Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

13 dezembro, 2013

Foi-se injectando a presença a seu lado numa casa, seu íntimo numa viela, sua face numa fachada.


As palavras que penso enquanto caminho entre o rio e as paredes gastas destas casas em ruínas onde apenas um ou outro gato vêm espreitar perdem-se dentro do meu corpo, pétalas caídas, ou evadem-se de mim e vão impregnar-se nas rugas que o tempo desenha na pele destas casas esventradas?


Gato na entrada de uma casa no Ginjal




Passeando presente dela
pelas ruas de Sevilha,
imaginou injetar-se
lembranças, como vacina,

para quando fosse dali
poder voltar a habitá-las,
uma e outras, e duplamente,
a mulher, ruas e praças.

Assim, foi entretecendo
entre ela, e Sevilha fios
de memória, para tê-las
num só e ambíguo tecido;

foi-se injetando a presença
a seu lado numa casa,
seu íntimo numa viela,
sua face numa fachada .

Mas desconvivendo delas,
longe da vida e do corpo,
viu que a tela da lembrança
se foi puindo pouco a pouco;

já não lembrava do que
se injetou em tal esquina,
que fonte o lembrava dela,
que gesto dela, qual rima.

A lembrança foi perdendo
a trama exata tecida
até um sépia diluído
de fotografia antiga. 
Mas o que perdeu de exato
de outra forma recupera:
que hoje qualquer coisa de um
traz da outra sua atmosfera.

['O profissional da memória" de João Cabral de Melo Neto in "Museu de tudo", poesia dita por Chico Buarque]


2 comentários:

  1. A maior voz do Brasil nem precisa de cantar para nos deleitar com as palavras do maior poeta brasileiro.
    (não sei como é que este poste me tinha escapado)

    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Há uma densidade na voz dele que torna ainda mais sentidas as palavras que ele diz.

      Eliminar