Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

03 dezembro, 2014

Ninguém tem nome: apenas uma escura corda de sons


Tantas vezes a ouvir que sou anónima. Tantas vezes a ouvir que me escondo atrás da ausência de nome como se o nome fosse as vísceras, o sangue, o pensamento, o olhar, o gesto, o sorriso, as lágrimas que me haveriam de revelar. Como se o nome pudesse ser a minha réplica, o meu espelho, o meu adn, o meu descodificador. Que ideia. O nome é nada.

E, no entanto, o meu nome não podia ser outro. É a marca que os meus pais escolheram para mim; e logo lhe apuseram um diminutivo que é o que usam e o que usam os que, da minha infância, ainda vivem. Do meu nome derivou, mais tarde, o nome que o meu amor criou para me nomear e desse outro nome nasceu, depois, outro que os meninos recriaram. Para que querem, pois, vocês saber o meu nome original se ele não é um mas vários e é desse conjunto e de outras variantes que estão por vir que eu sou feita? E se eu estou mais desnudada perante vós quando de mim saem estas palavras do que se me fechasse e exibisse o nome de registo?

Quando quiserem referir-se a mim pensem naquela que é todos os nomes e nenhum, todas as palavras ou o silêncio.


Vista de Lisboa, com o Tejo e namorados,
no Jardim do Ginjal





Ninguém tem nome: apenas uma escura
corda de sons que prende o corpo e deixa
queimaduras na pele, esse é o preço
de ser nomeado porque o chamamento


de cada vez se torna mais ardente
até ser casa ou roupa ou outra pele
que fere o corpo e finalmente o veste
do nome que é o dele





['Corda' de Gastão Cruz in Relâmpago, nº34]





.



Two (Rise and Fall) - Sylvie Guillem




....

03 setembro, 2014

Tu continuarás para sempre nua no meu poema.



Não sei dizer palavras que te dispam, amor, como em tempos as minhas mãos, sôfregas, te despiam. Nem tu, amor, as sabias dizer quando, inocente, te despias mostrando o teu corpo de jovem mulher. Nunca fomos de palavras. Olhava-te, então, com olhos líquidos de desejo, um soluço percorrendo o meu corpo impaciente, e tu, improvisando gestos que julgavas só teus, oferecias o teu corpo mudo, ardente.

Dias e dias foram passando e nós sempre unidos, os gestos que nunca se esqueceram, o amor que se foi adoçando, o desejo que se foi alongando, e as palavras que nunca aprenderam a traduzir o que sentíamos.

A vida trouxe-nos até aqui, a este mar largo que contemplamos em silêncio. O tempo corre com vagar, azul, umas vezes macio, outras com aspereza. Assim é o tempo, assim é a vida. Enquanto nos tivermos um ao outro a vida será boa e o tempo amigo.

Quando chegarmos a casa, despir-te-ás para mim, com vagar e compreensão, por vezes com um resto de malícia, por vezes ainda com um resto de inocência, e eu olharei o teu corpo enrugado e flácido e não sentirei a sofreguidão de então mas sentirei uma ternura imensa, amor, porque na tua pele estão muitos gestos meus de carinho e desejo, gestos que jamais voarão do teu corpo pois há muito aprisionaste o meu amor. Na tua pele já eu habito há muito tempo. Não sei dizer-te isto em palavras mas o nosso silêncio guarda mil beijos, mil afagos, mil poemas, mil palavras de um imenso amor.


No pequeno jardim do Ginjal, olhando o Tejo que corre para o oceano, de frente para uma Lisboa bela e silenciosa




O tempo permanece
Apanhado entre os livros.
Por este prodígio de apreensão,
Heraclito continua a banhar-se
No mesmo rio,
Na mesma página.
Tu continuarás para sempre
Nua no meu poema.



['Arte do Tempo' de Juan Manuel Roca in 'Os cinco enterros de Pessoa', selecção e prólogo de Lauren Mendinueta e numa tradução de Nuno Júdice]






Bill Evans - My Foolish Heart



Vives como escreves
escreves como vives
com a sensibilidade
profunda 
de um poeta
com a escrita solta
atenta
de um prosador
vives
onde a vida se liberta
com o olhar deslumbrado de uma criança
vida adulta a tua
pousada
vivida

por todo o lado.


Joaquim Castilho



26 maio, 2014

Digo-te adeus e como um adolescente tropeço de ternura por ti - "Um adeus português", Alexandre O'Neill dito pela Poetisa Matilde Campilho


Lisboa, a bela, banhada por um Tejo violentamente azul, avistada da Boca do Vento 8sobre o Jardim do Ginjal)




Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O'Neill

13 maio, 2014

Sítios que me fazem lembrar memórias inventadas, desfia o talentoso José Valente. De que sombra dos sons se faz a rosa? da matéria das sombras? de nenhuma? de que fosco murmúrio, cristal, bruma? de que espirais da noite vagorosa?, responde, perguntando, Vasco Graça Moura




e outro silêncio enquanto o som repousa:
desfez-se o rebordo numa espuma.
de que sombra dos sons se faz a rosa?
da matéria das sombras? de nenhuma?

de que fosco murmúrio, cristal, bruma?
de que espirais da noite vagorosa?
do coração desfeito? ou não costuma
a luz gravar-se em sombras numa lousa?

coração rouco, o coração. falhada,
a voz vinda do vento se desate
num ramo de penumbras, descontínuo

o mundo passe a ser feito de nada,
só de efémeras rosas a rebate,
como gritos de sangue no destino.




____

  • O poema é 'a rosa, timbres' de Vasco Graça Moura in 'Poesia Reunida'

  • O vídeo mostra José Valente e  os 'Sitios que me fazem lembrar memórias inventadas' no TEDxCoimbra




04 maio, 2014

O escritor deve ser louco? alfabetizado? motivado? paciente? imaginativo... Ou alto? bonito? ... ou o quê? - a opinião de Rubem Fonseca


Sou fã, fãzaça de Mestre Rubem Fonseca. Escreve no osso, na marra, na dureza, e na ternura, na compaixão. Conhece o género humano, o submundo, a loucura, a rua.

Descobri-o agora falando nas Correntes d'Escritas 2012 sobre o que é preciso para se ser escritor, e fala com humor, vivacidade, sentido de palco, arrancando gostosas gargalhadas a quem assiste

Rubem Fonseca, com a obra Bufo e Spallanzani, foi nesse ano o vencedor do Prémio Casino da Póvoa.


Conforme vejo no texto que o acompanha, o video feito durante a mesa redonda sobre o tema "A Escrita é um risco total" e na qual estavam também Eduardo Lourenço, Almeida Faria, Ana Paula Tavares, Eduardo Lourenço, Hélia Correia, e José Carlos de Vasconcelos como moderador.



*

01 maio, 2014

Com as horas maiúsculas do cio, com os músculos inchados da preguiça, vem, serenidade!


Em dias de muito ruído, em que o cansaço sobe sobre a pele como uma moléstia húmida, amortecendo os músculos, quero silêncio, sossego. E palavras lidas como se de uma oração ou de uma toada religiosa muito pura se tratasse. Talvez poesia, talvez a poesia dita como se uma voz viesse de dentro das pedras, do fundo macio dos lagos, da luz que se reflecte no rio. E mais nada, só isso.




Vem, serenidade!
Faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros
e com que os ombros subam à altura dos lábios,
faz com que os lábios cheguem à altura dos beijos.
Carrega para a cama dos desempregados
todas as coisas verdes, todas as coisas vis
fechadas no cofre das águas:
os corais, as anémonas, os monstros sublunares,
as algas, porque um fio de prata lhes enfeita os cabelos.




Vem com as meretrizes que chamam da janela,
o volume dos corpos saciados na cama,
as mil aparições do amor nas esquinas,
as dívidas que os pais nos pagam em segredo,
as costas que os marinheiros levantam
quando arrastam o mar pelas ruas.

Vem, serenidade,
e acaba com o vício
de plantar roseiras no duro chão dos dias,
vicio de beber água
com o copo do vinho milagroso do sangue.



Vídeo de CINE POVERO


"Serenidade és minha" in «Mesa de solidão» (1955) de Raul de Carvalho (1920-1984), aqui lida por Mário Viegas (1948-1996), Humores, Vol. II, lado B (1980)

MÚSICAS: Jan Garbarek, "Soria Maria" (1980). Pat Metheny, "Waiting for an answer" (1983). Sufjan Stevens, "Oh God, where are you now?" (2003)

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28 abril, 2014

Vasco Graça Moura, uma das grandes presenças no 'Ginjal e Lisboa' - para sempre a acompanhar quem por aqui passar. E o que vos digo é que 'relembro o que escreveu: as suas rimas nítidas de aço e dúcteis como a pele, encontros, desencontros, corpos que ele despia e enredava nas esgrimas'


Sim, fui-me dedicando sucessivamente, sobretudo no plano literário, a fazer muitas coisas e muito variadas. Comecei pela poesia, depois fui para a crítica, para o ensaio, para a ficção, entretanto passei para a polémica. Mas não deixei de fazer um conjunto de actividades ligadas à vida prática de todos os dias. Não conseguia entender-me só no plano de nefelibata a pensar na minha escrita. Tinha que ter uma base concreta.

Hoje a minha escrita não tem o propósito, de um modo geral, de ir buscar esses materiais [escritos há 50 anos]. Se têm que surgir, eles emergem naturalmente. Há 50 anos talvez eu tivesse um pedantismo um pouco mais sofisticado e procurasse mostrar que conhecia isto ou aquilo. Hoje isso não me preocupa absolutamente nada. 



Gaivota levanta voo na beira do Tejo, no Terreiro do Paço em Lisboa


relembro o que escreveu: as suas rimas
nítidas de aço e dúcteis como a pele,
encontros, desencontros, corpos que ele
despia e enredava nas esgrimas
de angústias e palavras (aproxima-as
o jogo aliterado mas cruel
do cursivo do tempo no papel
a amalgamar memória e tensos climas)
e o perseguido amor em seus contrários,
como um rosto perdido que era o seu
procurando o fulgor e o sentido
que outros rostos lhe davam e esses vários
relances em que acaso apercebeu
que era ele e não era, reflectido.







*

  • Os dois primeiros parágrafos fazem parte da entrevista que Vasco Graça Moura concedeu a Ana Sousa Dias para a Revista Ler em Janeiro de 2014

  • O poema é David (no capítulo Mortes) do Volume I da sua Poesia Reunida

  • O primeiro vídeo mostra um excerto da presença de Vasco Graça Moura com Fernando Alvim no 5 para a Meia-Noite em que lê parte de uma poesia sua na qual refuta ser o autor de 'O segredo do meu pipi'

  • O segundo vídeo mostra-o falando do Livro da Sua Vida para  Ler Mais, Ler Melhor - Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões

  • O terceiro vídeo mostra Joana Amendoeira interpretando o fado Era a  noite que caía, cuja letra é justamente da autoria de Vasco Graça Moura.

*

23 abril, 2014

Em cada esquina um amigo


Terra da fraternidade. O povo é quem mais ordena. Dentro de ti, ó cidade.

Em cada rosto, igualdade.

É Abril, tempo de manifestar a nossa vontade.



CANTO DAQUI - Grândola Vila Morena 


Solista: Luís Veloso
Música e letra: José Afonso

Orquestra: Sopros de Zeca
Maestro: Filipe Cunha

**

As origens . José Afonso. Grândola.

Vila Morena




***

17 abril, 2014

Que o poema seja microfone e fale uma noite destas de repente às três e tal para que a lua estoire e o sono estale e a gente acorde finalmente em Portugal.


Abril é chegado. Vem fatigado este mês, o povo de pernas quebradas, o rosto tombado, os cabelos baços, as mãos vazias.

Andaram cinzentos os tempos, chorosos, e das paredes nasceu um bolor triste e dos ossos veio uma dor surda.

Mas é Abril e Abril é Abril e é em Abril que a força renasce, as cabeças se levantam, as pernas se erguem, os punhos se cerram.

É Abril e em Abril os cravos tornam-se vermelhos sangue, e perfumam-se com o cheiro da liberdade e as vozes erguem-se e os corpos, antes cansados, unem-se agora, prontos para cantar. Prontos para amar. E para lutar. Portugal é o nosso país e por ele temos que nos dar.


Lisboa hoje ao pôr do sol


Que o poema tenha rodas motores alavancas
que seja máquina espectáculo cinema.
Que diga à estátua: sai do caminho que atravancas.
Que seja um autocarro em forma de poema. 
Que o poema cante no cimo das chaminés
que se levante e faça o pino em cada praça
que diga quem eu sou e quem tu és
que não seja só mais um que passa. 
Que o poema esprema a gema do seu tema
e seja apenas um teorema com dois braços.
Que o poema invente um novo estratagema
para escapar a quem lhe segue os passos.
Que o poema corra salte pule
que seja pulga e faça cócegas ao burguês
que o poema se vista subversivo de ganga azul
e vá explicar numa parede alguns porquês. 
Que o poema se meta nos anúncios das cidades
que seja seta sinalização radar
que o poema cante em todas as idades
(que lindo!) no presente e no futuro o verbo amar. 
Que o poema seja microfone e fale
uma noite destas de repente às três e tal
para que a lua estoire e o sono estale
e a gente acorde finalmente em Portugal. 
Que o poema seja encontro onde era despedida.
Que participe. Comunique. E destrua
para sempre a distância entre a arte e a vida.
Que salte do papel para a página da rua. .
Que seja experimentado muito mais que experimental
que tenha ideias sim mas também pernas
E até se partir uma não faz mal:
antes de muletas que de asas eternas. 
Que o poema fique. E que ficando se aplique
A não criar barriga a não usar chinelos.
Que o poema seja um novo Infante Henrique
Voltado para dentro. E sem castelos. 
Que o poema vista de domingo cada dia
e atire foguetes para dentro do quotidiano.
Que o poema vista a prosa de poesia
ao menos uma vez em cada ano.  
Que o poema faça um poeta de cada
funcionário já farto de funcionar.
Ah que de novo acorde no lusíada
a saudade do novo o desejo de achar. 
Que o poema diga o que é preciso
que chegue disfarçado ao pé de ti
e aponte a terra que tu pisas e eu piso.
E que o poema diga: o longe é aqui. 



Poemarma de e dito por Manuel Alegre


14 abril, 2014

Quem fabrica um poema curto morrerá muito mais tarde só depois de estar maduro



Pintura mural numa parede do Ginjal


Quem fabrica um peixe fabrica duas ondas
uma que rebenta floralmente branca à direita
outra à esquerda só com ar lá dentro

e o ouro íngreme puxando o começo da noite
e o fim do enorme dia onde todos morreremos
como filhos escorraçados 
ou disso a que chamam demónio da analogia 

quem fabrica um poema curto morrerá muito mais tarde
só depois de estar maduro

quem baixa a mão para quebrar um selo
há-de baixá-la para quebrar os outros e há-de fechar os olhos

e de tanto ter visto não poderá nunca mais abri-los

e como pão e bebo água de olhos fechados
como se fosse para sempre

e assim adeus a quem vê
que eu morro inteiro para dentro

e vejo tudo só de entendê-lo



Vídeo de Cine Povero - "Quem fabrica um peixe, fabrica duas ondas" de Herberto Helder in «Servidões» dito por Fernando Alves 


com música Arvo Pärt, "Silentium", Parte 2 de «Tabula Rasa»


Fotografado em Petra (Jordânia), em 2010.



12 abril, 2014

'O Desempregado com Filhos' andou pelo Ginjal mas as gaivotas, os gatos e a maresia não lhe valeram. Coitado deste e de todos os desempregados. [Apesar de tudo, festejemos: chegou um novo vídeo de CINE POVERO]


Apetece dizer: parem tudo! Chegou um vídeo novo do Cine Povero e chega em boa hora. Todos os alertas e chamamentos são poucos quando Abril é chegado.


Gonçalo M. Tavares escreveu e Cristina Branco disse.
Ele estava desempregado há muito tempo.
Tinha filhos e do trabalho restavam cadilhos. E da fome sobravam rastilhos.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão.
Ele estava desempregado há mais tempo do que sabia, e mesmo se não queria, tinha filhos, aceitou.
Logo ali no cepo a deixou.
A mão, a mão, a mão.
Outra vez despedido de novo procurou emprego.
Só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão, aquela que te resta, a segunda
mão.
Ele estava desempregado, tinha filhos, aceitou.
Porque o tempo lhe fugia entre os últimos dedos lhe fugia,
a mão, o tempo, a mão.
Porque o tempo lhe fugia, entre os últimos dedos lhe fugia,
a mão, o tempo, a mão.
E quando um dia lhe disseram; só tens emprego se te cortarmos a cabeça.
Ele estava desempregado há mais tempo do que podia, tinha filhos, aceitou, e
baixando a cabeça, aceitou.
Porque o tempo lhe fugia, entre os últimos dedos lhe fugia,
a mão, o tempo, a mão.



A música é : Eleni Karaindrou, "Medea's Lament I" in «Medea»

e este é mais um dos maravilhosos vídeos do CINE POVERO


08 abril, 2014

No centro da cidade, um grito


Manhã silenciosa no Ginjal, manhã branca. Podia estar no céu, habitar uma nuvem, podia deslizar no dorso de uma gaivota, podia, podia deslizar nas velas de um veleiro, podia, podia sonhar num recanto secreto de Lisboa. 

Mas afinal apenas caminhava junto ao Tejo, os pés no chão, e não se via ninguém, parecia que estava eu, só eu, e as minhas memórias brancas.

O silêncio junto a um casario puído pela maresia e junto a um rio envolto em névoa é um alimento que eu e todos os amantes secretos procuram para sentir o doce fluir do tempo. Para lá caminho uma e outra e outra vez. Sempre - especialmente quando o mundo parece envolto em solidão e silêncio.


Manhã de neblina no Ginjal,
um cacilheiro atravessando o Tejo em silêncio, Lisboa mal de avistando

No centro da cidade, um grito.
Nele morrerei, escrevendo o que a vida me deixar
e sei que cada palavra escrita é um dardo envenenado.
Tem a dimensão de um túmulo e todos os teus gestos
são uma sinalização em direcção à morte.
Mas hoje, ainda longe daquele grito,
sento-me na fímbria do mar. Medito no meu regresso.
Possuo para sempre tudo o que perdi,
e uma abelha pousa-me no azul do lírio
e no cardo que sobreviveu à geada.
Bebo, fumo, mantenho-me atento,
absorto - aqui sentado, junto à janela fechada.
oiço-te ciciar: amo-te, pela primeira vez,
e na ténue luminosidade que se recolhe ao horizonte,
acaba o corpo.
Recolho o mel, guardo a alegria,
e digo-te baixinho:
Apaga as estrelas, vem dormir comigo
no esplendor da noite do mundo que nos foge



O poeta Al Berto (1948 - 1997), diz vinte poemas na "Casa Fernando Pessoa" em 1 de Julho 1995 e um poema no "Salão nobre dos Paços do Concelho", em 25 de Maio 1996


**

O grito raso
que se esconde
no verbo aceso
que se expande.
Fuga aberta
de palavras
cobrindo de sons
o Nada.
Aquilo que fica
depois da escrita
para além dos versos 
para além dos livros 
para além do pó.


[Poema de Joaquim Castilho num comentário abaixo]


03 abril, 2014

Os desiludidos do amor estão desfechando tiros no peito. Do meu quarto ouço a fuzilaria. As amadas torcem-se de gozo. Oh quanta matéria para os jornais.


Aos desiludidos, eu prefiro os iludidos do amor. Viver as ilusões do amor é tão bom, borboletas no peito, sonhos doces, lágrimas lentas tanta a emoção. 

Que importa que possa ser ilusão, se é coisa boa? Desde que não se coloquem as ilusões altas de mais, é bom viver a doçura do amor, é bom. E que venha a poesia ao de leve, macia como um veludo perfumado e manso, e que as vozes ciciem segredos e poemas e que haja beijos e beijinhos e olhares e abracinhos, afagos quentes e um desejo em crescendo. Boa essa ilusão.

Desilusões é que não vale a pena.


Casal de gaivotas no Tejo junto ao Ginjal


Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais. 
Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas. 
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno. 
Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia... 
Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e de segunda classe). 
Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles. 


['Necrológio dos desiludidos do amor' de Carlos Drummond de Andrade in 'Brejo das Almas', dito por Fernanda Torres]






***

DESILUSÃO?

Porque o Amor
Se dissolve
No espectro fechado
Dos dias iguais
Ele está
Como se lá não estivesse
No simples gesto de chegar.
Cansado
De abrir a porta

--------------

Sentada estás
No meu silêncio
Presente
Na estranha distância
De não te ter
Olhas-me
Imagem
Tenho-te em mim
Porque tu
Me habitas

---------
Escrever
O teu rosto
A sombra exacta dos teus seios
A dimensão líquida da tua pele
Na planície branca
Do meu poema.
Mar de palavras
Sempre desfeito
Pelo ruído desajeitado
Da minha sede



[Poema de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]


26 março, 2014

'Das vantagens de ser bobo' segundo Clarice Lispector


No Jardim do Ginjal
(NB: A fotografia não tem a ver com o tema do texto)


O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando." 

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia. 

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski. 

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu. 

Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?" 

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama! 

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz. 

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem. 

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas! 

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.



Das vantagens de ser bobo - Clarice Lispector por Aracy Balabanian



24 março, 2014

Difícil fotografar o silêncio


Um gato no Ginjal - em silêncio
O Tejo e Lisboa já ali


Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim num beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada mais na existência do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Vi um paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim cheguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.



Poema O Fotógrafo de Manoel de Barros dito por Eduardo Tornaghi


*

Encontrar o silêncio
quando os dias se rasgam
de gritos ácidos
e os ouvidos se enchem
de bandos loucos de palavras vãs.
Encontrar o silêncio
onde a Paz se acolhe
e o vazio se alaga
com sombras brancas.
Silêncio,
quando a angústia se esvai
e o olhar voa
como chama matutina.
Encontrar o Silêncio e morar nele
até que nos encontremos
e um sorriso se abra em nós.



[Silêncio de Joaquim Castilho num comentário abaixo]



20 março, 2014

O Jardim ('versão caseira' com muitos sorrisos, assobios, uivos e até uma mão na perna) - Tiago Bettencourt e Carolina Torres


Transcrevo da apresentação do vídeo escrita pelo próprio Tiago Bettencourt:

"Não sei se já alguém percebeu mas aqui no meu facebook, a cada 5 mil 'likes' tenho publicado vídeos caseiros com versões de canções minhas. Quando cheguei aos 35000 likes pensei fazer uma versão da canção 'O Jardim'. A versão que está no álbum tem um solo de trompete que em concerto é substituido por um solo de piano ou pelo meu assobio. Quando pensei nisto lembrei-me que tinha uma amiga que, de tão multifacetada, era dotada de um magnífico assobio. Liguei então à Carolina e perguntei se ela queria assobiar no meu video caseiro, ao que ela respondeu que se era para assobiar também ia cantar, e eu obviamente concordei. O que se segue foi o video possivel com a minha querida amiga Carolina Torres. Apenas alguns reparos:

1: este foi o take 3452 e estava a ficar demasiado escuro para continuarmos a filmar.

2: o solo de assobio está fenomenal.

3: a mão na perna é de incentivo para eu nao desistir de levar a canção até ao fim.

4: o uivo final... não tem qualquer justificação... mas tem um certo charme.

Aqui fica então mais um vídeo caseiro e estival para todos os que continuam connosco e que nos têm apoiado tanto nos concertos por Portugal fora. Obrigado do fundo do coração e obrigado à Carolina por ter aceite o convite. Boas férias para quem as tem e continuação de um bom verão para todos. Divirtam-se!"



Quero-te regar, minha flor
Quero cuidar de ti
Deixa-me entrar no jardim
Deixa-me voltar a dormir

Quero-te regar, minha flor
Dar-te de novo a paz que perdi
Quero desvendar a parte triste que há em ti
Deixa-me existir no espaço novo que encontraste em mim

Não vês que é de nós o jardim que se fez
Não vês que é para nós o jardim que nos faz olhar
Que este frio faz tremer quem fica
E faz voltar o que tens porque é meu

Não vês que é de nós o jardim que se fez
Não vês que é para nós o jardim que nos faz olhar
Que este rio faz crescer quem fica
E faz voltar o que tens porque é meu

Porque é meu
Porque é meu


*

19 março, 2014

'Deus não me deu o papel de Eva nem o de Maria porque também S. José me tinha corrido a pontapé' - "Adília Lopes, uma poeta que vale a pena a gente garimpar" - palavra de Eduardo Tornaghi


Quando aqui chego já a noite caíu há muito e venho sem ideias, a cabeça e o coração limpos. Esqueço os trabalhos do dia, preocupações profissionais ou familiares, esqueço até maleitas, tudo. Sou eu. Numa sala quase às escuras, numa mesa pouco iluminada, cercada por livros. Dir-se-ia que procuro o sossego ou que, a esta hora, gosto de sentir a leveza da solidão desejada. Mas não. Nem estou sozinha. O meu computador é muito mais que uma folha em branca: é uma janela que se abre para mundos que, de outra forma, eu jamais conheceria. O meu computador traz até aqui, à minha mesa, muita gente que fala coisas que eu gosto de ouvir.

Hoje lembrei-me de Adília Lopes. Há algo nesta mulher que me intriga. Quase acabou o curso de Física e a Física não é para todos, quem por lá perto tenha andado sabe o que aquilo é. Depois mudou para Literatura e pelos caminhos da literatura tem vindo a caminhar. Que padece de um certo tipo de psicose tem ela dito sem tabus e isso aparece muitas vezes nas suas palavras. Quando a ouço falar ou quando leio o que escreve fico sem perceber se ela fala ou escreve assim porque tem uma valente pancada, ou se se acha graça ou se é mesmo assim que ela é, infantil, irreverente, engraçada como uma menina grande e gorda.

Procurei por ela no YouTube e fui parar até um senhor fantástico: Eduardo Tornaghi. Ele diz poesia e prende-nos com a forma como diz e fala palavras engraçadas e, mais do que engraçadas, palavras muito oportunas como as que profere a propósito do mal-amado Acordo Ortográfico.

Vou acompanhar os seus vídeos. Abençoadas as pessoas que se dedicam à divulgação da bela língua portuguesa. Obrigada Eduardo Tornaghi.


Rosto de mulher impresso numa rocha no Jardim do Ginjal

Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter

Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas

Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)

A vida
é livro
e o livro
não é livre

Choro
chove
mas isto é
Verlaine

Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico


A solidão
de Adão
antes da criação
de Eva
devia ser
terrível
mas a minha
é bem pior
os homens
que escreveram
o Génesis
não pensaram
que Adão
em vez de saudar
Eva
com um grito de júbilo
a mandasse embora
com sete pedras na mão
mas eu acho
que foi
o que me aconteceu
temendo isso
Deus
não me deu
o papel de Eva
nem o de Maria
porque também
S. José
me tinha corrido
a pontapé


['Meteorológica', para o José Bernardino, de Adília Lopes]



Papo Poético - Eduardo Tornaghi



17 março, 2014

Ô pá, não quero outra vida...!


Sou admiradora de Adélia Prado e como. Gosto de a ler, mulher livre, desprendida, sem mão nas palavras, e gosto de a ver falando, inteligente, superior. Subterrânea. Alada. Irónica. Franca.

Volta e meia venho ver os vídeos em que aparece. Hoje coloco aqui uma entrevista muito completa, onde fala de assuntos variados. Abençoada Adélia. Adélia e Hélia. Quando a ouço penso em Hélia Correia. Líricas e etéreas mas, ao mesmo tempo, mulheres com as mãos na terra, atentas ao mundo. 

Ficava um dia inteiro a ouvi-la. Sábia. Feminina. Mulher de palavra e de palavras. Uma grande da língua portuguesa.








Transcrevo o texto de apresentação do vídeo no YouTube (Dez.2012): O Imagem da Palavra exibe programa especial de Natal com Adélia Prado. A escritora, que é um dos principais nomes da literatura nacional, conversou com Guga Barros sobre seu novo livro, A Duração do dia, seu processo criativo, a influência da religião em suas obras e a posição feminina na literatura.

*


03 março, 2014

Boa noite. Eu vou com as aves.


Cresci, mãe, cresci mas a menina que fui ainda existe dentro de mim. Tu sabes, mãe, que sou ainda a mesma. Tratas-me pelo mesmo nome com que me tratas desde que nasci. Tu e todas as pessoas que me conheceram então. Para ti e para todas elas sou ainda a mesma. E sou. É estranho porque já não teria idade para o ser. Mas sou. Alegre, curiosa, deslumbrada.Tomara que sempre assim me conserve, não é, mãe? Não quero ser velha, por muitos anos que já tenha e por muitos anos que ainda venha a ter. Não tenho feitio para me sentir e portar como uma velha.

E, quando me for, que vá voando, rindo, feliz, para desfrutar a liberdade dos grandes espaços. Com as aves. Como as aves.


Manhã de chuva no Ginjal - o Tejo picado e Lisboa envolta em névoa

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe 
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos. 
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais. 
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz. 
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura. 
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos. 
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe! 
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos; 
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura; 
ainda oiço a tua voz:
          Era uma vez uma princesa
          no meio de um laranjal... 
Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber, 
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas. 
Boa noite. Eu vou com as aves. 

Gaivota quase parada no ar no céu do Ginjal sobre o Tejo



['Poema à Mãe' de Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"]


Video realizado por Lauro Martins e Manuel Capitão, no âmbito da UC Imagem em Educação, Mestrado Tecnologia Educativa - Universidade do Minho 2012


Voz de Nuno Miguel Henriques


Música: Ave Maria - Gounod/Bach


27 fevereiro, 2014

Mas que coisa é homem, que há sob o nome: uma geografia? Um ser metafísico? Uma fábula sem signo que a desmonte? Que milagre é o homem? Que sonho, que sombra?


Que coisa é um homem, também eu gostava de ser. Um acaso da natureza? O golpe de génio de um ser superior? Não sei. Não sei o que sou. Não sei se eu sou a que pensa e escreve ou se sou o corpo que tem vida própria.

Que coisa sou eu? 



Porque se alojou no meu corpo esta que aqui vos escreve e não dentro do homem que cruza o horizonte algures no monte ou dentro da gata, minha irmã, que evita o meu olhar?

Não sei (e acho que se calhar também não é importante saber).





Mas que coisa é homem,
que há sob o nome:
uma geografia? 
um ser metafísico?
uma fábula sem
signo que a desmonte? 
Como pode o homem
sentir-se a si mesmo,
quando o mundo some? 
Como vai o homem
junto de outro homem,
sem perder o nome? 
E não perde o nome
e o sal que ele come
nada lhe acrescenta´ 
nem lhe subtrai
da doação do pai?
Como se faz um homem? 
Apenas deitar,
copular, à espera
de que do abdômen 
brote a flor do homem?
Como se fazer
a si mesmo, antes 
de fazer o homem?
Fabricar o pai
e o pai e outro pai 
e um pai mais remoto
que o primeiro homem?
Quanto vale o homem? 
Menos, mais que o peso?
Hoje mais que ontem?
Vale menos, velho? 
Vale menos morto?
Menos um que outro,
se o valor do homem 
é medida de homem?
Como morre o homem,
como começa a? 
Sua morte é fome
que a si mesma come?
Morre a cada passo? 
Quando dorme, morre?
Quando morre, morre?
A morte do homem 
consemelha a goma
que ele masca, ponche
que ele sorve, sono 
que ele brinca, incerto
de estar perto, longe?
Morre, sonha o homem? 
Por que morre o homem?
Campeia outra forma
de existir sem vida? 
Fareja outra vida
não já repetida,
em doido horizonte? 
Indaga outro homem?
Por que morte e homem
andam de mãos dadas 
e são tão engraçadas
as horas do homem?
mas que coisa é homem? 
Tem medo de morte,
mata-se, sem medo?
Ou medo é que o mata 
com punhal de prata,
laço de gravata,
pulo sobre a ponte? 
Por que vive o homem?
Quem o força a isso,
prisioneiro insonte? 
Como vive o homem,
se é certo que vive?
Que oculta na fronte? 
E por que não conta
seu todo segredo
mesmo em tom esconso? 
Por que mente o homem?
mente mente mente
desesperadamente? 
Por que não se cala,
se a mentira fala,
em tudo que sente? 
Por que chora o homem?
Que choro compensa
o mal de ser homem? 
Mas que dor é homem?
Homem como pode
descobrir que dói? 
Há alma no homem?
E quem pôs na alma
algo que a destrói? 
Como sabe o homem
o que é sua alma
e o que é alma anônima? 
Para que serve o homem?
para estrumar flores,
para tecer contos? 
Para servir o homem?
Para criar Deus?
Sabe Deus do homem? 
E sabe o demônio?
Como quer o homem
ser destino, fonte? 
Que milagre é o homem?
Que sonho, que sombra?
Mas existe o homem?



'Especulação em torno da palavra homem' (Carlos Drummond de Andrade) aqui dito por Sandra Corveloni



26 fevereiro, 2014

Eu creio que sonhar o impossível é como que ouvir a voz de alguma coisa que pede existência e que nos chama de longe.


De olhos confiantes, de coração aberto, de mãos generosas, de costas direitas, de cabeça erguida, avanço na vida. Procuro a beleza, os afectos, a alegria de dar e de receber, o prazer da procura. O mais importante na vida é fazer com que não seja em vão, com que não seja uma oportunidade desperdiçada. O mais importante na vida é saber vivê-la, é deixar uma marca nos outros, é fazer com que a caminhada seja um prazer para nós e para os outros. 

Digo eu. Mas é bem capaz de ser muito mais que isto. Muito melhor que isto. As palavras ficam aquém da beleza e da bênção que é a vida (por inabilidade minha).


Lançando-se ao voo

O mais importante na vida
É ser-se criador - criar beleza.
Para isso,
É necessário pressenti-la
Aonde os nossos olhos não a virem.
Eu creio que sonhar o impossível
É como que ouvir a voz de alguma coisa
Que pede existência e que nos chama de longe.
Sim, o mais importante na vida
É ser-se criador.
E para o impossível
Só devemos caminhar de olhos fechados
Como a fé e como o amor.




Este vídeo da autoria de CINE POVERO é dedicado ao Léo (que surge na 2ª fotografia)


"O mais importante" in «Canções» (1920) de António Botto (1897-1959) aqui dito por Manuela de Freitas in «Poemas de Bibe» [em parceria com Mário Viegas] (1990)


Música: Bernardo Sassetti (1970-2012), "Inocência - Movimento I"



25 fevereiro, 2014

Quem és tu, promessa imaginária que me ensina a decifrar as intenções do vento, a música da chuva nas janelas sob o frio de fevereiro?


Quem és tu? Um acaso?

Há muito tempo que as nossas vidas se misturaram, pele com pele, carne com carne, saliva com saliva, todos os nossos fluidos feitos um. O olhar de um espelhado no olhar do outro, as mãos que se procuram, os segredos que se partilham, o futuro que se vai construindo dia a dia. E as zangas, irremediáveis, definitivas, e que, afinal, se esfumam ao primeiro sorriso, ou quando as nossas pernas se procuram no aconchego dos lençóis.

É Fevereiro e chove e está cinzento, mas podia ser Março e haver flores ou Setembro e a temperatura adoçar-se em dourado ou Outubro em fogo, ou Dezembro e o ano a virar. Tanto faria. Todos os dias são dias de pequenas coisas, pequenos gestos, pequenas atenções, coisas de nada. Que afinal é disto que é feito o amor. De pequenos instantes. De não poder passar sem esses pequenos nadas. De sonhos que se constroem a dois, desassossegos que ensombram a luz mas que, a dois, são afastados, e abraços, e beijos, e o desejo, e tudo. E tudo. E nada.

Quem és tu que a vida colocou no meu caminho para assim acompanhares tão de perto a minha caminhada? 


No Ginjal num dia de frio e névoa



Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.



['Segredo' de Fernando Pinto do Amaral dito por Nuno Miguel Henriques. Extracto do programa "Palavra dos Poetas"]



21 fevereiro, 2014

Podereis roubar-me tudo: as ideias, as palavras, as imagens, e também as metáforas, os temas, os motivos, os símbolos . [e a voz de Jel e de Luís Filipe Castro Mendes]


Podem, os pulhas, roubar-nos tudo: o presente, o futuro, o país, a casa, a proximidade dos filhos, a esperança, a confiança, tanta coisa.

Mas não nos tirarão a dignidade, o orgulho, a força, a palavra.

Até que a voz me doa, não me cansarei de falar. Eu e tantos como eu. Unidos e a fazer-vos frente.

Não nos destruirão e cá estaremos para vos dizer como é quando a hora for chegada. Não perdem pela demora, seus pulhas.


Dia de chuva no Ginjal

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
Que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
Para passar por meu. E para os outros ladrões,
Iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.



['Camões dirige-se aos seus contamporâneos' de Jorge de Sena aqui dito por Jel]



Luís Filipe Castro Mendes, o Tim Tim no Tibete, fala de Jorge de Sena




.

20 fevereiro, 2014

Sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas - bem o diz Cora Coralina


Saber viver deveria ser a principal disciplina que nos ensinavam na escola: saber agradecer a vida que nos é dada a viver, saber vivê-la o melhor possível, saber tornar melhor a vida dos outros, tornar este percurso numa aventura boa, saber acarinhar a terra, amanhá-la para que fique ainda melhor para os que vêm a seguir, saber fazer com que a nossa vida não tenha sido em vão. 

Encher a nossa vida de abraços, beijos, sorrisos, crianças, afectos, mãos que se abrem para receber outras mãos, corações disponíveis para acolher outros, saber olhar com carinho o céu, a terra, o mar, as plantas, as pedras, os animais. Tudo isso. 

Saber viver.


Graffiti num muro junto à ex Lisnave

Não sei... Se a vida é curta
Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas. 
Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove. 
E isso não é coisa de outro mundo,
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura... Enquanto durar

        ['Saber viver' de Cora Coralina]




Documentário Cora Coralina - realização: ALLTYPE


17 fevereiro, 2014

E estou tão leve porque não tenho nenhum segredo e tão oculto porque daqui a nada já posso dizer tudo. [Herberto Helder na voz de Fernando Alves pela mão do Cine Povero - uma maravilha]


Veleiro no Tejo, a ponte Vasco da Gama ao fundo
Avistado a partir do Ginjal


Levanto à vista
o que foi a terra magnífica
e as estações mais bêbedas
E estou tão leve
porque não tenho nenhum segredo
e tão oculto
porque daqui a nada
já posso dizer tudo.
Daqui a uma pouca ciência
saberei pensar que daqui a um pouco depois
estarei morto
e só de pensar
já nem respiro
já quase
em nada toco
Já vejo no fundo das mãos
daquilo que fica escrito
Que escrevi coisa nenhuma do mundo
até ao esquecimento e movendo-me com as unhas
movo-me nos nomes inúmeros
para dizer que mal nasci
logo me deram por morto.
E não fui tido nem havido
na razão do episódio de um rosto
ter passado por um espelho e ter desaparecido.
Portanto não me venha ninguém falar de nada
sei bastante do que sabem todos
Vejo a água a mover-se contra si mesma
tão marítima e acho até que é bonito
cada qual morre do que alcança e não alcança
e ninguém compreende
a água que toca os dedos que escreveram até às pontas
e passa a água fácil
sem retorno
porque nada tem retorno e tudo é dificílimo
não só o máximo, mas também o mínimo.


Poesia dita

Fernando Alves diz Herberto Helder - 'Levanto à vista' in 'Servidões'

Vídeo da autoria de Cine Povero


(Filmado em São Julião e na Senhora do Monte (Lx.)).

11 fevereiro, 2014

Dizes que querias ser meu namorado, morar dentro dos meus olhos - mas eu não vejo nada disso.


Dizes que pedes para ser meu namorado e talvez peças mesmo, queixas-te, sentes-te infeliz, e é uma lamúria, uma lamúria, uma ladaínha, que querias, que fazias, que sei lá o quê. Sempre a mesma coisa. 

Não sais desse registo e a nossa história, que nem é história, não passa disto.

Mas não percebeste que não é assim que me vais conquistar? Se queres, avança, arrisca, dá o peito às balas. 

Querias ser meu namorado? E o que já fizeste para isso? Dizes que não vejo o teu desejo. Gostava de saber como chegaste a essa conclusão, gostava mesmo. Não. O que eu gostava mesmo era de outra coisa: é que fosses homem para mim. 

Sempre essa converseta de vestido encarnado aos folhos e de verão e mais não sei o quê. Fantasia. Estamos no inverno, claro que não ando de vestido encarnado aos folhos como uma maria papoila. Pára de ficcionar e vem. Estou é já farta de estar à espera.


Num dos muros rente à praia - Mulheres, Gatos, Tejo


Queria ser teu namorado,
Morar dentro dos teus olhos;
Perder-me nos muitos folhos
Do teu vestido encarnado.
Mas tu ficas à janela
Sem ver sequer quando eu passo;
E a tua frieza gela
O calor do meu abraço.
Queria pegar-te na mão,
Deixar-me levar às cegas;
Perder-me nas muitas pregas
Do teu vestido de Verão.
Mas tu nem olhas para mim
Não sabes que te desejo,
Deixas um gosto ruim
Na doçura do meu beijo.

 

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A Tua Frieza Gela, letra de Maria do Rosário Pedreira e música de António Zambujo

*

Maria do Rosário Pedreira fala da sua Poesia



10 fevereiro, 2014

O europeu do Norte não gosta de nos ver comer peixe fresco do alto. Um carapau, uma sardinha, vá.



Abandono numa manhã fria no Ginjal. Lisboa do outro lado.



A expressão é um diamante bem lapidado que transcendeu o "apertar do cinto", expressão que sobreviveu não sei como à miséria real do Estado Novo. Espero que passe à reforma, porque se a língua não muda, o povo estagna, ou vice-versa.

Agora ninguém aperta o cinto, até porque a comida de segunda, rápida, obriga a alargá-lo. Agora faz-se um downsizing, ou seja, não se compra cherne fresco ao sábado: vai-se à secção de congelados do Jumbo e manda-se cortar uma perca do Nilo em postas finas duras. Cherne fresco era viver acima das nossas possibilidades, e que interessa que os pescadores não vendam?! O europeu do Norte não gosta de nos ver comer peixe fresco do alto. Um carapau, uma sardinha, vá. Downsizing do lifestyle significa, na prática, continuar a ser os pretos claros dos brancos do norte, como no passado outros foram os nossos pretos, porque não nos interessava que fossem mais do que isso. A história repete-se com diferentes protagonistas, mas essencialmente é sempre isto: quem manda e quem é mandado; quem pode e quem não pode.


[Excerto de 'Downsizing do lifestyle', texto de Isabela Figueiredo no seu Novo Mundo Perfeito]




Isabel Figueiredo é a autora do livro 'Caderno de Memórias Coloniais', um livro que recomendo



07 fevereiro, 2014

Teci com os cintilantes fios a misteriosa linguagem dos astros


Habito a noite. Quando a casa sossega e as ruas se calam, eu movo-me como uma gata cheia de silêncios e subtilezas e esgueiro-me até aqui. Brinco com as palavras, afago livros, sento-me numa mesa carregada e onde um pequeno candeeiro tenta não perturbar a quietude da noite. Ouço poetas, dizedores, ponho-me, eu própria, a escrever palavras que não sei que caminhos percorrem ou onde me levam.

Mas tenho sono. Daqui a nada tenho que tentar parecer uma criatura normal, daquelas que vive de dia. Não posso levantar-me mais tarde pois o dia começa cedo. Tenho uma verdadeira vida dupla. Vocês que aqui me lêem não me reconheceriam se me vissem, eficiente e executiva, conduzindo reuniões difíceis. Tal como qualquer das pessoas que comigo se cruza durante o dia jamais suspeitaria que eu, aquela que ali vêem, se deita tão tarde para ler, escrever, ouvir dizer poesia, coisas assim, tão contrárias ao mundo dos negócios.


Gaivota à beira Tejo

estavam os homens as águas os animais e as terras
cansados de luz e de não haver noite
levantei a mão
fiz rodar a terra para que se retirasse o sol
enrolei os dedos nas últimas fulgurações
teci com os cintilantes fios
a misteriosa linguagem dos astros
depois
fui pela escura abóbada
estendi a fantástica tapeçaria
para que lá em baixo ninguém perdesse o seu caminho
e nela pudesse adivinhar o doloroso humano destino
a noite ficou assim tão habitada quanto a terra
os homens podem hoje sonhar com aquilo que mal entendem
e quando o medo atribuiu um nome àquele luzeiro
dei por terminada a obra
cortei os fios como se cortasse um pedaço de mim
fui para outro hemisfério adormecer o dia
construir a pirâmide o quadrado o círculo a linha recta
as cores do mundo
e dar vida a outras incandescentes criaturas


['Dia da Criação da Noite por Carlos Nogueira' de Al Berto dito por Guilherme Gomes]