento que haveria de me saciar

No local mais belo do mundo, de frente para a cidade mais bela do mundo, o rio largo e belo de permeio, respiro o largo ar dos espaços, aspiro o vento, aspiro a maresia.

Aqui o tempo espera por mim, espera que eu esteja saciada.

E eu volto sempre como se volta aos grandes amores.


O Tejo azul, Lisboa com a Torre de Belém ali ao fundo: os grandes espaços avistados do Ginjal, onde uma mesa e duas cadeiras esperam

Do mar bebi o vento
que haveria de me arrepiar.
Do vento filtrei partículas
que haveriam de me alimentar.
Às partículas juntei o tempo
que haveria de me apaixonar.
Da paixão bebi o vento
que haveria de me saciar.


(poema de '190 minutos aqui' de Patrícia Aguiar)

Caetano Veloso interpreta Você é linda

Caetano Veloso, voz de mel, sorriso feliz, aqui numa bela canção que qualquer mulher adoraria que lhe fosse dedicada.


Fonte de mel
Nos olhos de gueixa
Kabuki, máscara
Choque entre o azul
E o cacho de acácias
Luz das acácias
Você é mãe do sol
A sua coisa é toda tão certa
Beleza esperta
Você me deixa a rua deserta
Quando atravessa
E não olha pra trás

Linda
E sabe viver
Você me faz feliz
Esta canção é só pra dizer
E diz
Você é linda
Mais que demais
Vocé é linda sim
Onda do mar do amor
Que bateu em mim

Você é forte
Dentes e músculos
Peitos e lábios
Você é forte
Letras e músicas
Todas as músicas
Que ainda hei de ouvir
No Abaeté
Areias e estrelas
Não são mais belas
Do que você
Mulher das estrelas
Mina de estrelas
Diga o que você quer

Você é linda
E sabe viver
Você me faz feliz
Esta canção é só pra dizer
E diz
Você é linda
Mais que demais
Você é linda sim
Onda do mar do amor
Que bateu em mim

Gosto de ver
Você no seu ritmo
Dona do carnaval
Gosto de ter
Sentir seu estilo
Ir no seu íntimo
Nunca me faça mal

Linda
Mais que demais
Você é linda sim
Onda do mar do amor
Que bateu em mim
Você é linda
E sabe viver
Você me faz feliz
Esta canção é só pra dizer
E diz


(Letra de 'Você é linda' de Caetano Veloso)

15 junho, 2011

Vestes-te como quem tapa um segredo e desces a escada

Trago comigo as palavras que nem sempre digo, trago comigo o teu olhar longo pousado em mim.

Visto-me e aconchego a mim a blusa, guardando por dentro, rente à pele, os teus afagos mais secretos.

Visto-me e ajeito a saia e dentro de mim guardo o amor que um dia me ofereceste, e que, passados tantos anos, continuas a oferecer-me, sem palavras.

Por isso nunca nos dizemos adeus.

No Ginjal, ao por-do-sol, mulher passeia, quase parece uma boneca

Vestes-te como quem tapa um segredo
e desces a escada, para a despedida
não há palavras, ou não sobraram
Contigo, escada abaixo, vão adeuses
por dizer, ternura envergonhada, mudos
agradecimentos e ainda alguns restos
de humores trocados no entre-pernas
O que tu digas ou eu diga pouco importa
Que os corpos se lembrem - isso é tudo
Que tenham esquecido ou venham
a esquecer - tudo é também

(Belo poema, belos e maduros poemas estes de Rui Caeiro in 'Quarto Azul e outros poemas')

Tiago Bettencourt & Mantha interpretam 'Chocámos Tu e Eu' com o Gel a animar

Tiago Bettencourt & Mantha, numa composição que Gel transforma em música de aula de aeróbica.

Divertido.


sei que não vais mudar dentro da ilusão,
mas queres parar por ser bom saber que há a minha mão para descansar,
para te esconder e não mostrar.

vem, não vou perguntar se não queres dizer, ahh deixa ser,
o que é bom sentir, só mais uma vez quase sem tocar.
para respirar, só mais uma vez. quando eu não quis ver fui a deslizar,
quando ninguém quis parar, cresceu.
e então chocámos tu e eu, e então chocámos tu e eu.
ahh, diz-me onde estás, vou ter aí. já sem razão para desculpar,
já sem saber para onde ir, para te fugir, para me esquivar, não me destruir.
quando eu não quis ver fui a deslizar, quando ninguém quis parar, cresceu.
e então chocámos tu e eu, e então chocámos tu e eu, e então chocámos tu e eu.
hoje vais dizer que já não tens paz, hoje vens pedir para te ensinar.
quando ninguém viu, quando a chuva cai o rio cresceu, e então chocámos tu e eu.

e então chocámos tu e eu.
e então chocámos tu e eu.

sei que não vais mudar e que eu vou partir,
eu quero alguém que me queira bem para me construir.


(Letra de 'Chocámos tu e eu' de Tiago Bettencourt)

14 junho, 2011

Como eu teria amado o silêncio do mundo

Há por vezes este grande silêncio, estes belos e decadentes espaços onde já não ouço os teus passos.

Já nada fala de nós.

A memória é um caminho longo sem nada no fim.

Ao anoitecer no Ginjal, cadeira vazia de frente para o Tejo, a Ponte a emoldurar, como que vazia

Como eu teria amado o silêncio do mundo
se sobre ele permanecesse a marca dos teus passos.

Só este resto de neve ainda fala de nós,
como se viver fosse apenas atravessar este campo

sem mais nada no fim.


('Viver é mais que atravessar um campo' [Pasternak] de Luís Filipe Castro Mendes in Lendas da Índia)

João Braga e Maria da Fé, Mariza, Camané e a brilhante nova geração numa desgarrada

Grande momento de fado, mesmo a calhar para este período de santos populares.

Dá gosto ouvir estes grandes nomes do fado a cantarem à desgarrada e em conjunto.

Com João Braga e Maria da Fé, um rei e uma rainha, podemos ver Mafalda Arnauth, Joana Amendoeira, Gonçalo Salgueiro, Ana Sofia Varela, Katia Guerreiro, Nuno Guerreiro, Miguel Capucho, Rodrigo Costa Félix, Mariza, Camané e Maria Ana Bobone juntos numa desgarrada em tom de brincadeira intitulada "Norte/Sul"

Abençoados.

13 junho, 2011

O mais do que isto é Jesus Cristo, que não sabia de finanças nem consta que tivesse biblioteca...

Numa altura de exames para quem anda na escola e de trabalhar arduamente para os que têm a sorte de ter trabalho, este é o poema que não deveria ser escolhido para aqui colocar.

Mas, justamente, porque se chama liberdade e porque devemos ter a capacidade, em qualquer circunstância, de colocar as coisas em perspectiva, não nos levando demasiado a sério, aqui vos deixo do menino Fernando Pessoa que hoje faz 123 anos e que ainda está um jovem, pronto para todas as curvas, um poema a que acho um piadão (embora não corresponda exactamente ao que penso - à semelhança do que se passava com o figurão do Fernandinho, esse fingidor).

Long live Fernando Pessoa.

Esperando por D. Sebastião, vendo o Tejo que corre, sentindo a brisa, no Ginjal

Ai que prazer
não cumprir um dever,
ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira
sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa,
de tão naturalmente matinal,
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
a distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
esperar por D.Sebastião,
quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
flores, música, o luar, e o sol, que peca
só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
é Jesus Cristo,
que não sabia nada de finanças
nem consta que tivesse biblioteca...


(Liberdade de Fernando Pessoa, in Obra Poética I)

Os OqueStrada interpretam "Oxalá Te Veja"

Esta banda almadense tem, em cada actuação, uma explosão de vida, de alegria. Dá gosto vê-los em acção. A vocalista é uma mulher com uma vivacidade extraordinária. Dá vontade que peguem em nós e nos ponham a dançar, a saltar, a cantar com eles.

Bem hajam.

 
 
Tenho dores fechadas em caixinhas
Contra mim, contra ti, contra lá,
Contra os dias que passam, a meu lado

Tenho dores fechadas em caixinhas, contra aqui, contra ali, contra cá
Que me dizem, estou aqui, estamos lá

Ah diz-me la, diz me aqui
Oxalá, oxalá te veja a meu lado ao pé de mim

Tenho dores fechadas em caixinhas
Contra mim, contra ti, contra lá,
Contra os dias que passam, a meu lado

Tenho dores fechadas em caixinhas,
contra aqui, contra ali, contra cá
Mas que me dizem, estou aqui, estamos lá

Ah diz-me la, diz me aqui
Oxalá, oxalá te veja a meu lado ao pé de mim, ao pé de mim
Ah oxalá te veja ao meu lado
Oxalá te veja bem aqui
Ai oxalá te veja a meu lado
ao pé de mim, ao pé de mim.


Glória à Hermínia ao marceneiro e tais fadistas
Glória à ginjinha ao medronho e à revista,Glória
à Hermínia, Glória
à Hermínia ao marceneiro e tais fadistas,
à ginjinha ao medronho e à revista

Contra mim, contra ti, contra lá
Contra aqui, contra ali, contra cá
Contra mim, contra ti, contra lá,
Contra mim, contra ti, contra lá


(Letra de 'Oxalá te veja', composição dos Oquestrada)

12 junho, 2011

Eu sou talvez aquele que procuras

Neste labirinto, não sei se sou eu que te procura, se és tu que me procuras, se sou eu que me procuro.

A tua voz dentro do meu coração, a minha dentro do teu, o meu silêncio, a tua voz, as minhas e as tuas dúvidas, o meu corpo que te pertence, o teu corpo que me cobre a pele, um emaranhado de mim e de ti, nós dois para sempre juntos.

Emaranhado de linhas de pescadores no Ginjal

Eu não procuro nada em ti,
nem a mim próprio, é algo em ti
que procura algo em ti
no labirinto dos meus pensamentos.

Eu estou entre ti e ti,
a minha vida, os meus sentidos
(principalmente os meus sentidos)
toldam de sombras o teu rosto.

O meu rosto não reflecte a tua imagem,
o meu silêncio não te deixa falar,
o meu corpo não deixa que se juntem
as partes dispersas de ti em mim.

Eu sou talvez
aquele que procuras,
e as minhas dúvidas a tua voz
chamando do fundo do meu coração.


('O lado de fora' de Manuel António Pina in 'Poesia, saudade da prosa')

09 junho, 2011

Que faço eu senão amar o milagre sem paga a lírica explosão de um rio que brota neste espaço?

Que faço eu? Que faço?

Chamo por ti?
Espero que o rio te traga até mim?

Deixo-me aqui estar, sem lágrimas, esperando o milagre, a lírica explosão?

Casal enlaçado, há pouco, junto ao farol de Cacilhas, sobre o Tejo, Lisboa já ali

Que faço eu senão amar
o milagre sem paga
a lírica explosão
de um rio que brota neste espaço
de um algo agora acrescentado
ao mudo mundo em que nasci?
Que faço eu         que faço
senão olhar o que tenho em frente
e deixar que as lágrimas caiam
dadivosas?


(Belíssimo, belíssimo poema '40.' de Pedro Tamen in 'O livro do sapateiro')

Mariza interpreta Rosa Branca

Num período de santos populares, tinha que colocar aqui no Ginjal e Lisboa uma marchinha popular: Rosa Branca, numa interpretação de Marisa, enquadrada pela história de Lisboa.



De Rosa ao peito na roda
Eu bailei com quem calhou
Tantas voltas dei bailando
Que a rosa se desfolhou

Quem tem, quem tem
Amor a seu jeito
Colha a rosa branca
Ponha a rosa ao peito

Ó roseira, roseirinha
Roseira do meu jardim
Se de rosas gostas tanto
Porque não gostas de mim?

(Letra de 'Rosa Branca', Composição : José de Jesus Guimarães / Resende Dias)

08 junho, 2011

Não olhasses o relógio terias sentido o coração ficar

Um de nós partiu, não sei qual foi.

Mas o coração ficou.

Ainda bate, podes crer, o meu por ti. Quem sabe o teu por mim.

Saída do cacilheiro, Lisboa do lado de lá do Tejo

Quiseste partir
mas fui eu a quebrar.
Evitavas cuidadosa os cacos
que te estendia, a medo, na mão
e mal te via já, a caminho do carro,
por entre casais a dançar no pó:
alguns acenavam, conhecidos,
outros não davam sequer
pelo estrago do rosto
que assim me roubavas.

Não olhasses o relógio
terias sentido o coração

ficar



('São lágrimas' de Rui Lage in 'Um arraial português')

JP Simões & Luanda Cozetti interpreta 'Se Por Acaso'

Hoje estava mesmo a apetecer-me ouvir uma canção assim. Ouçam por favor. É tão bonito.



Se por acaso me vires por aí
Disfarça, finge não ver
Diz que não pode ser, diz que morri
Num acidente qualquer
Conta o quanto quiseste fazer
Exalta a tua versão
Depois suspira e diz que esquecer
É a tua profissão

E ouve-se ao fundo uma linda canção
De paz e amor
Se por acaso me vires por aí
Vamos tomar um café
Diz qualquer coisa, telefona, enfim
Eu ainda moro na Sé
Encaixotei uns papeis e não sei
Se hei-de deitar tudo fora
Tenho uma série de cartas para ti
Todas de uma tal de Dora

E ouvem-se ao fundo canções tão banais
De paz e amor
Se eu por acaso te vir por aí
Passo sem sequer te ver
Naturalmente que já te esqueci
E tenho mais que fazer
Quero que saibas que cago no amor
Acho que fui sempre assim
Espero que encontres tudo o que quiseres
E vás para longe de mim

E ouve-se ao fundo uma velha canção
De paz e amor
Na sexta-feira acho que te vi
À frente da Brasileira
Era na certa o teu fato azul
E a pasta em tons de madeira
O Tó talvez queira te conhecer
Nunca falei mal de ti
A vida passa e era bom saber
Que estás em forma e feliz

E ouve-se ao fundo uma triste canção
De paz e amor.


(Letra de 'Se por acaso me vires por aí')

07 junho, 2011

Sinto medo e reverência pelos teus mistérios sublimes

Sou um mistério para ti e eu gosto de te manter ignorante sobre mim.

Ninguém é de ninguém mas de ti, então, é que não sou mesmo.

Mas não sintas receio nem reverência.

Sou biologia e química como qualquer outra pessoa.

No Ginjal, hoje de tarde, casal passeia junto ao rio

A tua biologia mantém-me acordado
e ignorante. Sinto medo
e reverência pelos teus mistérios
sublimes e vulgares
como o sexo e o sono,

e depois lembro-me que pertences
a outro e à sua biologia
e que eu não irei nunca
dormir junto do amor
químico do teu ventre.


('A tua biologia' de Pedro Mexia in 'Menos por menos')

Maria João Pires interpreta Chopin Nocturno n.º 4

Maria João, a senhora das mãos pequeninas, simples, aqui em Chopin, o Nocturno nº 4, perfeita como sempre. Uma boa música para se ouvir hoje.

06 junho, 2011

Volto, pois, a casa. Mas a casa, a existência, não são apenas coisas que li?

Este é um mundo feito de palavras, palavras pensadas, palavras escritas, palavras lidas.

Palavras que se esperam, palavras que se festejam, que nos fazem rir, que nos deixam tristes.

Palavras nem sequer ditas.

Palavras que ocupam o lugar, tamém secreto, do silêncio.

No Ginjal, personagem que vejo sempre a recolher-se a um pátio para aí, com uma grande objectiva apontada ao Tejo. escolher o momento de disparar.

Volto, pois, a casa. Mas a casa,
a existência, não são coisas que li?
E o que encontrarei
se não o que deixo: palavras?

Eu, isto é, palavras falando,
e falando me perdendo
entre estando e sendo.
Alguma vez, quando

havia começo
e não inércia,
quando era cedo
e não parecia,

as minhas palavras puderam estar
onde sempre estiveram:
no apavorado lugar
onde sou o silêncio.

['O resto é silêncio (que resto?) de Manuel António Pina in 'Nenhuma palavra e nenhuma lembrança']

Maria João interpreta 'A outra'

Maria João, a criativa, a irreverente, a destemida, interpreta a 'A outra' e com que graça.



Paz, eu quero paz
Já me cansei de ser a última a saber de ti
se todo mundo sabe quem te faz chegar mais tarde
eu já cansei de imaginar você com ela
diz pra mim
se vale a pena amor

a gente ria tanto desses nossos desencontros
mas você passou do ponto
e agora eu já não sei mais
eu quero paz
quero dançar com outro par
pra variar amor

não dá mas pra fingir que ainda não vi
as cicatrizes que ela fez
se dessa vez ela é
senhora desse amor
pois vá embora por favor
que não demora pra essa dor
sangrar


(Letra de 'A outra')

05 junho, 2011

Atinge mais profundo o toque de uns lábios sem palavras que o golpe em busca do sangue derradeiro

Não quero palavras onde basta um olhar, não quero palavras onde bastam os teus lábios.

Na estação de embarque de Cacilhas, belo perfil de homem, bela silhueta

Esta luz exalta um corpo, ao irradiar
seu jorro imprevisto e temerário,
deslumbrante enquanto se difunde
e paira entre uma lâmpada e os olhos
que em recompensa lhes cedem seu abrigo:
campo sereno, completo ao afirmar-se.

Aqui não permanece, não se amplia
além do feixe que súbito se anula:
nunca é no olhar onde pousa uma ferida.
Mas em sua brevidade, que poderá
ser lampejo de uma pedra, de uma pétala,
adverte que atinge mais profundo

o toque de uns lábios sem palavras
que o golpe em busca do sangue derradeiro.


(Poema '35. Esta luz exalta um corpo' de José Bento in Sítios)

Couple Coffee interpreta No Comboio Descendente

Este duo de que tanto gosto, aqui em mais uma bela canção em que Zeca Afonso musicou Pessoa.

Lembrei-me desta canção no dia de hoje, sabidos que são os resultados das eleições, em que, ao ver a televisão, vejo tanta gente a rir.


No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada.
Uns por verem rir os outros
E outros sem ser por nada
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela
Uns calados para os outros
E outros a dar-lhes trela
No comboio descendente
De Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormnindo, outros com sono,
E outros nem sim nem não
No comboio descendente
De Palmela a Portimão
(Letra de 'Comboio Descendente' da autoria de Fernando Pessoa)

02 junho, 2011

Quando de noite as tuas mãos são o meu único vestido

Tempos houve em que, meu amor, as tuas mãos eram o meu único vestido.

Mas essas vestes há muito tempo que se desfizeram.

E, enquanto te espero, eu teço e desteço, dias sem fim, a teia de pudor e de amor com que nos dias de amor me vestias e despias.

No Ginjal, há pouco, ao fim do dia, uma veste desfeita, uma teia sem sentido

Mais do que um sonho: comoção!
Sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.


('Penélope' de David Mourão-Ferrreira in 'A arte de amar')

Ana Moura interpreta "No Expectations"

Ouvi de manhã na rádio e não me saíu da cabeça.

Por isso, apesar de ser uma canção original dos Rolling Stones, coloco-a aqui: Ana Moura interpreta-a com a sensibilidade e sensualidade do costume e canta parte em português.


M. Jagger/K. Richards)

Take me to the station
And put me on a train
I've got no expectations
To pass through here again

Once I was a rich man and
Now I am so poor
But never in my sweet short life
Have I felt like this before

You heart is like a diamond
You throw your pearls at swine
And as I watch you leaving me
You pack my peace of mind

Our love was like the water
That splashes on a stone
Our love is like our music
Its here, and then its gone

So take me to the airport
And put me on a plane
I got no expectations
To pass through here again


(Letra de 'No expectations' de M. Jagger/K. Richards)

01 junho, 2011

Da cintura aos joelhos é que a areia queima, o sol é secreto, cego o silêncio

Deita-te comigo.

Comecemos pelas palavras.

A seguir concentremo-nos nos lábios. Deixemos que se entendam.

Depois deixa: o que vier a seguir virá por bem.

Ao entardecer, no Ginjal, o Tejo cintilante

Entre os teus lábios
é que a loucura acode
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.

('Retrato ardente' de Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio" e "Antologia breve")
 

Vitorino interpreta "A Queda do Império"

Temos belas canções em Portugal e esta é uma delas. Vitorino, grande voz, sóbrio e virtuoso, numa das suas canções de sempre.


Perguntei ao vento
Onde foi encontrar
Mago sopro encanto
Nau da vela em cruz
Foi nas ondas do mar
Do mundo inteiro
Terras da perdição
Parco império mil almas
Por pau de canela e mazagão
Pata de negreiro
Tira e foge á morte
Que a sorte é de quem
A terra amou
E no peito guardou
Cheiro da mata eterna
Laranja luanda
Sempre em flor.

(Letra de 'Queda do Império', composição de Vitorino)