Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

31 dezembro, 2013

No virar do ano, desejo a todos um bom 2014. Bailemos agora!!!!!


A todos os que por aqui passam, desejo um 2014 à medida dos vossos desejos ou melhor ainda. 
Bailemos, cantemos, lutemos. 
Defendamos os nossos sonhos.



Bailemos agora, por Deus, ai velidas,
so aquestas avelaneiras frolidas
e quen for velida como nós, velidas,
     se amigo amar,
so aquestas avelaneiras frolidas
     verrá bailar.

Bailemos agora, por Deus, ai loadas,
so aquestas avelaneiras granadas
e quen for loada como nós, loadas,
     se amigo amar.
so aquestas avelaneiras granadas
     verrá bailar.


['Bailemos agora' de João Zorro na voz de José Afonso]

FELIZ 2014!!!



29 dezembro, 2013

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades


Quase a virar o ano, com vontade de despir a pele, de deitar fora as lembranças deste ano que nasceu velho e mal parido, eis que me aproximo do ano novo com flores na alma, vontade de mudanças, ansiosa por espantos bons, voos largos, novidades surpreendentes e aladas, o chão como um suave manto verde, o céu como um tule transparente e misterioso.

Que se enterrem as mágoas, as tristezas, todas as desesperanças, e que avancemos, sem medos e sem delongas, pelos caminhos que se desdobram auspiciosos à nossa frente.

Não me perguntem de onde me vêm este ânimo e estes bons augúrios - não saberia como responder. Mas sei que o mundo bom está aí à espera. Quero descobri-lo e vivê-lo, estou cá para me aventurar. E é só isso que sei - mas isso basta-me.


Uma gata no Ginjal - a serena sabedoria de saber viver o momento




Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.


['Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades' de Luís Vaz de Camões, in "Sonetos" 

- aqui dito por Rui Reininho]





'Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades' aqui com música de José Mário Branco

 - aqui interpretado com toda a cagança, toda a pujança pela Estudantina Universitária de Coimbra



28 dezembro, 2013

Os amigos segundo Luiz Pacheco, esse grande libertino


Mário Soares, José Saramago, João Pedro George e outro senhor que não sei quem é e, ainda, o próprio falam dos célebres 'cravanços' de Luiz Pacheco.



26 dezembro, 2013

Preciso de escrever-te do avesso para te amar em excesso


Há pessoas que conseguem virar uma ideia do avesso, tirar dela o melhor, revirar as golas ao texto, fazer-lhe bainhas, retirar os excessos, ajustar ao corpo, e pode ser um corte preciso, umas pinças, e, depois, dão-lhe um jeito para que fique graciosa a composição, um viés, uns godés, uns machos, umas aplicações singelas mas oportunas, um ar da sua graça, uma leveza.

Fica assim o palavreado com alma - uma música, uma luz, qualquer coisa muito próxima da origem, da raiz, da seiva, do sangue, da respiração. 

São os poetas. Artistas, artífices, profetas, sibilas.

Abençoados poetas. Abençoadas pessoas.


Ver o quase invisível

(No Jardim do Ginjal)


*


*

                                                  No meu poema ficaste
                                                  de pernas para
                                                  o ar
                                                  (mas também eu
                                                  já estive tantas vezes)

                                                  Por entre versos vejo-te as mãos
                                                  no chão
                                                  do meu poema
                                                  e os pés tocando o título
                                                  (a haver quando eu
                                                  quiser)

                                                  Enquanto o meu desejo assim serás:
                                                  incómodo estatuto:
                                                  preciso de escrever-te
                                                  do avesso
                                                  para te amar em excesso


['Título por haver' de Ana Luísa Amaral in '366 Poemas Que Falam de Amor', antologia de  Vasco Graça Moura]


24 dezembro, 2013

Neste Natal, o 'Ginjal e Lisboa' deixa aos seus leitores alguns presentinhos: poesia dita por Herman José; uma canção interpretada pelo Pai Natal; os Jingle Bells numa coreagrafia felina e, finalmente, os Monjes Silenciosos interpretando o Aleluia. Feliz Natal, meus queridos Leitores!


Haja humor, alegria, leveza e muita vontade de sacudir o pó do passado, dos medos e das tristezas. 

Num registo diferente, porque gosto do que é inesperado e do que me faz rir ou sorrir, aqui vos deixo a mensagem do Ginjal e Lisboa para esta véspera de Natal.


Tempo de Poesia - a palavra a Herman José



*

Que entre o Pai Natal. Os votos estão um ano atrasados mas o que conta é a intenção, certo?




*

Sendo o Ginjal um local tão habitado por gatos, não poderiam aqui faltar hoje, certo? Que toquem os sinos.



*

E que entrem os monges silenciosos porque religião e Natal não tem que ser coisa sisuda.



Bom Natal! Festas Felizes!

22 dezembro, 2013

Por isso temos braços longos para os adeuses, mãos para colher o que foi dado, dedos para cavar a terra.


O que é essencial - mesmo que o essencial se perceba apenas entre uma fresta, por um breve momento, por um gesto, por uma palavra,por  uma imagem quase invisível. Mesmo que mais ninguém perceba.

Nem luzes, nem artifícios, nem votos de circunstância. Nem alegrias encenadas, nem subversão dos motivos originais. Apenas o silêncio. Apenas a compreensão das limitações e da transitoriedade, apenas o apreço pelo milagre da vida.

E um espaço para recordar os que se foram, os que ajudaram a ser quem somos e que, achando que já tinham comprido a sua missão, partiram.

E a vontade de agradecer os que, entretanto, chegaram e, puros e felizes, têm vindo juntar-se a todos quantos estão unidos pelo coração.

Natal. Pouco mais que isto, não é?


Presépio feito com sacos, plásticos, caixa de papelão, redes, orégãos e um Menino Jesus - numa rua de Cacilhas





Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

['Poema de Natal' de Vinicius de Moraes dito por Camila Morgado e Ricardo Blat]


19 dezembro, 2013

As palavras nuas que o silêncio veste


Que o silêncio desça sobre o meu corpo como um lençol de seda macia. Ou que toque ao de leve a minha pele como um corpo de homem pedindo para ser amado. Que as palavras que nasçam sejam apenas as mais límpidas, as mais verdadeiras e que a erva, as flores, as árvores sejam sempre muito puras, de um verde muito lavado e fresco e que os pássaros se cheguem a mim como se eu fosse sua irmã.

Que eu me sinta sempre desejada, querida, próxima de tudo o que é natural e limpo: a terra, o mar, o céu, os pássaros, os gatos, as pedras, a luz, as nuvens, a maresia, o suave silêncio, o doce abraço, o carnal beijo.


Pequeno pássaro passeando no Jardim do Ginjal

.


As palavras mais nuas
as mais tristes.
As palavras mais pobres
as que vejo
sangrando na sombra e nos meus olhos. 
Que alegria elas sonham, que outro dia,
para que rostos brilham? 
Procurei sempre um lugar
onde não respondessem,
onde as bocas falassem num murmúrio
quase feliz,
as palavras nuas que o silêncio veste. 
Se reunissem
para uma alegria nova,
que o pequenino corpo
de miséria
respirasse o ar livre,
a multidão dos pássaros escondidos,
a densidade das folhas, o silêncio
e um céu azul e fresco.

['Poema' de António Ramos Rosa dito por Diogo Fernandes] 


Não faz mal, abracem-me os teus olhos de extremo a extremo azuis


Ah, amor, a estranha perdição que nos arrasta para o fundo longínquo de um certo espelho dourado numa tarde imaginada, há tanto, tanto tempo. Vieste de longe, de outros tempos, vieste para logo te ires, curta perdição, remota, saudosa. 

Não. Não aconteceu. 

Perdeste-te de mim e eu de ti. E no fundo dos tempos ficou um abraço muito terno, um olhar muito doce e todos os nossos olhares ficaram fechados, perdidos, no fundo no meu coração. E do teu também, não é? 

Um pretérito muito perfeito. Não. Um passado imperfeito. Inconfessável.



Gato no Ginjal




Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria 
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros 
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes 
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso 
Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso  

['de profundis amamus' de Mário Cesariny dito por Guilherme Gomes]


17 dezembro, 2013

De que obscura força és a morada? Qual o crime de que foste testemunha?


Passo em silêncio e ninguém me vê. Espreito veleiros, gaivotas, ventos e ninguém me vê. Invento sombras, gritos, mistérios e ninguém mais os vê ou me vê.

Mas eu sei que, algures, sobre um muro, debaixo da copa de uma árvore, debaixo de uma rocha junto ao bater das ondas, no desvão de uma escada em ruínas, estará sempre um gato que me observa, me vigia, me acompanha.

Ser discreto, ambíguo, livre, vindo de outros tempos, que descende de deuses, de duendes, de sábios, o gato olha-me sem censuras, sem palavras. Sabe muitos segredos, tem muito mundo. No seu olhar eu vejo compreensão, cumplicidade e fraternidade. Reconhecemo-nos e não precisamos senão do nosso olhar para nos percebermos.


Gato num muro no Jardim do Ginjal




Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pelo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?


['Gato' de Alexandre O'Neill in Poesias Completas, 1951-1986 dita não sei exactamente por quem]

As muito feias que me perdoem mas beleza é fundamental



As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República [Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Qu tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da [aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai-e dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) e também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem [saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de 5 velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de [coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima [penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca [inferior
A 37° centígrados podendo eventualmente provocar queimaduras
Do 1° grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro da paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos
Ao abri-los ela não mais estará presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer [beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ele não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável. 

 ["Receita de Mulher" de e na voz de: Vinicius de Moraes]

15 dezembro, 2013

Às vezes, tanto, que o meu sonho louco voava das estrelas à mais rara


O chão que piso quando ando com a cabeça nas nuvens parece-se com um céu cheio de estrelas. Não me cansa viver. A vida é um imenso sonho que percorro, abrindo portas, descobrindo jardins, inventando labirintos de desejo e paixão, infinita descoberta, infinito mar de afectos e maravilhas. Olho o chão que piso e as pedras são constelações ou guias e por elas vou, sem me cansar, sem descrer. Tantos os sonhos, tantas as estrelas, tanta a luz.


Caminho no Ginjal junto à Fonte da Pipa





Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
Comecei a viver sem esperança...
E venha a morte quando
Deus quiser.  
Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco
Voava das estrelas à mais rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se conformara.  
Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;
Se quero, é só enquanto apenas quero;
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar. . .
E venha a morte quando Deus quiser. 
Mas, com isto, que têm as estrelas?
Continuam brilhando, altas e belas. 

[Sabedoria de José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo' dito por Bruno Huca]

A presença mais pura


Sou uma mulher que se desfaz de sombras e, vestida de sol, caminha sobre as árvores, entre pássaros, ramos, folhagens, nuvens, horizontes, palavras soltas.

Não tenho peso nem penas nem arrependimentos. Percorre-me o sangue e a pele apenas a vontade de ser e a ilusão de poder espalhar sonhos, alegrias, afectos.

De mim nunca ninguém perguntará 'a que distância deixou aquela mulher o coração?' porque o trago sempre à vista no peito, nas mãos, nas palavras que digo.

Mesmo vocês que estão tão longe de mim o sentem, não sentem? Não ouvem como ele pulsa enquanto vos escrevo estas palavras? 

Mesmo não sabendo o vosso nome, é em cada um de vós que penso quando voo pelos espaços, atravesso a noite e, cheia de mar e de luz, vou pousar junto a cada um de vocês, meus queridos Leitores.


Lisboa e o Tejo vistos do pequeno Jardim do Ginjal




Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?» 
A altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um 'não esquecer' fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome
Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste
o coração?»


['A presença mais pura' de José Tolentino Mendonça dito por Guilherme Gomes] 


13 dezembro, 2013

Foi-se injectando a presença a seu lado numa casa, seu íntimo numa viela, sua face numa fachada.


As palavras que penso enquanto caminho entre o rio e as paredes gastas destas casas em ruínas onde apenas um ou outro gato vêm espreitar perdem-se dentro do meu corpo, pétalas caídas, ou evadem-se de mim e vão impregnar-se nas rugas que o tempo desenha na pele destas casas esventradas?


Gato na entrada de uma casa no Ginjal




Passeando presente dela
pelas ruas de Sevilha,
imaginou injetar-se
lembranças, como vacina,

para quando fosse dali
poder voltar a habitá-las,
uma e outras, e duplamente,
a mulher, ruas e praças.

Assim, foi entretecendo
entre ela, e Sevilha fios
de memória, para tê-las
num só e ambíguo tecido;

foi-se injetando a presença
a seu lado numa casa,
seu íntimo numa viela,
sua face numa fachada .

Mas desconvivendo delas,
longe da vida e do corpo,
viu que a tela da lembrança
se foi puindo pouco a pouco;

já não lembrava do que
se injetou em tal esquina,
que fonte o lembrava dela,
que gesto dela, qual rima.

A lembrança foi perdendo
a trama exata tecida
até um sépia diluído
de fotografia antiga. 
Mas o que perdeu de exato
de outra forma recupera:
que hoje qualquer coisa de um
traz da outra sua atmosfera.

['O profissional da memória" de João Cabral de Melo Neto in "Museu de tudo", poesia dita por Chico Buarque]


Aqui no meio de nós une toute petite lumiére, just a little light, una piccola…em todas as línguas do mundo uma pequena luz bruxuleante brilhando incerta mas brilhando aqui no meio de nós



Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumiére
just a little light
una piccola…em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a advinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
Indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
No meio de nós.
Brilha.


('Uma pequenina luz bruxuleante' de Jorge de Sena in FIDELIDADE, aqui dita por Catarina Guerreiro)

11 dezembro, 2013

Palavras que nos transportam aonde a noite é mais forte, ao silêncio dos amantes abraçados contra a morte.




Há Palavras que Nos Beijam


Há palavras que nos beijam 
Como se tivessem boca. 
Palavras de amor, de esperança, 
De imenso amor, de esperança louca. 

Palavras nuas que beijas 
Quando a noite perde o rosto; 
Palavras que se recusam 
Aos muros do teu desgosto. 

De repente coloridas 
Entre palavras sem cor, 
Esperadas inesperadas 
Como a poesia ou o amor. 

(O nome de quem se ama 
Letra a letra revelado 
No mármore distraído 
No papel abandonado) 

Palavras que nos transportam 
Aonde a noite é mais forte, 
Ao silêncio dos amantes 
Abraçados contra a morte.



Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'


Poema dito por Luís Gaspar


*


Cristina Branco interpreta 'Há palavras que nos beijam'


Mas se o rapaz mo pedir - mãe, dou-lho ou não?



Canção


Tinha um cravo no meu balcão;
Veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?

Sentada, bordava um lenço de mão;
Veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?

Dei um cravo e dei um lenço,
Só não dei o coração;
Mas se o rapaz mo pedir
- mãe, dou-lho ou não?


Eunice Muñoz diz Eugénio de Andrade


05 dezembro, 2013

E que a minha loucura seja perdoada porque metade de mim é amor e a outra metade também.


Metade de mim é partida, metade de mim é saudade. Metade de mim é abrigo mas a outra metade é cansaço. Metade de mim é o que eu grito mas a outra metade é silêncio.

E que a minha loucura seja perdoada.




Que a força do medo que tenho
não me impeça de ver o que anseio
que a morte de tudo em que acredito
não me tape os ouvidos e a boca
pois metade de mim é o que eu grito
mas a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe
seja linda ainda que tristeza
que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
mesmo que distante
porque metade de mim é partida
mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que falo
não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor
apenas respeitadas como a única coisa
que resta a um homem inundado de sentimento
porque metade de mim é o que ouço
mas a outra metade é o que calo

Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz que eu mereço
que essa tensão que me corrói por dentro
seja um dia recompensada
porque metade de mim é o que penso
e a outra metade um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste
que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
que me lembro ter dado na infância
porque metade de mim é a lembrança do que fui
e a outra metade não sei

Que não seja preciso mais que uma simples alegria
pra me fazer aquietar o espírito
e que o teu silêncio me fale cada vez mais
porque metade de mim é abrigo
mas a outra metade é cansaço

Que a arte nos aponte uma resposta
mesmo que ela não saiba
e que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
porque metade de mim é platéia
e a outra metade é a canção

E que a minha loucura seja perdoada
porque metade de mim é amor
e a outra metade também.


[Pedro Lamares diz Metade de Oswaldo Montenegro]

*


Metade dita pelo próprio Oswaldo Montenegro.



04 dezembro, 2013

A flor maior do mundo - história dita por José Saramago


Flores para todos os meninos, flores para Saramago, flores para todas as pessoas que gostam de flores, flores para todas as pessoas que gostam de crianças, flores para todas as pessoas que gostam de pessoas. E, quem diz flores, diz afectos, palavras, pontes, mil sóis, mil sonhos.

Flores minhas para vós, meus queridos Leitores. 



Se as histórias para crianças fossem lidas pelos adultos, a flor maior do mundo seria capaz de levantar o mundo do chão.

[Palavras de jrd num comentário aqui abaixo]
*

03 dezembro, 2013

E desfolhava ao dançar o corpo, que lhe tremia num ritmo que ele sabia que os deuses devem usar.


Tenho as mãos cheias de frutos proibidos e desses frutos faço oferendas ao rio pedindo que me traga um deus que me desafie, que lave a minha serenidade, que a leve, que me inquiete, que me levante no ar.

Desfolho-me e desenlaço-me e nua ofereço o meu corpo aos sonhos e danço doces melodias e canto palavras bravas, e peço graças e noites e fontes de onde escorra a mais interdita poesia.

Todos os dias, todas as noites peço, traz-me, traz-me um green god, que me faça tremer, que me faça gemer, que me faça querer. Voar.


Numa das pequenas praias do Ginjal



Green God dito pelo próprio Eugénio de Andrade


                                     Trazia consigo a graça
                                     das fontes quando anoitece.
                                     Era um corpo como um rio
                                     em sereno desafio
                                     com as margens quando desce.
.
                                     Andava como quem passa
                                     sem ter tempo de parar.
                                     Ervas nasciam dos passos,
                                     cresciam troncos dos braços
                                     quando os erguia no ar.
.
                                     Sorria como quem dança.
                                     E desfolhava ao dançar
                                     o corpo, que lhe tremia
                                     num ritmo que ele sabia
                                     que os deuses devem usar.
.
                                     E seguia o seu caminho,
                                     porque era um deus que passava.
                                     Alheio a tudo o que via,
                                     enleado na melodia
                                     duma flauta que tocava. 

                                               ['Green God' de Eugénio de Andrade in 'As mãos e os frutos'] 


01 dezembro, 2013

Aline Frazão & Dino D'Santiago interpretam Petit Pays



Homenagem a Cesária Évora, em Berlim 
Aline Frazão de Angola e de  Dino D'Santiago de Cabo Verde

Aline Frazão - voz
Dino D'Santiago - voz
Carlos Mendes - guitarra

28 novembro, 2013

Quando me beija, há um pássaro espavorido que deixa um arrepio nos meus lábios secos


Subo ao mais alto do misterioso castelo que está sobre a colina e por lá fico. Também o vento entra e fica, tal como as gaivotas que entram e ficam, e a luz que entra e fica, e o mesmo com a noite. Este é o castelo de quem não tem mais para onde ir. Tanta noite agarrada às paredes, escondida nos recantos. É lá que me abrigo quando nada mais tenho para tapar a minha saudade.

Pelos corredores há rosas secas espalhadas, restos de música, perfumes antigos. Aqui nos escondíamos do mundo no nosso tempo de amantes interditos. Nessa altura, abraçados, espreitávamos o mundo pela janela, eternos, inconscientes.

Esse tempo acabou. Dele resta apenas um fio de voz, estas minhas palavras gastas, secas, gretadas.

Disseste um dia, lembras-te?: os teus lábios são uma rosa húmida. Murchou essa saudosa rosa e em seu lugar há apenas pássaros assustados que gritam e tremem e arrastam as vencidas asas pelo chão de cada vez que sentem a respiração de alguém que passe à porta.

Relembro as brincadeiras junto às fontes, a nudez que mutuamente nos oferecíamos, sexos inocentes, risos inaugurais, e sempre muita luz. 

Por vezes tenho medo, medo da solidão, medo de intrusos. Penduro, então, punhais de marfim à cintura. Com eles trespasso o tempo nesta luta absurda em que me debato contra ideias vagas, sonhos perdidos, beijos que há muito se afogaram no mar, palavras de cujo sentido para sempre me perdi.



[Abaixo da casa abandonada sobre o Tejo, um poema de alguém que tem andado arredio, José Agostinho baptista. E, logo a seguir, mais uma brilhante interpretação do violinista Benjamim Schmid]


Edifício abandonado numa das encostas do Ginjal



                                              Em qualquer lugar, há alguém que caminha
                                              para as fontes,
                                              com um cântaro de argila pura.
                                              Uma mulher,
                                              uma rapariga com perfumes de sândalo, no
                                              misterioso castelo sobre a colina?
                                              Por que brilham os punhais de marfim da
                                              sua cintura?

                                              Não sei.
                                              Quando me beija, há um pássaro espavorido
                                              que deixa um arrepio nos meus lábios secos,
                                              com rugas excessivas.

                                              Mas quem és tu, meu amor, o que fazes aqui,
                                              para onde me levas,
                                              com todas estas rosas que morrem tão
                                              depressa como
                                              as palavras que trocámos num porto de âncoras
                                              impossíveis?


['Em qualquer lugar' de José Agostinho Baptista in 'Esta voz é quase o vento']


Benjamin Schmid interpreta Bazzini - Le Ronde des Lutins




27 novembro, 2013

O peito esquece a hora em fuga


Está frio, um vento frio. A vinha virgem está em fogo mas não vem dela calor suficiente para aquecer estes dias tão frios. A luz que há no ar é azul, gélida, os tempos são de fuga, de peitos vazios, de corações deixados ao abandono. As mãos estão desoladas, caídas, o olhar fechado, ausente. 

Onde o olhar alcança apenas há pó, lembranças desfeitas. 

Mas, sabes velho leão dos mares?, não tarda as ruas encher-se-ão de novo e todos juntos cantaremos, unidos e levantados. Já vai sendo tempo das cidades vibrarem com a emoção dos renascimentos. 

Devemos essa força ao exemplo das árvores que resistem às intempéries, que se mantêm de pé, livres, encerrando toda a força do vento, apesar da tristeza das chuvas que, por vezes, vêm chorar no seu regaço. 

Ressurgiremos um dia destes, paredes em flor, corações ao alto, faces erguidas, mãos abertas, olhar lavado. Ressurgiremos. Ressurgiremos.



[Abaixo da Boca do vento, mais um belo poema de Soledade Santos e, logo a seguir, mais uma magnífica interpretação de Benjamin Schmid]



Uma parede coberta de vinha virgem na Boca do Vento
(sobre o Ginjal, com Lisboa do lado de lá)


                                              Sopra um vento nítido erguendo
                                              nuvens de pó na serra ao longe e vibra
                                              a alegre conversação das folhas.
                                              Árvores acodem
                                              de todos os sítios da lembrança e do olhar agora.
                                              O peito esquece a hora em fuga,
                                               fala o vento    a luz     o corpo imediato.


['Exterior' de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra']


A Vienna Philharmonic Orchestra com Benjamin Schmid no violino interpreta Fritz Kreisler - Concerto in One Movement a partir do Concerto para Violino de Paganini




26 novembro, 2013

Por dentro do perfume das flores já não anda a tua boca


Onde andas, amor meu, que já não beijas os meus lábios? Onde andas que já não vens cheirar a curva do meu pescoço, que já não vens comigo olhar as gaivotas? Que já não me embalas nos teus braços nem me levas a ver as estrelas?

Achas bem deixares-me assim, sem chão, sem amparo, sem o teu calor, sem o teu amor?

Passeio por aqui e sigo o voo solitário da gaivota. Sou eu que por ali ando, procurando-te, chamando por ti, soltando suplicantes gritos, chorando lágrimas que ninguém vem secar?

Ai amor que me deixaste tão triste.

Por aqui vou, gelada, sozinha. Mais à frente um cão abandonado olha-me, oferecendo-me a sua companhia. Mas afasto-me. Não posso ficar com qualquer um porque não é qualquer um que pode ocupar o teu lugar. Porque me abandonaste? Porque não esperaste por mim? Pudesse eu voar para te procurar pelos céus, pelos mares, pelos montes, pelos infinitos labirintos onde te perdeste de mim, amor. Ai tão triste que estou, amor.



[Abaixo do Ginjal envolto num frio frio e perfumado a maresia, um poema de José Gomes Ferreira e, logo abaixo, mais uma grande interpretação do violinista Benjamin Schmid]



Manhã fria no Ginjal


                                         
                                          Por dentro do perfume das flores
                                          já não anda a tua boca
                                          a beijar as estrelas
                                          na cor do silêncio
                                          - para além do gosto agudo das mucosas.

                                          Agora no luar caído
                                          só uma cadela de gelo
                                          morde o perfume das rosas...


                                          [(Desvio lírico do problema) de José Gomes Ferreira in Poesia III]


25 novembro, 2013

Benjamin Schmid, com a Vienna Philharmonic Orchestra, interpreta Erich Wolfgang Korngold - Concerto para Violino




E, sem razão, repito a todo o instante nos meus lábios cansados esse nome que ainda me falta em quase tudo


Foste-te com o frio e deixaste-me sem o teu calor na cama em que antes nos embalávamos. Passeio agora sozinha junto ao rio e, onde antes havia a tua mão, agora há apenas a saudade da tua companhia. O rio turva-se, o azul escurece, são nuvens, são recordações, são sombras.

Caminho e, em surdina ou nem isso, vou dizendo o teu nome, vou chorando as minhas mágoas. Aqui ninguém sabe o que se passou na minha vida. Sou orgulhosa demais para mostrar os meus sentimentos. Mas, aqui, onde ninguém me ouve, choro em silêncio a dor e as saudades, tão insuportáveis. Porque te foste? Porque me deixaste aqui sem ti? Nunca antes pensei que isto me fosse acontecer. Nos meus sonhos, eu e tu éramos um para todo o sempre.

Mas deixa.

Há mais marés que marinheiros. De onde vieste, há mais como tu. Não tenho pressa. Não nasci para caminhar sozinha nem para me deitar sozinha na cama. Nada a fazer: sou assim. E sei que não caminharei sozinha por muito tempo.

Talvez um dia, quando eu caminhar acompanhada pela sombra da tua memória e chame o teu nome, seja um outro a responder à chamada. E talvez venha rodeado de palavras voando à sua volta, talvez venha para me dizer ao ouvido poemas de amor e para me aquecer nas noites frias em que a saudade me gela. Talvez, então, eu o deixe entrar na minha vida, na minha cama, no meu corpo.

Por isso, se te foste, deixa-te estar onde estás e não voltes. Vou esquecer o teu nome.



[Abaixo de um rio azul como uns lençóis muito frios, recebo uma vez mais Maria do Rosário Pedreira que sempre será aqui muito bem vinda. Logo a seguir o violino de Benjamin Schmid faz-nos uma excelente companhia]


O Tejo este domingo avistado do Ginjal, toldado pelas nuvens que fazem sombra nas águas



                                          Sei a nuvem de cinza que turva o
                                          oceano, a sombra que desfigura a
                                          minha mão vazia. Sei as paisagens
                                          que um dia se deitaram entre nós
                                          para sempre adormecidas. Sinto

                                          a dor estendida sobre a memória
                                          do teu corpo na cama que ficou
                                          aberta como uma ferida. E, sem
                                          razão, repito a todo o instante nos
                                          meus lábios cansados esse nome
                                          que ainda me falta em quase tudo.



[Poema de Maria do Rosário Pedreira in 'Nenhum Nome Depois']


21 novembro, 2013

Jorge Palma e Rui Reininho, dois 'ganda' malucos, interpretam Frágil




o turvo e torpe véu sedento do desejo


Esta quarta feira levantei-me com o nascer do sol, o rio suave banhado a rosa, um ou outro barquinho branco como um brinquedo. Tive vontade de me pôr a fotografar, tão bela a vista que me banhava o olhar. Mas estava com pressa, não o pude fazer. 

Depois, na estrada, o chão em vez de verde estava prateado, coberto pela frialdade da noite. Fui deslizando pela manhã, acompanhada pela música na rádio, a antena 2, e pelos meus sonhos. Sozinha no carro, era como se a noite ainda ali se estendesse suave ao meu lado, sonhos bons, metáforas delicadas, e eu vou andando, olhando a paisagem, os campos, as casas, as árvores. Tão agradável, tanta serenidade.

Penso muitas vezes que talvez eu fosse capaz de viver retirada, no campo, entre árvores, contemplando a terra - uma vez são flores, agora rebentam tenros cogumelos outras vezes são folhas, ramos, musgos, pedras. O que sou eu mais do que qualquer destas coisas? Sinto-me tão próxima de tudo isto. Tenho mais afinidades com um cedro, com o alecrim, com o musgo verde e macio, do que com tanta gente que por aí anda. Sentar-me num recanto, acolher-me aos braços de uma árvore, deixar-me estar. Que bom deveria ser, que desejo gostoso este o meu.



[Abaixo de um resto de árvore, como se fosse um resto de pele, um poema muito belo de Armando Silva Carvalho. Logo abaixo um momento de graça e generosidade: o grande Jorge Palma com dois jovens: Encosta-te a mim.]


A pele seca de um eucalipto caída na estrada que leva ao Ginjal


                                                 
                                                      Acordo
                                                      mais um dia
                                                      com ele o turvo e torpe véu sedento

                                                      do desejo.

                                                      Não me doem as costas
                                                      a matéria dos sonhos ainda me persegue
                                                      translúcida no quarto.

                                                      Só o peso do chão
                                                      do negro chão da espera
                                                      se estende espesso a meu lado como mundo
                                                      e metáfora.



['Manhã' de Armando Silva Carvalho in 'a vista desarmada, o tempo largo', Antologia, Poetas em homenagem a Vasco Graça Moura]



Jorge Palma com o Nuno e o Salvador (da OT 3) interpretam "Encosta-te a Mim"


19 novembro, 2013

Se tiveres de escolher um reino escolhe o relento


A noite. Meu ninho, meu aconchego. A noite, meu reino.

Quando, como hoje, me sento ao volante e percorro quilómetros e quilómetros - e sozinha vou ouvindo a música, vendo a paisagem, e sei que ainda me esperam horas de trabalho e que ainda falta tanto para chegar a casa - penso que, não tarda, cairá a noite e que, na noite, envolvida pelo veludo macio da escuridão, caminharei rente ao rio. E logo sinto uma expectativa que me anima, uma quietude que me serena.

Depois, mal vejo a hora de me mudar e me dirigir para os cais, para essas fronteiras de onde os solitários espreitam os rios, e enfrentam a frialdade do relento, e enfrentam o medo da solidão, e de onde se vê como os navios deixam um rasto silencioso e branco na negrura das águas.

O ar de noite, rente ao rio, está muito frio. Quase ninguém. As luzes que se reflectem no rio são um alabastro de prata, as pedras da calçada ficam quase douradas, a mulher que sozinha, num banco, de frente para a grande cidade, quase parece feita de pedra macia - e tudo me parece acolher.

Olho com delongas este meu canto, este meu pedaço de mim. Esta é também a minha casa.

Daqui a nada, a beira do rio acolherá um novo dia. E eu, deslumbrada, assistirei ao seu nascimento aqui da janela de onde espreito o tempo que passa. A minha casa é, assim, o rio e a janela de onde o espreito, o meu mundo feito de pequenos instantes, eternos e sem nome.



[Abaixo de Lisboa e do Tejo avistadas numa noite muito fria, recebo, uma vez mais, o Poeta Padre José Tolentino Mendonça. A seguir, Jorge Palma e toda a sua emoção com acompanhamento de João Gil]


No cais de Cacilhas, sobre o Tejo, de frente para Lisboa



                                                           Se tiveres de escolher um reino
                                                           escolhe o relento
                                                           a noite tem a brancura do alabastro
                                                           ou mais extraordinária ainda

                                                           Ao que vem depois de ti
                                                           cede o instante
                                                           sem pronunciar
                                                           seu nome


['Versões do mundo' de José Tolentino Mendonça in 'A noite abre meus olhos']



Jorge Palma e João Gil interpretam 'Senta-te aí'



Letra: João Monge 
Música: João Gil 

17 novembro, 2013

Esta mão que escreve a ardente melancolia


Com estas minhas mãos escrevo. Delas nascem palavras que não chegam a passar pela minha cabeça. Não as filtro, não as controlo. Soltam-se de mim, livres, voadoras. Quanto mais idade tenho, mais livre me sinto, mais livres as minhas mãos, mais livres as minhas palavras. 

Estas minhas mãos que deslizam pelo teclado é como se bordassem, é como se pintassem, e eu olho admirada para o que delas nasce, palavras que, entre elas, formam flores, nuvens, pássaros, barcos, sombras. São palavras que não me pertencem, palavras que olham admiradas as cores, a música, as lágrimas que delas se soltam.

O mundo é largo, por vezes assustador, por vezes muito belo e as minhas palavras espreitam-no, ora tímidas, ora em festa. Um céu imenso nasce do rio e avança sobre mim, vem carregado de luz e de palavras. 

(Tantas saudades, tantas. Tento iludi-las com palavras e nisso as minhas mãos são exímias, disfarçam tão bem a melancolia.)

É que, sabes, há também o coração e esse não me obedece mesmo. Tantas vezes ele sai do peito para se aninhar na concha das mãos, para que as palavras transportem a sua batida, o seu calor, o seu amor. 

(Tantas, tantas saudades. Não sabes, por acaso, como precisa de carinho o meu coração? Vem, volta, fala comigo, diz-me baixinho coisa nenhuma.) 



[Debaixo de um céu imenso, quase irreal, está parte de um poema imenso do Poeta imenso, Herberto Helder. A seguir, um duo inesperado, Jorge Palma e Pierre Aderne, e uma canção de amor]


O Tejo 


                                               

                                                 Esta mão que escreve a ardente melancolia
                                                 da idade
                                                 é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
                                                 que à imagem do mundo aberta de têmpora
                                                 a têmpora
                                                 ateia a sumptuosidade do coração.


[Excerto de '(a carta da paixão)' de Herberto Helder in Photomaton & Vox]



Pierre Aderne & Jorge Palma interpretam 'Preciso mentir que te amo'


13 novembro, 2013

Nunca se sabe quando estamos num lugar pela última vez - (acrescentado com os preciosos contributos de dois leitores)


De cada vez que vivo um instante, vivo como se pudesse não voltar a vivê-lo. Ainda há pouco. Já era quase noite, o rio escuro, um céu que se despedia furtivamente do dia, barcos que chegam e partem sem parar, gente apressada, carregada, silenciosa. O ar frio. Um cheiro a castanhas assadas, um fumo perfumado envolvendo as gentes devoradas por vidas difíceis.

E eu no meio de todos. Transparente como sempre. Passo por entre as pessoas, detenho-me tocada pela admiração que sinto pela sua determinação e força, vejo como correm vergadas pelo cansaço e pelos sacos, andam sempre tão carregadas. Não há crianças a esta hora. Faz tanta falta o riso das crianças nestas noites escuras junto ao rio. 

Ninguém me vê enquanto por ali ando. 

E penso. Tenho que fixar dentro de mim estes momentos. Amanhã podem não ser estas as pessoas, podem passar de uma outra forma. Ou posso eu não poder voltar aqui a misturar-me com estes meus iguais.

Depois continuo o meu caminhar, levada pela maresia nocturna, tão fresca, tão limpa, a noite a tombar carregada de saudades. Um casal abriga-se no muro, abraça-se enquanto olha a magnífica cidade. Talvez pensem como eu que têm que gravar na sua memória esta imagem de uma beleza tão efémera, de uma tal quietude, de uma elegância quase excessiva. Ou podem temer que amanhã a mulher não possa sair de casa, ou que o homem possa não chegar a tempo.

E posso eu não poder estar aqui para testemunhar o amor que os une neste escurecer tão frio. 

A vida é um breve instante e nem sempre acaba bem. 

Quantos abraços não ficam por dar, quantos amores não ficam por confessar, quantos, quantos. Tantas as vezes em que os instantes se interrompem para nunca mais. Por isso, porque amanhã posso também não poder estar aqui a escrever palavras como estas, vos peço que sejam fiéis depositários dos afectos que por aqui, enquanto posso, vou partilhando convosco.

E que dure por muito tempo este nosso breve encontro.



[Abaixo do casal que olha Lisboa, a bela, mais um poema de Inês Lourenço. A seguir a voz suave de Waldemar Bastos.]


Em Cacilhas, de frente para Lisboa


                                                         Nunca se sabe
                                                         quando estamos num lugar
                                                         pela última vez. Numa casa
                                                         que vai ser demolida, numa sala
                                                         provisória que vai encerrar, num velho
                                                         café que mudará de ramo, como
                                                         página virada jamais reaberta, como
                                                         canção demasiado gasta, como
                                                         abraço tornado irrepetível, numa
                                                         porta a que não voltaremos.


                                                         ['Sala provisória' de Inês Lourenço in 'Câmara Escura']

***

Quantas vezes caminhamos entre iguais,
e o silêncio que nos une tem a dimensão de mil palavras que se perderam.
Na volatilidade dos nossos gestos e olhares,
 atravessamos os sentimentos alheios
e vivemos a empatia dos seus sonhos e desejos. 
No interior das nossas ausências,
nunca estamos verdadeiramente sós.  
Passamos e repassamos a ternura das nossas sombras pela existência circundante,
mas permanecemos os mesmos seres sensíveis e solidamente etéreos. 
Os lugares permanecem para além da nossa presença.
Apenas a nossa memória resistirá à verdadeira ausência
e reconstruirá mil futuros em cada passado esquecido.
Ubíquos na imaginação,
jamais esqueceremos a vaga sinestesia das vivências e dos lugares dum passado evanescente.

[De dbo num comentário aqui abaixo]

***

se eu adormecer e não acordar diz-lhes que o sol é imenso
e regressa em cada madrugada
que o mar, essa grande paixão, será sempre um mistério
de fúria e mansidão 
que o Outono por mais belo e dourado
traz o vento
a debandada
o prenúncio do fim 
e que eu não voltarei mais
mas as palavras que deixo
(mal arrumadas, eu sei)
desajeitadamente falarão por mim

[De Era uma Vez num comentário aqui abaixo]