Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

28 abril, 2014

Vasco Graça Moura, uma das grandes presenças no 'Ginjal e Lisboa' - para sempre a acompanhar quem por aqui passar. E o que vos digo é que 'relembro o que escreveu: as suas rimas nítidas de aço e dúcteis como a pele, encontros, desencontros, corpos que ele despia e enredava nas esgrimas'


Sim, fui-me dedicando sucessivamente, sobretudo no plano literário, a fazer muitas coisas e muito variadas. Comecei pela poesia, depois fui para a crítica, para o ensaio, para a ficção, entretanto passei para a polémica. Mas não deixei de fazer um conjunto de actividades ligadas à vida prática de todos os dias. Não conseguia entender-me só no plano de nefelibata a pensar na minha escrita. Tinha que ter uma base concreta.

Hoje a minha escrita não tem o propósito, de um modo geral, de ir buscar esses materiais [escritos há 50 anos]. Se têm que surgir, eles emergem naturalmente. Há 50 anos talvez eu tivesse um pedantismo um pouco mais sofisticado e procurasse mostrar que conhecia isto ou aquilo. Hoje isso não me preocupa absolutamente nada. 



Gaivota levanta voo na beira do Tejo, no Terreiro do Paço em Lisboa


relembro o que escreveu: as suas rimas
nítidas de aço e dúcteis como a pele,
encontros, desencontros, corpos que ele
despia e enredava nas esgrimas
de angústias e palavras (aproxima-as
o jogo aliterado mas cruel
do cursivo do tempo no papel
a amalgamar memória e tensos climas)
e o perseguido amor em seus contrários,
como um rosto perdido que era o seu
procurando o fulgor e o sentido
que outros rostos lhe davam e esses vários
relances em que acaso apercebeu
que era ele e não era, reflectido.







*

  • Os dois primeiros parágrafos fazem parte da entrevista que Vasco Graça Moura concedeu a Ana Sousa Dias para a Revista Ler em Janeiro de 2014

  • O poema é David (no capítulo Mortes) do Volume I da sua Poesia Reunida

  • O primeiro vídeo mostra um excerto da presença de Vasco Graça Moura com Fernando Alvim no 5 para a Meia-Noite em que lê parte de uma poesia sua na qual refuta ser o autor de 'O segredo do meu pipi'

  • O segundo vídeo mostra-o falando do Livro da Sua Vida para  Ler Mais, Ler Melhor - Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões

  • O terceiro vídeo mostra Joana Amendoeira interpretando o fado Era a  noite que caía, cuja letra é justamente da autoria de Vasco Graça Moura.

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23 abril, 2014

Em cada esquina um amigo


Terra da fraternidade. O povo é quem mais ordena. Dentro de ti, ó cidade.

Em cada rosto, igualdade.

É Abril, tempo de manifestar a nossa vontade.



CANTO DAQUI - Grândola Vila Morena 


Solista: Luís Veloso
Música e letra: José Afonso

Orquestra: Sopros de Zeca
Maestro: Filipe Cunha

**

As origens . José Afonso. Grândola.

Vila Morena




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17 abril, 2014

Que o poema seja microfone e fale uma noite destas de repente às três e tal para que a lua estoire e o sono estale e a gente acorde finalmente em Portugal.


Abril é chegado. Vem fatigado este mês, o povo de pernas quebradas, o rosto tombado, os cabelos baços, as mãos vazias.

Andaram cinzentos os tempos, chorosos, e das paredes nasceu um bolor triste e dos ossos veio uma dor surda.

Mas é Abril e Abril é Abril e é em Abril que a força renasce, as cabeças se levantam, as pernas se erguem, os punhos se cerram.

É Abril e em Abril os cravos tornam-se vermelhos sangue, e perfumam-se com o cheiro da liberdade e as vozes erguem-se e os corpos, antes cansados, unem-se agora, prontos para cantar. Prontos para amar. E para lutar. Portugal é o nosso país e por ele temos que nos dar.


Lisboa hoje ao pôr do sol


Que o poema tenha rodas motores alavancas
que seja máquina espectáculo cinema.
Que diga à estátua: sai do caminho que atravancas.
Que seja um autocarro em forma de poema. 
Que o poema cante no cimo das chaminés
que se levante e faça o pino em cada praça
que diga quem eu sou e quem tu és
que não seja só mais um que passa. 
Que o poema esprema a gema do seu tema
e seja apenas um teorema com dois braços.
Que o poema invente um novo estratagema
para escapar a quem lhe segue os passos.
Que o poema corra salte pule
que seja pulga e faça cócegas ao burguês
que o poema se vista subversivo de ganga azul
e vá explicar numa parede alguns porquês. 
Que o poema se meta nos anúncios das cidades
que seja seta sinalização radar
que o poema cante em todas as idades
(que lindo!) no presente e no futuro o verbo amar. 
Que o poema seja microfone e fale
uma noite destas de repente às três e tal
para que a lua estoire e o sono estale
e a gente acorde finalmente em Portugal. 
Que o poema seja encontro onde era despedida.
Que participe. Comunique. E destrua
para sempre a distância entre a arte e a vida.
Que salte do papel para a página da rua. .
Que seja experimentado muito mais que experimental
que tenha ideias sim mas também pernas
E até se partir uma não faz mal:
antes de muletas que de asas eternas. 
Que o poema fique. E que ficando se aplique
A não criar barriga a não usar chinelos.
Que o poema seja um novo Infante Henrique
Voltado para dentro. E sem castelos. 
Que o poema vista de domingo cada dia
e atire foguetes para dentro do quotidiano.
Que o poema vista a prosa de poesia
ao menos uma vez em cada ano.  
Que o poema faça um poeta de cada
funcionário já farto de funcionar.
Ah que de novo acorde no lusíada
a saudade do novo o desejo de achar. 
Que o poema diga o que é preciso
que chegue disfarçado ao pé de ti
e aponte a terra que tu pisas e eu piso.
E que o poema diga: o longe é aqui. 



Poemarma de e dito por Manuel Alegre


14 abril, 2014

Quem fabrica um poema curto morrerá muito mais tarde só depois de estar maduro



Pintura mural numa parede do Ginjal


Quem fabrica um peixe fabrica duas ondas
uma que rebenta floralmente branca à direita
outra à esquerda só com ar lá dentro

e o ouro íngreme puxando o começo da noite
e o fim do enorme dia onde todos morreremos
como filhos escorraçados 
ou disso a que chamam demónio da analogia 

quem fabrica um poema curto morrerá muito mais tarde
só depois de estar maduro

quem baixa a mão para quebrar um selo
há-de baixá-la para quebrar os outros e há-de fechar os olhos

e de tanto ter visto não poderá nunca mais abri-los

e como pão e bebo água de olhos fechados
como se fosse para sempre

e assim adeus a quem vê
que eu morro inteiro para dentro

e vejo tudo só de entendê-lo



Vídeo de Cine Povero - "Quem fabrica um peixe, fabrica duas ondas" de Herberto Helder in «Servidões» dito por Fernando Alves 


com música Arvo Pärt, "Silentium", Parte 2 de «Tabula Rasa»


Fotografado em Petra (Jordânia), em 2010.



12 abril, 2014

'O Desempregado com Filhos' andou pelo Ginjal mas as gaivotas, os gatos e a maresia não lhe valeram. Coitado deste e de todos os desempregados. [Apesar de tudo, festejemos: chegou um novo vídeo de CINE POVERO]


Apetece dizer: parem tudo! Chegou um vídeo novo do Cine Povero e chega em boa hora. Todos os alertas e chamamentos são poucos quando Abril é chegado.


Gonçalo M. Tavares escreveu e Cristina Branco disse.
Ele estava desempregado há muito tempo.
Tinha filhos e do trabalho restavam cadilhos. E da fome sobravam rastilhos.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão.
Ele estava desempregado há mais tempo do que sabia, e mesmo se não queria, tinha filhos, aceitou.
Logo ali no cepo a deixou.
A mão, a mão, a mão.
Outra vez despedido de novo procurou emprego.
Só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão, aquela que te resta, a segunda
mão.
Ele estava desempregado, tinha filhos, aceitou.
Porque o tempo lhe fugia entre os últimos dedos lhe fugia,
a mão, o tempo, a mão.
Porque o tempo lhe fugia, entre os últimos dedos lhe fugia,
a mão, o tempo, a mão.
E quando um dia lhe disseram; só tens emprego se te cortarmos a cabeça.
Ele estava desempregado há mais tempo do que podia, tinha filhos, aceitou, e
baixando a cabeça, aceitou.
Porque o tempo lhe fugia, entre os últimos dedos lhe fugia,
a mão, o tempo, a mão.



A música é : Eleni Karaindrou, "Medea's Lament I" in «Medea»

e este é mais um dos maravilhosos vídeos do CINE POVERO


08 abril, 2014

No centro da cidade, um grito


Manhã silenciosa no Ginjal, manhã branca. Podia estar no céu, habitar uma nuvem, podia deslizar no dorso de uma gaivota, podia, podia deslizar nas velas de um veleiro, podia, podia sonhar num recanto secreto de Lisboa. 

Mas afinal apenas caminhava junto ao Tejo, os pés no chão, e não se via ninguém, parecia que estava eu, só eu, e as minhas memórias brancas.

O silêncio junto a um casario puído pela maresia e junto a um rio envolto em névoa é um alimento que eu e todos os amantes secretos procuram para sentir o doce fluir do tempo. Para lá caminho uma e outra e outra vez. Sempre - especialmente quando o mundo parece envolto em solidão e silêncio.


Manhã de neblina no Ginjal,
um cacilheiro atravessando o Tejo em silêncio, Lisboa mal de avistando

No centro da cidade, um grito.
Nele morrerei, escrevendo o que a vida me deixar
e sei que cada palavra escrita é um dardo envenenado.
Tem a dimensão de um túmulo e todos os teus gestos
são uma sinalização em direcção à morte.
Mas hoje, ainda longe daquele grito,
sento-me na fímbria do mar. Medito no meu regresso.
Possuo para sempre tudo o que perdi,
e uma abelha pousa-me no azul do lírio
e no cardo que sobreviveu à geada.
Bebo, fumo, mantenho-me atento,
absorto - aqui sentado, junto à janela fechada.
oiço-te ciciar: amo-te, pela primeira vez,
e na ténue luminosidade que se recolhe ao horizonte,
acaba o corpo.
Recolho o mel, guardo a alegria,
e digo-te baixinho:
Apaga as estrelas, vem dormir comigo
no esplendor da noite do mundo que nos foge



O poeta Al Berto (1948 - 1997), diz vinte poemas na "Casa Fernando Pessoa" em 1 de Julho 1995 e um poema no "Salão nobre dos Paços do Concelho", em 25 de Maio 1996


**

O grito raso
que se esconde
no verbo aceso
que se expande.
Fuga aberta
de palavras
cobrindo de sons
o Nada.
Aquilo que fica
depois da escrita
para além dos versos 
para além dos livros 
para além do pó.


[Poema de Joaquim Castilho num comentário abaixo]


03 abril, 2014

Os desiludidos do amor estão desfechando tiros no peito. Do meu quarto ouço a fuzilaria. As amadas torcem-se de gozo. Oh quanta matéria para os jornais.


Aos desiludidos, eu prefiro os iludidos do amor. Viver as ilusões do amor é tão bom, borboletas no peito, sonhos doces, lágrimas lentas tanta a emoção. 

Que importa que possa ser ilusão, se é coisa boa? Desde que não se coloquem as ilusões altas de mais, é bom viver a doçura do amor, é bom. E que venha a poesia ao de leve, macia como um veludo perfumado e manso, e que as vozes ciciem segredos e poemas e que haja beijos e beijinhos e olhares e abracinhos, afagos quentes e um desejo em crescendo. Boa essa ilusão.

Desilusões é que não vale a pena.


Casal de gaivotas no Tejo junto ao Ginjal


Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais. 
Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas. 
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno. 
Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia... 
Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e de segunda classe). 
Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles. 


['Necrológio dos desiludidos do amor' de Carlos Drummond de Andrade in 'Brejo das Almas', dito por Fernanda Torres]






***

DESILUSÃO?

Porque o Amor
Se dissolve
No espectro fechado
Dos dias iguais
Ele está
Como se lá não estivesse
No simples gesto de chegar.
Cansado
De abrir a porta

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Sentada estás
No meu silêncio
Presente
Na estranha distância
De não te ter
Olhas-me
Imagem
Tenho-te em mim
Porque tu
Me habitas

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Escrever
O teu rosto
A sombra exacta dos teus seios
A dimensão líquida da tua pele
Na planície branca
Do meu poema.
Mar de palavras
Sempre desfeito
Pelo ruído desajeitado
Da minha sede



[Poema de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]