Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

31 março, 2013

Henrik Chaim Goldschmidt interpreta Ennio Morricone - Gabriel's Oboe





Em todo o lado é hóspede e em todo o lado é Discreto


Não sei o que há dentro dos grandes espaços vazios. Não sei se há monstros, fantasmas, espíritos. Não sei. Talvez apenas sombras. Talvez a alma de quem ali esteve e partiu.

Mas gosto de espreitar, gosto de imaginar.

Gostava de ter coragem para entrar. Não tenho. Tenho  medo que me agarrem, que não me deixem sair, tenho medo nem sei de quê. Por isso mantenho-me do lado de fora, espreito como uma menina, espreito com medo que uma mão escondida me puxe. Medo de ter medo.

Paredes destruídas, traves tombadas, telhados sem telhas. Nada. Onde antes houve vida agora nada. Onde antes havia vozes, sorrisos, agora há silêncios. Nada. 

E, no entanto, a seguir há a luz. O imenso céu. A vida.



[Abaixo do poema de Gonçalo M. Tavares que aqui veio hoje pela primeira vez, o grande momento de duas vozes que se unem em volta de Pergolesi, interpretando Stabat Mater Dolorosa]


Ruínas no Ginjal, espaços vazios através dos quais se vê a luz



                                              A minha Religião é o Novo.
                                              Este dia, por exemplo; o pôr do sol,
                                              estas invenções habituais: o Mar.
                                              Ainda:
                                              os cisnes a ralhar com a água. A rapariga mais bonita que
                                              ontem.
                                              Deus como habitante único.
                                              Todos somos estrangeiros a esta Região, cujo único habitante
                                               verdadeiro é Deus (este bem podia ser o rótulo do nosso
                                               frasco).
                                               Dele também se podia dizer, como homenagem:
                                               Hóspede discreto.
                                               Ou mais pomposamente:
                                               O Enorme Hóspede discreto.
                                               Ou dizer ainda, para demorar Deus mais tempo nos lábios ou
                                               neste caso no papel, na escrita, dizer ainda, no seu epitáfio que
                                               nunca chega, que nunca será útil, dizer dele:
                                               em todo o lado é hóspede,
                                               e em todo o lado é Discreto.


[A Minha Religião é o Novo' de 'Gonçalo M. Tavares, in "Investigações. Novalis"



Anna Netrebko e Marianna Pizzolato interpretam Stabat Mater dolorosa - G. B. Pergolesi








28 março, 2013

A idade segundo Simone Beauvoir e Fernanda Montenegro. Amar segundo Carlos Drummond de Andrade e Marília Pêra; Concerto para 4 Pianos e Cordas de Bach por Marta Argerich, Evgeny Kissin, James Levine, Mikhail Pletnev, Mischa Maisky e outros. Les Beaux Esprits se rencontrent!




 Fernanda Montenegro recitando Simone Beauvoir





 Amar de Carlos Drummond de Andrade dito por Marília Pêra




Concerto para 4 pianos e cordas de Johann Sebastian Bach
Solistas: Marta Argerich, Evgeny Kissin, James Levine, Mikhail Pletnev
e Mischa Maisky



A poesia de José Saramago - dita, cantada



"Catorze de Junho" a poesia de José Saramago dita pelo próprio




 Que cuantos años tengo - José Saramago



   

 "Parábola" a poesia de José Saramago cantada por Luis Pastor



 

"Jogo do lenço" a poesia de José Saramago cantada por Luis Pastor


Julia Fischer interpreta Grieg - Concerto para Piano


Não é apenas uma grande intérprete de violino.... Julia respira música. Aqui temo-la ao piano. E é interessante perceber qual o seu percurso (ainda curto, que ela ainda é uma menina) e os prémios que já recebeu. Ouçamo-la.


26 março, 2013

é possível que se sustente o corpo na confluência destes templos


Repara, meu amigo, como tudo é uma ilusão. O que é pesado pode ser muito leve, o que é distante pode estar, afinal, muito próximo. O que é fixo pode ser móvel, o que é adquirido pode escapar. O que é tão belo pode passar despercebido. 

Um dia um arquitecto, um artista, concebeu uma parede com uma abertura pela qual escorresse água e através da qual se poderia ver o rio. Alguém desenhou e plantou um pequeno jardim. Alguém desenhou uma ponte como um suave véu deslizando sobre as águas. Todos e nenhum podem ter imaginado que quem por ali passasse poderia descobrir que, baixando-se um pouco, poderia ver a conjugação perfeita de todas estas ideias generosas.

E, no entanto, meu amigo, quem passa apressado ou distraído geralmente não presta atenção ao que não é óbvio, passando, pois, por esta vida sem ver toda a imensa beleza que está à sua disposição.

Para ver, ver mesmo, é preciso estar disponível para ver, é preciso ter curiosidade, é preciso ter o olhar limpo, ver tudo como se fosse a primeira vez, olhar com emoção, sentir carinho pelo que os outros fizeram - seja o simples desenho de uma parede, seja a inocente ideia de ali colocar água a correr. E, para ver, é também preciso sentir verdadeira devoção e agradecimento pela natureza, sempre tão bela, sempre um altar perante o qual se sente vontade de ajoelhar.

Para sentir a felicidade de viver é preciso querer ser feliz, meu amigo e, sim, podes dizer-me que isto parece uma redundância que eu confirmarei, sim, é mesmo, mas é muito verdade. E é preciso sentir aquele bem-estar feito de leveza, sentir que o corpo e a alma convergem na adoração de um templo efémero, idealizado, invisível feito pelos deuses e feito pelos homens.

Dirás, meu amigo que és tão descrente, que foram os deuses que fizeram tudo, que tudo dão, que tudo tiram e, na tua insignificância anulas-te, menorizas o que te cerca, menorizas a importância da tua vontade. Mas não o faças porque, meu amigo, a beleza que te cerca está em ti, és tu que tens que a ver.

Muita conversa, dirás, eu sei, meu amigo, eu sei que é o que pensas. Mas faz este exercício, meu amigo: liberta-te do peso dos deuses, do destino, do tempo, do passado. Vive. Vive, meu amigo, vive. E sente a suprema beleza e a dócil leveza do que te rodeia, das pequenas e quase imperceptíveis coisas que te rodeiam. 



[Abaixo da janela aberta ao rio, poderemos sentir a leveza das belas palavras de André Tomé e, logo abaixo, um outro momento de beleza e leveza. Uma vez mais, uma grande interpretação de Julia Fischer, desta vez tocando Brahms]




Um jardim, a Ponte Vasco da Gama e o Tejo
vistos através de um muro com uma pequena queda de água



                                       uma rocha uma casa
                                       um ponto
                                       é possível que se sustente o corpo
                                       na confluência destes templos
                                       é possível também
                                       que prevaleça a alma
                                       se do que se observa
                                       se libertar o peso de carregar
                                       os deuses nas coisas.



                                       ['Leveza' de André Tomé in Insula]


Julia Fischer interpreta Brahms - Concerto para Violino, 1º Movimento





25 março, 2013

De branco, meu amor, e de tão branco que me desses o mundo em luz de sol


Sente a maresia, sente a frescura.

    Sinto. E tu sente esta luz suave, silenciosa.

Sinto. E já viste aquele barco? Que barco tão bonito, tão elegante, repara nos mastros, que beleza.

    Sim, já vi. Gostava de o ver com as velas içadas.

Assim também é bonito, só os mastros. 

    ...

Não digas nada. Deixa-te ficar aqui ao meu lado, só assim, ao meu lado, deixa-me sentir o calor que vem de ti, é um calor bom, cheira bem, é quentinho.

    Sim, não me mexo. Gosto tanto de estar aqui, contigo. Tanta vida nós já percorremos, os dois. Já pensaste nisso?

Já. Estás bonita, assim, iluminada. Estás mais bonita agora do que quando te conheci.

    ...

Não rias. É verdade. Linda, suave. Minha amiga.

    ...

Não rias. Encosta-te a mim, quero sentir-te.

    Vá lá, não sejas maluco, tem juízo. Chega-te para lá. 

...

    Olha que se vê.

Não vê nada. Não vês que andam todos a andar ou a correr ou a andar de bicicleta? Quem é que vai olhar para nós?

    Pára. Tem juízo.

Não páro nada. Melhor: vamos embora. Vamos para o quarto. Quero-te vestida de branco como no primeiro dia. Virgem.

    Virgem?!?

Para mim eras. Virgem, inocente, linda. Ainda és. Virgem, puríssima. Anda, vai vestir-te de branco.

    És maluco.

Pois sou. Mas como dizes que só gostas de malucos estou com sorte.

    ...

Ficas tão linda assim, a rir. Gosto tanto de te ver tão linda, tão menina, tão cheia de sol. 

    Então, vá lá, vamos. Visto o meu vestido branco...

Nada por baixo.

    Claro. Eu só disse: o vestido branco. Abro as cortinas para que o sol entre no quarto. Depois inventamos uma música e eu danço para ti, o vestido voará à minha volta. Depois, quando a música acabar, tu aproximas-te e tiras-me o vestido, o sol na minha pele. Está bem assim?

Talvez. Vamos lá tirar isso a limpo.

    ...

...



[Dia de livro novo de Pedro Tamen é dia de alegria aqui no Ginjal. E abaixo do poema retirado desse belo livro, começamos a desfrutar o som do violino de uma nova grande intérprete, Julia Fischer, hoje com Mendelssohn]


O Tejo visto do Parque das nações



                                              Quero-te de branco,
                                              ou antes, modelada
                                              nas roupas que cosesses
                                              das bonecas, nos saltos,
                                              nos baloiços, nos degraus
                                              de uma porta qualquer donde saísses.
                                              Quero-te de branco e intocada,
                                              carregada porém dos anos buliçosos
                                              e das vidas ausentes.
                                              De branco, meu amor,
                                              e de tão branco
                                              que me desses o mundo em luz de sol.


                                              ['Quero-te de branco' de Pedro Tamen in Rua de Nenhures]

Julia Fischer interpreta Mendelssohn - Concerto para Violino






24 março, 2013

Era um país para onde se ia adormecendo


Dias de luz encoberta, uma estação que hesita entre o sol e a chuva, uma primavera vestida de invernia, o céu que ora se cobre ora se descobre, uma aragem fria.

E os passos passam rápidos, uns para a frente outros para trás, e não vão a lado nenhum, apenas andam.

E o menino pergunta-me: quando é que vamos descobrir aquelas pessoas estranhas?

Não percebo. Penso. Depois ocorre-me: as de outros planetas?

Era isso, sim! Pessoas estranhas para ele são as que ainda não se conhecem. As que passam e correm para não irem a lado nenhum parecem-lhe normais.

E depois inquieta-se: e se demoramos muito a descobri-las?

Descanso-o: ou os descobrimos nós ou nos descobrem eles.

Ele sorri, agora mais esperançado.

E, no meio de uma paisagem suspensa, um pequeno pássaro negro. Indiferente às ameaças, passeia e brinca. Este não me conhece, não brinca comigo. Habituou-se a viver solitariamente. 

E as gaivotas aqui estão aquietadas. Não gritam. Olham o horizonte com paciência, em silêncio. Acomodadas.

Quase adormecidas, elas e nós. Caminhamos mas é como se estivéssemos em repouso, não vamos a lado nenhum. Caminhamos em silêncio como se nos enrolássemos numa capa, numa folha, numa asa, como se mergulhássemos devagar nas águas paradas e brancas, como se mergulhássemos imóveis, sem ar, sem esperança.

Vivemos num país quase adormecido e nele caminhamos em silêncio, sem destino, sem futuro.

Até um dia. Um dia o país vai acordar. Espero eu. Um dia vamos descobrir o caminho para o futuro. Ou, então, é o futuro que nos vem, aqui, descobrir a nós.



[Abaixo da fotografia do tempo suspenso, um grande pequeno poema de António Ramos Rosa e, logo abaixo, um momento muito especial: a Dança dos Espíritos Sagrados em coreografia de Pina Bausch]


O Tejo e a Ponte Vasco da Gama vistas a partir da zona do Parque Expo



                                                               Era um país
                                                               para onde se ia adormecendo

                                                               e se caminhava no repouso

                                                               como num adeus invertido
                                                               ou numa folha enrolada
                                                               no seu próprio silêncio



[Poema de 'A intacta ferida' de António Ramos Rosa in Antologia Poética]


Dance of The Blessed Spirits (de Gluck) por Pina Bausch


Com muita estima aqui deixo um belíssimo espanta-angústias.

E que, assim ou de outra forma, todas as angústias sejam definitivamente afastadas.


23 março, 2013

Uma avó e uma mãe foram-me entretanto devolvidas mas não eram bem as minhas



Namorei um gato. Um não, dois. Dois não, três. E mais uns quantos de que é melhor não falar.


Gato no Ginjal


Um tinha olhos azuis, outro castanhos, outro cor de mel e dos outros é melhor nem falar. Do que mais gostei foi do que tinha olhos cor de mel. Sempre gostei de mel. Lambo-me toda. 

E gostava de ver as borboletas mas um dia duas borboletas brancas andaram atrás de mim como dois gatos, só que voavam. E um dos gatos disse, és tu com duas mariposas blancas voando, mariposas como palomas. E eu gostei que ele tivesse dito isso. Desde esse dia mais nenhuma borboleta teve grande graça.

E um dos gatos um dia disse que do que mais gostava era das minhas pernas, de subir por elas acima. Um gato safado. Outro disse que gostava do meu pescoço e beijava-me a nuca e arrepiava-me mas não se ficava por ali e punha-se a descer por mim abaixo. Outro safado. E outro... é melhor nem dizer. Só gatos safados, é o que é. 

Uma vez estava eu a passear com um dos gatos numa das ruas da grande cidade, uma rua que subia, passou por nós um carro com um grande barco atrelado. O barco desatrelou-se e foi, desgovernado, para cima do meu gato. Por pouco não se ficava ali, atropelado por um barco numa rua da cidade. 

A minha mãe não gostava muito de um dos gatos, dizia só gostas de malucos. A minha avó nunca conheceu esse. Do outro gato, a minha mãe não era grande entusiasta mas a minha avó gostava muito dele, é bonito, tem uns olhos... e uma voz... e é tão simpático... Do outro, a minha mãe gostou logo mas disse, a tua avó é que vai ter pena, gostava muito dele; mas a minha avó, quando conheceu o gato novo disse ainda é mais bonito que o outro

Dos outros não posso falar. 



[Abaixo encontrarão um divertido poema de alguém que aqui vem pela primeira vez, a única Adília Lopes. Abaixo, poderemos ouvi-la lendo poemas seus. A seguir, Nelson Freire despede-se com mais uma grande interpretação, desta vez tocando Granados.]


No Cais de Embarque de Cacilhas, mesmo sobre o Tejo, de frente para Lisboa




                                                             Minha avó e minha mãe
                                                             perdi-as de vista num grande armazém
                                                             a fazer compras de Natal
                                                             hoje trabalho eu mesma para o armazém
                                                             que por sua vez tem tomado conta de mim
                                                             uma avó e uma mãe foram-me
                                                             entretanto devolvidas
                                                             mas não eram bem as minhas
                                                             ficámos porém umas com as outras
                                                             para não arranjar complicações



['Minha avó e minha mãe' de Adília Lopes in 'A Pão e Água de Colónia']

*




O cheiro de Deus - Recital de poesia de Adília Lopes


Nelson Freire interpreta Enrique Granados - La Maja y el Ruiseñor


21 março, 2013

Leva ao coração toda a luz que a mão espalha


Esta cidade é tão bela. Podia ter sido inventada, tão bonita, tão bonita. E a luz que vem do rio que a espelha, uma luz tão limpa. E o rio, tão largo, quase mar.

Estão pessoas ali ao fundo mas não as vejo. A cidade parece um desenho. E o silêncio. Tão bom este silêncio. Que sossego tão bom.

Sento-me aqui. Tantos amigos já partiram. Os meus irmãos, os meus primos. Em tempos também tive tios. E pais, claro. Há tanto tempo se foram os meus pais, os meus tios. Fui, em tempos, um menino e tinha avós. Pó. Todos pó. Ou nem isso. Há tanto, tanto tempo.

Depois foste tu. Tu que não podias ter ido. Tantas vezes falámos nisso e tu dizias que não querias ir antes de mim, não querias deixar-me assim, sozinho, tão triste. Querias, pois, que eu fosse antes de ti e eu queria-te bem por quereres isso. Tanto amor nessa tua vontade. Mas não esperaste por mim, foste antes. E eu não consegui impedir-te. E aqui continuo sem saber o que fazer. Vou chegar atrasado. Espera por mim e desculpa-me por chegar tão tarde. Minha menina, aí sozinha. Nada mais faz sentido. 

Nada procuro. Nada.

Talvez apenas o sítio de onde nasce, por vezes, um poema. Ou talvez apenas o sítio de onde nasce, por vezes, uma luz que vem, feita de palavras, para me aquecer o coração.

E ouço, então, a música que nascia de ti, meu amor, e se desdobrava em palavras de carinho, de luz, palavras que eram mãos gentis, que eram um coração suave, cheio de amor por mim. Mas tão poucas vezes isso acontece. Nem sei se acontece. Talvez seja só um sonho. Não sei. 



[Aqui abaixo um poema de um Poeta que eu desconhecia, José Carlos Soares e, a seguir, três poemas seus lidos - muito bem lidos. Depois, abaixo, mais uma grande interpretação de Nelson Freire, desta vez uma Bachiana brasileira de Villa-Lobos]


Em Cacilhas, observando Lisboa e o Tejo



                                             Nada procuro
                                             senão o sítio

                                             onde atrasar o poema
                                             e aquela sombra sem culpa

                                             de quem leva ao coração
                                             toda a luz que a mão espalha.



                                             [Poema de José Carlos Soares in 'Resumo - a poesia em 2012]

*



Poemas de José Carlos Soares lidos por José António Moreira

Guardo ainda esse sorriso
Agora que a dor regressa
Devagar acende os gestos

Nelson Freire interpreta Heitor Villa-Lobos - Bachianas Brasileiras nº 4 Prelude



18 março, 2013

A frouxidão no amor é uma ofensa; a paixão requer paixão, fervor, extremo


Planta rompendo de entre o cimento junto a uma parede pintada


À infelicidade seguiu-se o excesso, o desafio, a sedução, o gozo. E sempre a ironia, a jocosidade, o colo quente das mulheres, muitas mulheres, muito amor para dar, muito amor para receber. Navegador, versejador, amante, tradutor, desafiador, uma vida de muitas voltas. Viveu pouco mas o pouco que viveu foi muito pois foi imenso como são imensos todos os grandes poetas. Magro, de olhos azuis, carão moreno, mais propenso ao furor do que à ternura, eis Bocage, em quem luz algum talento.


||||    ||||    ||||




A frouxidão no amor é uma ofensa,
ofensa que se eleva a grau supremo;
paixão requer paixão, fervor e extremo;
com extremo e fervor se recompensa.

Vê qual sou, vê qual és, vê que diferença!
Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu gemo;
eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo;
em sombras a razão se me condensa.

Tu só tens gratidão, só tens brandura,
e antes que um coração pouco amoroso
quisera ver-te uma alma ingrata e dura.

Talvez me enfadaria aspecto iroso,
mas de teu peito a lânguida ternura
tem-me cativo e não me faz ditoso.






Meu ser evaporei na lida insana
do tropel de paixões, que me arrastava;
ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana
existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
ao mal, que a vida em sua orgia dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
no abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube,
ganhe um momento o que perderam anos,
saiba morrer o que viver não soube.





Poemas de Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage ditos por Odete Santos e Gel e 'Por detrás da história - Bocage, documentário sobre a sua vida e obra'


*

A seguir temos uma nova grande interpretação de Nelson Freire, desta vez de Chopin, e é uma maravilha ver como a música pode escorrer como água.


Nelson Freire interpreta Chopin - Concerto Nº 2 para Piano (Parte 02)






17 março, 2013

Horas profundas, lentas, caladas



Muro no Ginjal, fragmentos do que passou



Morrer de amor, morrer de desamor, de amores indizíveis, morrer de excesso, de penúria, de tudo, de mil, mil escuridões, de um infinito que não se conseguia agarrar, de mil ínfimos nadas, de nada, de nada, de nada.

Em vez de sangue, palavras a correr nas veias, em vez de amor, assombro, em vez de cantos, soluços, em vez de risos, lágrimas. 

Em vez de vida, um sofrimento sem motivo, alegrias fugidias, e sombras, muitas, muitas sombras. Tantas sombras num coração inquieto.

Assim são tantas vezes os Poetas, impotentes, frágeis, perdidos, finitos. 

Eternos.


()()()


Eunice Muñoz diz poesia de Florbela Espanca



Horas profundas, lentas e caladas
feitas de beijos sensuais e ardentes,
de noites de volúpia, noites quentes
onde há risos de virgens desmaiadas...

Ouço as olaias rindo desgrenhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes.
e do luar os beijos languescentes
são pedaços de prata p’las estradas...

Os meus lábios são brancos como lagos...
os meus braços são leves como afagos,
vestiu-os o luar de sedas puras...

Sou chama e neve branca misteriosa...
e sou talvez, na noite voluptuosa,
ó meu Poeta, o beijo que procuras!





 Narração Miguel Falabela - Amar de Florbela Espanca




Olhos do meu Amor! Infantes loiros
que trazem os meus presos, endoidados!
Neles deixei, um dia, os meus tesoiros:
meus anéis, minhas rendas, meus brocados.

Neles ficaram meus palácios moiros,
meus carros de combate, destroçados,
os meus diamantes, todos os meus oiros
que trouxe d'Além-Mundos ignorados!

Olhos do meu Amor! Fontes... cisternas...
enigmáticas campas medievais...
Jardins de Espanha... catedrais eternas...

Berço vindo do Céu à minha porta...
ó meu leito de núpcias irreais!...
Meu sumptuoso túmulo de morta!...




Mariza - Poetas de Florbela Espanca


*



(E não deixem, por favor, de ouvir Nelson Freire interpretando Gluck: trata-se de um momento muito especial. É no post abaixo)



Nelson Freire interpreta Gluck / Sgambatti - Melodia de 'Orfeo and Eurydice'







16 março, 2013

Natália Correia, já lá vão 20 anos.



Fiz um conto para me embalar


Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.

Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.

Rosas fatais, as três donzelas
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.





Nuvens correndo num rio
Quem sabe onde vão parar?
Fantasma do meu navio
Não corras, vai devagar!

Vais por caminhos de bruma
Que são caminhos de olvido.
Não queiras, ó meu navio,
Ser um navio perdido.

Sonhos içados ao vento
Querem estrelas varejar!
Velas do meu pensamento
Aonde me quereis levar?

Não corras, ó meu navio
Navega mais devagar,
Que nuvens correndo em rio,
Quem sabe onde vão parar?

Que este destino em que venho
É uma troça tão triste;
Um navio que não tenho
Num rio que não existe.







Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.



[Natália Correia]

14 março, 2013

e a cabeça nua entra já na noite tempestuosa


E se deixo cair o corpo para um dos lados é apenas para melhor sentir o vento. Ah o que eu gosto de vento. E se fecho os olhos é apenas para melhor imaginar o rio ou, então, porque o vento sopra forte ou porque quero pensar que está um anjo de grandes asas a passar rente a mim.

Não chames por mim. Escondo-me. Gosto de me esconder. Passo por trás da árvore, danço em volta, deixo-me ir. E os ramos nus não me tapam e tu vês-me mas eu não me importo. Finjo que não te vejo, finjo que não me vês. Por isso não me chames, não digas nada, quero sentir o silêncio e pensar que sou transparente.

Olho o rio lá em baixo, agitado, verde com laivos de espuma branca, e eu cá em cima, livre, deslizando nos vastos céus, escondendo-me, que não me sigas menino, e rodopio, e subo e depois deixo-me cair, ao sabor do vento, e lá estás tu, olhando-me, mas para que me olhas, menino? pois não sabes que quero fingir que não estás aí? não me catives, não me catives, menino.

Mas tu danças também em volta da árvore, menino, menino! que queres de mim, menino? e, o vento agiganta-se, e os raios atravessam o horizonte, e a chuva cai, e a noite desce e eu, então, procuro abrigo e aproximo-me, ai menino que me perdes..., e volteio e aproximo-me mais e mais e já não me escondo e desço, ai menino, menino, porque me seduzes tu? e o abrigo que eu procuro és tu e fecho as minhas asas em torno do teu corpo ardente e desço a minha cabeça sobre o teu ombro doce e deixo cair a máscara e, nua, nua, deixo que me deites por terra, sobre a terra macia e molhada, sobre as raízes, e deixo que deixes em mim a tua semente.

Ai menino, ai menino.



[Depois de mais um belo poema de Manuel Gusmão - e que encantada ando com este poeta - temos mais uma grande interpretação, desta vez a cargo de uma extraordinária Martha Argerich com Mischa Maisky que tocam Grieg]


Gaivota por trás de uma árvore nua no Ginjal



                                               O mar em listas esbranquiçadas ondeia-te
                                               o tronco, os ombros, o queixo e a boca.
                                               Sucede-lhe uma mascarilha acobreada
                                               e a cabeça nua entra já na noite tempestuosa,
                                               sobe e atinge os seus cumes nevados.

                                               Deitado em equilíbrio sobre a cabeça um galho
                                               em que se nota ainda a zona em que foi quebrado
                                               Deixa tombar à esquerda e à direita uma série de vagens
                                               secas e cada vez mais castanhas

                                               da direita para a esquerda.



['A pintura corpo a corpo . os corpos da pintura; pintores pintado. #21' de Manuel Gusmão in 'Pequeno tratado das figuras']


Mischa Maisky no violoncelo com Martha Argerich no piano interpretam Grieg - Sonata para Violoncelo




13 março, 2013

É nas linhas das mãos que os deuses escrevem os mais belos romances


Dedicado a MAP


Vejo os nomes gravados na pedra, declarações de amor, de amores, vários nomes, vários romances, muitas vidas sobrepostas. Pessoas apaixonadas passam pela grande muralha e comprometem-se para o futuro: amores eternos, ali escavados, mais gravados que no papel. E o tempo vai erodindo a muralha e vai erodindo as vidas e os nomes ali continuam. Para sempre.

Uma pessoa ama outra pessoa e ama tanto que tem que o partilhar com o mundo e tem que jurar a eternidade do amor. O valor da palavra gravada na pedra. Um valor eterno, julgam.

Nunca o fiz, não acredito em amores eternos nem sei o que é a eternidade. Nos amores não gosto de me comprometer. Mas já vi o meu nome talhado na madeira e, também, escrito numa parede. Foi alguém que muito me amava que o fez. Louco, louco, desafiava-me, esse. Eu ria, mas queria lá eu saber das letras do meu nome ali gravadas aos olhos do mundo. E já vi tantas vezes o meu corpo descrito em palavras, as minhas mãos, os meus seios, a minha boca, os meus olhos, o meu cabelo, eu ali gravada no papel. Esse era o poeta. Poemas e canções e a sua voz que me cantava. Mas isso, para mim, de pouco valia. Ingrata, talvez.

É que, para mim, o que vale é um sorriso que me desafie, um olhar que me seduza, uma mão que se afoite, uma palavra que me desequilibre, para mim o que vale são os pequenos momentos, os mais efémeros, a beleza inquieta da incerteza. Só isso quero. Mais nada.

Ah, e uma mão que me afaste o cabelo da testa quando o vento sopra com mais força, uma mão que toque o meu coração e o amor que há dentro dele, uma mão que afague a minha mão, que me agarre, que me tente, que me ampare, que me provoque. Uma mão que desenhe romances na minha mão, que desça as linhas das minhas mãos como quem desce um rio. E que comigo percorra as linhas que sobem das minhas mãos até aos meus sonhos. Alguém que me deixe voar e que olhe por mim enquanto voo.



[Abaixo de mais um belo poema de Maria do Rosário Pedreira, uma nova grande interpretação de Mischa Maisky, desta vez tocando Tchaikovsky]

Amores gravado na pedra na grande muralha do Ginjal



                                     Tardávamos diante das palavras, como se os olhos
                                     fossem cegar sobre as páginas que não acabávamos
                                     de ler só para fazer durar o engano, o livro, o tempo
                                     de todas as leituras. Guardávamos silêncio

                                     à cabeceira. E cruzávamos de noite os dedos
                                     à procura da luz que emanasse de um seio, da onda
                                     do cabelo sobre a orelha, dos ombros, da cintura,
                                     do começo dos lábios. Normalmente achávamos apenas
                                     a sombra da roupa na curva dos joelhos, a penumbra
                                     entre os nossos corpos quietos e deitados.

                                     É nas linhas das mãos que os deuses escrevem
                                     os mais belos romances. Nas nossas, porém, somente
                                     elaboraram um divertimento, um esboço, um rascunho,
                                     nem sequer literatura.



                                    [Poema de Maria do Rosário Pedreira in 'poesia reunida']


/\



Quando as palavras 
Se ouvem
Se escrevem
Claras
No eco sensível 
De si mesmas
Grita-se bem alto
O Amor
Como se apenas 
Se murmurasse.


[De Joaquim Castilho num comentário abaixo]


Mischa Maiski interpreta Tchaikovsky - Nocturne & Lenskis Arie fr. Eugene Onegin




12 março, 2013

e nós, meninas, bailaremos i


Podíamos dançar, vem, vem valsar. Deixa-me levar-te por aqui a rodopiar, deixa-te ir, deixa que te leve, meu amor, vem valsar. Vamos valsar até à beira do rio. Vamos?

Ou podíamos ir banhar-nos. Vem. Vem comigo até ao rio, vem. Despíamo-nos, deixa que te dispa, deixa-me ver o teu corpo a entrar na água, deixa que veja os teus seios, deixa que veja os mamilos erectos, rosados e erectos de frio, deixa. Vamos, entramos na água, beijamo-nos na água. Vamos?

Ou poderíamos voar, pousar numa árvore, deixar que os nossos cabelos esvoacem como pássaros livres, os cabelos esvoaçando juntos, asas de vento, almas à solta. Vamos?

Podíamos ficar aqui até ser manhã, dançar, mergulhar, voar. Podíamo-nos amar aqui, meu amor, minha linda, tão bonita que és. Beija-me, abraça-me, toma-me nos teus braços, vamos voar, vamos bailar as duas, meninas bailarinas as duas i. Vamos?



[Logo a seguir a mais um belo poema de Catarina Nunes de Almeida, temos uma nova grande interpretação de Mischa Maisky, desta vez sobre música de Shostakovich]


O fim do dia no Jardim do Ginjal, rente ao Tejo



                                          O único maremoto de que há memória
                                          aconteceu nos teus cabelos que hoje são lisos
                                          e deixam a água pelos tornozelos
                                          até ser de manhã.

                                          agora até a terra passou.
                                          Cruzam-se valsas e expedições na curva do seio
                                          a música não cabe na boca das aves

                                          e nós, meninas, bailaremos i.



                                          [Poema de Catarina Nunes de Almeida in Bailias]


10 março, 2013

é então que vejo no halo mais antigo a árvore desolada


Uma renda que encobre o céu aqui onde a vejo, uma renda negra que desce como um gracioso véu sobre a tarde fria. Atrás há um rio agitado e escuro que vai à procura do grande oceano, e há navios que percorrem os longos caminhos de água e há cidades e há o longo horizonte e há, talvez, o nada. 

Mas, aqui onde estou, os pés quase molhados de tão molhada a terra está, é apenas uma bela árvore de braços nus que se debruça, graciosa bailarina, e eu não sei se os seus ramos procuram a terra, se o mar, se as sua raízes mergulham até onde as águas correm, longe, tão longe da luz, ou se se alongam até ao outro lado do mundo, até onde o sol tem outra hora e as pessoas usam outras palavras. Que sei eu, pois, desta bela árvore?

Em vão procuro o pássaro preto. Não, não anda por aqui. Estará num outro lugar que, por aqui, hoje, a desolação e o frio são agrestes. E nestes ramos nus desta árvore bailarina nenhuma ave, nem sequer uma ave inventada. Voa o meu olhar por ela, procurando o que ela procura, na esperança que ela encontre nos símbolos mais profundos da terra ou do mar o que eu não encontro nas palavras e nos olhares das outras pessoas.



[Que as palavras hoje me saíram assim, talvez embaladas pela árvore de Carlos de Oliveira, ouçamos então, a seguir, para nos animarmos, uma dança de fogo. É um novo grande intérprete que hoje aqui começa: no violoncelo, Mischa Maisky que hoje interpreta Manuel de Falla]



Grande navio a atravessar a barra no Tejo hoje ao fim do dia, no jardim do Ginjal



                                              é então que vejo
                                              no halo mais antigo
                                              a árvore desolada,
                                              os ramos em que poisam
                                              as aves
                                              doutros livros,
                                              e pressinto as raízes
                                              através da sílica
                                              onde a família dorme
                                              com os ossos dispostos
                                              nessa arquitectura
                                              duvidosa
                                              de símbolos


                                              ['Árvore, VII' de Carlos de Oliveira in 'Trabalho Poético']


Mischa Maisky interpreta Manuel de Falla - Danza ritual del fuego, um excerto de 'El Amor Brujo' (acompanhado de Karin Lechner no piano)





07 março, 2013

como um hirsuto fauno que modela uma delgada argila


Debruças-te sobre mim, roças a tua barba sobre a minha pele nua e eu queixo-me, ai..., e tu ris, ai fauno doido, que me arranhas, e depois, com as mãos, percorres a minha mão, dedo por dedo, e depois já os percorres com a boca e depois sobes pelo braço e eu fecho os olhos. Fauno lascivo, suspiro, e tu nem me ouves e segues, agora a axila e cheiras e sorris e dizes que cheira tão bem e continuas e percorres o pescoço com as mãos, as duas mãos, sentes o perímetro, e eu, indefesa, não digo nada e depois segues pelo colo e cheiras, cheiras tão bem, e eu sorrio, e depois percorres os seios, um e outro e os dois e eu deixo, porque não haveria de deixar?, e depois beijas e lambes e depois voltas a usar as mãos e é como se avaliasses o volume, a curva e a luz e a sombra e depois afastas-te e estudas a perspectiva e dizes-me que esconda o rosto e eu escondo, depois voltas ao meu corpo e amacias o ventre e modelas as ancas e eu deixo, gosto, e já nem sei se respiro se suspiro se transpiro e depois afastas-te e abres a janela, deixas que a aragem faça dançar as cortinas, depois afastas as cortinas e deixas que a sombra dos ramos nus da grande árvore se desenhe no meu corpo nu e o vento agita os ramos que se agitam no meu corpo e o meu corpo é um pássaro e é árvore e depois tu prossegues e afastas-me as pernas e vês o melhor ângulo, a melhor posição e eu deixo que tu me estudes, me mexas, me ajeites, que me modeles e sou argila, e sou carne, e sou desejo, e sou uma tentação que se deixa tentar, e sou uma mulher que ama e se deixa amar.

Depois, mais tarde, quando a aragem se aquieta e o sol tardio percorre, guloso, o meu corpo rendido, afastas-te de novo e enfias as mãos no barro molhado, quente, macio, e eu olho e não sei se sou a que nasce das tuas mãos sujas, se sou a que se entrega ao teu olhar na cama desfeita.



[Abaixo da árvore cuja sombra percorre o corpo da mulher que é verso nas mãos de Vasco Graça Moura, uma brilhante grande interpretação de Martha Argerich que se faz acompanhar de um grande violoncelista, Maisky, tocando Schumann]


Muralha na Boca do Vento sobre o Ginjal


                                            como um hirsuto fauno que modela
                                            uma delgada argila (e encurva, estira
                                            inflecte, aperta, encrespa, intui, remira
                                            o contorno lascivo que revela

                                            a axila, a coxa, o torso, a face e nela
                                            o sono ou o sorriso em que respira)
                                            quer a pressão dos dedos se refira
                                            ao que outro em tempos fez de uma costela,

                                            mas que à figura táctil acrescente
                                            um touro, um cisne, a sombra de um falcão,
                                            as folhas de hera, a concha, ou a serpente

                                            para o retorno eterno e tem à mão
                                            os mitos que refaz à nossa frente
                                            em forma de mulher e tentação



['josé rodrigues no atelier da árvore' de Vasco Graça Moura in 'visto da margem sul do rio o porto', 
uma antologia poética, 
um livro belíssimo com fotografias de Maria Manuela Graça Moura e aguarelas de António Cruz 
da Editora Modo de Ler]

Martha Argerich no piano (acompanhada de Mischa Maisky) interpreta Schumann - Adagio e Allegro, Op. 70




06 março, 2013

Ah, como usas a tua estranha beleza


Em que pensas? De azul e verde te vestes e quase te confundes com as águas. Delas te vem a melancolia, das águas que correm; e tu aqui sem poderes ir também. Pensas que o rio vai ligeiro e perfumado e tu aqui na margem. Pensas que podias até chorar e as lágrimas cairiam nas águas e ninguém perceberia. Ninguém para se sentar ao teu lado, para conversar contigo sobre as marés, sobre os peixes que saltam brilhantes. Ninguém. Tu aqui debruçada sobre um rio que corre prenhe de vida e tu em terra, asas cortadas, olhar triste.

Escondes a tua beleza porquê? Para que a luz não te inunde os olhos do azul do rio? Porque não deixas que te veja, oh bela e estranha mulher? Deixa que o azul do céu e o branco das nuvens e o amarelo do sol entre no teu coração, deixa que o teu olhar se ilumine, quero ver-te alegre, cabeça erguida, corpo disponível.

Se te escondes, como pode a luz que trazes prisioneira no teu peito apagar a melancolia que trazes contigo?

Ah, esquece quem partiu, esquece quem te deixou aqui solitária e saudosa, esquece. Mostra-me a tua estranha beleza e deixa que eu te mostre como a luz pode renascer aqui, nesta margem, deixa que eu me sente a teu lado, vamos conversar, vamos voar, vamos molhar o nosso olhar no mar. 



[Abaixo da mulher que olha o rio, um novo Poeta, alguém que me traz encantada com o seu recente livro, Manuel Gusmão. E, a seguir, uma nova grande interpretação. Desta vez Martha Argerich interpreta Liszt]


Sobre o Tejo, num dos cais do Ginjal



                                                    Ah, como usas a tua estranha beleza
                                                    com esse ar melancólico e quase triste
                                                    no olhar que se escondo e nos lábios
                                                    de quem poderia até chorar

                                                    São apenas gestos da luz prisioneira



                                                    da luz que os pigmentos declinam
                                                    prendem e libertam.




['A pintura corpo e corpo, os corpos da pintura; pintores pintados', #7, de Manuel Gusmão in 'Pequeno tratado das figuras']


Martha Argerich interpreta Liszt - Rapsódia Húngara No.6




05 março, 2013

não te oiço e é como se me achasse dentro de um templo fechado


Chamei-te tanto, tanto, disse-te um por um todos os passos que devias seguir até me encontrares. Mas não vieste. Tanto que te esperei, tanto, tanto, meu amigo. Passavam os dias, passavam as noites, vinha o sol, vinha a chuva, vinha o vento, vinham as estações, os anos, e eu aqui tão só, esperando, esperando. Chamei-te tanto, tanto, meu querido amigo. Não me ouviste nunca? Nunca? Nem um lamento meu chegou até ti? Nem um? Por fim já não tinha forças, já apenas saía de mim um sopro lento. E os pássaros vinham e iam e olhavam-me e era piedade que eu sentia nos seus sábios olhares.

Envolta em silêncio, um tão pesado manto de silêncio, tanto, tanto silêncio, aqui estou tão sozinha. Dirás que foi escolha minha, que poderia ter saído. Bem sei, meu amigo, bem sei. Mas este é o templo em que pensei esperar-te, o templo dos mil labirintos, dos recantos de sombra, dos recantos de luz, o lugar de todos os assombros. Aqui sonhei que um dia virias ao meu encontro. Aqui chegarias até mim, meu amigo, e eu, olhar puríssimo, pele lisa, olhos de água, coração de menina, dir-te-ia palavras de muito amor, palavras inventadas. Assim o sonhei, meu amigo, assim o sonhei.

Hoje a chuva não pára, tenho frio, os meus cabelos longos estão tristes, os meus seios estão trémulos, os meus lábios fecham-se sem esperança e os meus olhos, quase cegos da falta que tenho de ti, choram, choram. Depois de tanto tempo, eis que as forças me faltam, eis que as lágrimas correm como um rio. Não virás. Sei disso.

Há pouco desci do beiral, espreitei do alto das escadas, ouvia passos, um roçar, um respirar. Pensei que podias ser tu, meu amigo, meu amor. E então percebi. Eram gatos, muitos gatos. Também eles perceberam. No alto deste templo, junto às suas arcadas mora uma mulher de outros tempos, sem idade, sem passado, talvez uma louca, talvez. Talvez. É como se já não existisse. Este templo que eu quis que fosse o nosso ninho de amor é agora deles, meu amigo.

Seja.

Quem passa na rua diz que por aqui paira uma alma de outro mundo, outros dirão que é uma santa, ou uma mulher pássaro que vive sem se alimentar, envolta em silêncio. Mas os gatos sabem e eu sei também que é uma mulher, apenas uma mulher, uma mulher que espera o seu amor, uma mulher que espera em vão, que sabe o seu amor não virá mais. Eles sabem e eu sei também que há aqui uma mulher que um dia desaparecerá, se transformará em pó, em nada. E ninguém saberá que existiu. Talvez os gatos, por vezes, parem, olhem para cima, esperando que uma mulher silenciosa de longos cabelos transparentes assome no alto das escadas. Mas só eles se lembrarão de mim.



[Abaixo dos gatos que vieram habitar o templo em que a mulher pássaro espera, um poema de um novo poeta, André Tomé e, logo a seguir, mais uma grande interpretação. Desta vez Martha Argerich não está sozinha e toca Mozart.]



Gatos no velho casario do Ginjal


                                 não te oiço e é como se me achasse dentro de um templo fechado.
                                 o silêncio é a obra através da qual se descobre a memória
                                 e à falta de toque só o teu nome pronunciado e a fé na tua aparição
                                 ilumina as arcadas.
                                 a tua ausência tem-me o corpo vazio, falta-me o milagre da presença
                                 poderia chamar-te deus
                                 estás aqui latente
                                 mas não estás.



                                 ['Meditação' de André Tomé in Insula, belo livro de poemas que dedica aos pais]