Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

31 outubro, 2011

amo e logo odeio este poema: lisboa geme e o vento traz-nos açucenas

 
O que eu mais queria, meu amor, era saber que não te deixas ficar assim, de frente para o mar, triste dentro do teu corpo. Queria saber que o teu coração tão doce, que depositavas nas minhas mãos, não está agora envolto em noite. Tenho tanto receio, amor, que as lágrimas escorrram, lentas e pesadas, no teu pensamento.

Dizes que eu fazia de ti um homem melhor, dizes que eu te dava um motivo para viveres cada dia como se fosse sempre um dia novo, dizes que nada substitui a minha ausência. Ouço-te e as tuas palavras caem pesadas no mais fundo de mim, como uma pedra que se atira para dentro de um poço com água lá muito no fundo. Nada te digo, mas sabe, amor, é em ti que penso agora, é em ti que penso nas horas mortas em que o teu sorriso querido, a tua voz quente e macia, mais falta me faz.

Fomos devorados pelas circunstâncias, ficámos submersos pelas nossas vidas normalizadas e felizes. Mas, dentro de nós, as lágrimas escorrem, num coração tantas vezes invadido pelas trevas.



[Isolde chora, lamenta-se, sofre, luta, enternece-se e Waltraud Meier dá-lhe voz, sublime, perfeita. A seguir ao poema de um outro Ricardo desça um pouco mais, ouça por si, é um momento de extrema beleza]

De frente para Lisboa, o Tejo correndo com vagar: há horas assim


                             amo e logo odeio este poema:

                             lisboa geme e o vento traz-nos açucenas,
                             apodrecendo a cidade sob o rio interrompido
                             e nós, nocturnos, sendo devorados
                             pela rosa dos mundos.

                             odeio e logo amo este poema:

                             há horas assim,
                             em que, submerso na parte
                             mais triste do meu corpo,
                             e coração noitedentro,
                             deixo-me escorrer
                             as lágrimas mortas,
                             líquidas trevas transparentes.


                             ('VIII Poema' de Ricardo Gil Soeiro in Espera Vigilante)

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