Passo em silêncio e ninguém me vê. Espreito veleiros, gaivotas, ventos e ninguém me vê. Invento sombras, gritos, mistérios e ninguém mais os vê ou me vê.
Mas eu sei que, algures, sobre um muro, debaixo da copa de uma árvore, debaixo de uma rocha junto ao bater das ondas, no desvão de uma escada em ruínas, estará sempre um gato que me observa, me vigia, me acompanha.
Ser discreto, ambíguo, livre, vindo de outros tempos, que descende de deuses, de duendes, de sábios, o gato olha-me sem censuras, sem palavras. Sabe muitos segredos, tem muito mundo. No seu olhar eu vejo compreensão, cumplicidade e fraternidade. Reconhecemo-nos e não precisamos senão do nosso olhar para nos percebermos.
Gato num muro no Jardim do Ginjal |
Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pelo, frio no olhar!
De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?
['Gato' de Alexandre O'Neill in Poesias Completas, 1951-1986 dita não sei exactamente por quem]
Mas não são pardos os gatos para quem conhece a noite e o lugar...
ResponderEliminarSão. Quase todos. Mas há as excepções. As perigosas excepções, os perigosos abismos. Os que não são pardos.
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