Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

15 dezembro, 2013

A presença mais pura


Sou uma mulher que se desfaz de sombras e, vestida de sol, caminha sobre as árvores, entre pássaros, ramos, folhagens, nuvens, horizontes, palavras soltas.

Não tenho peso nem penas nem arrependimentos. Percorre-me o sangue e a pele apenas a vontade de ser e a ilusão de poder espalhar sonhos, alegrias, afectos.

De mim nunca ninguém perguntará 'a que distância deixou aquela mulher o coração?' porque o trago sempre à vista no peito, nas mãos, nas palavras que digo.

Mesmo vocês que estão tão longe de mim o sentem, não sentem? Não ouvem como ele pulsa enquanto vos escrevo estas palavras? 

Mesmo não sabendo o vosso nome, é em cada um de vós que penso quando voo pelos espaços, atravesso a noite e, cheia de mar e de luz, vou pousar junto a cada um de vocês, meus queridos Leitores.


Lisboa e o Tejo vistos do pequeno Jardim do Ginjal




Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?» 
A altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um 'não esquecer' fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome
Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste
o coração?»


['A presença mais pura' de José Tolentino Mendonça dito por Guilherme Gomes] 


2 comentários:

  1. Como um leve bater de asas que anuncia esse jeito manso de voar.
    Abraço

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    1. Sim, é isso. Estava lá 'in heaven' a passear sozinha ao lusco-fusco e ouvia os barulhos que vinham de dentro das árvores. E ia devagarinho para não os assustar. Mas uns deram por mim e levantaram-se, saíram a bater as asas, mas foi só um breve voo. Fiquei sossegada e eles voltaram, um voo manso.

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