De cada vez que vivo um instante, vivo como se pudesse não voltar a vivê-lo. Ainda há pouco. Já era quase noite, o rio escuro, um céu que se despedia furtivamente do dia, barcos que chegam e partem sem parar, gente apressada, carregada, silenciosa. O ar frio. Um cheiro a castanhas assadas, um fumo perfumado envolvendo as gentes devoradas por vidas difíceis.
E eu no meio de todos. Transparente como sempre. Passo por entre as pessoas, detenho-me tocada pela admiração que sinto pela sua determinação e força, vejo como correm vergadas pelo cansaço e pelos sacos, andam sempre tão carregadas. Não há crianças a esta hora. Faz tanta falta o riso das crianças nestas noites escuras junto ao rio.
Ninguém me vê enquanto por ali ando.
E penso. Tenho que fixar dentro de mim estes momentos. Amanhã podem não ser estas as pessoas, podem passar de uma outra forma. Ou posso eu não poder voltar aqui a misturar-me com estes meus iguais.
Depois continuo o meu caminhar, levada pela maresia nocturna, tão fresca, tão limpa, a noite a tombar carregada de saudades. Um casal abriga-se no muro, abraça-se enquanto olha a magnífica cidade. Talvez pensem como eu que têm que gravar na sua memória esta imagem de uma beleza tão efémera, de uma tal quietude, de uma elegância quase excessiva. Ou podem temer que amanhã a mulher não possa sair de casa, ou que o homem possa não chegar a tempo.
E posso eu não poder estar aqui para testemunhar o amor que os une neste escurecer tão frio.
E posso eu não poder estar aqui para testemunhar o amor que os une neste escurecer tão frio.
A vida é um breve instante e nem sempre acaba bem.
Quantos abraços não ficam por dar, quantos amores não ficam por confessar, quantos, quantos. Tantas as vezes em que os instantes se interrompem para nunca mais. Por isso, porque amanhã posso também não poder estar aqui a escrever palavras como estas, vos peço que sejam fiéis depositários dos afectos que por aqui, enquanto posso, vou partilhando convosco.
E que dure por muito tempo este nosso breve encontro.
[Abaixo do casal que olha Lisboa, a bela, mais um poema de Inês Lourenço. A seguir a voz suave de Waldemar Bastos.]
Em Cacilhas, de frente para Lisboa |
Nunca se sabe
quando estamos num lugar
pela última vez. Numa casa
que vai ser demolida, numa sala
provisória que vai encerrar, num velho
café que mudará de ramo, como
página virada jamais reaberta, como
canção demasiado gasta, como
abraço tornado irrepetível, numa
porta a que não voltaremos.
['Sala provisória' de Inês Lourenço in 'Câmara Escura']
***
Quantas vezes caminhamos entre iguais,
e o silêncio que nos une tem a dimensão de mil palavras que se perderam.
Na volatilidade dos nossos gestos e olhares,
atravessamos os sentimentos alheios
e vivemos a empatia dos seus sonhos e desejos.
No interior das nossas ausências,
nunca estamos verdadeiramente sós.
Passamos e repassamos a ternura das nossas sombras pela existência circundante,
mas permanecemos os mesmos seres sensíveis e solidamente etéreos.
Os lugares permanecem para além da nossa presença.
Apenas a nossa memória resistirá à verdadeira ausência
e reconstruirá mil futuros em cada passado esquecido.
Ubíquos na imaginação,
jamais esqueceremos a vaga sinestesia das vivências e dos lugares dum passado evanescente.
[De dbo num comentário aqui abaixo]
***
se eu adormecer e não acordar diz-lhes que o sol é imenso
e regressa em cada madrugada
que o mar, essa grande paixão, será sempre um mistério
de fúria e mansidão
que o Outono por mais belo e dourado
traz o vento
a debandada
o prenúncio do fim
e que eu não voltarei mais
mas as palavras que deixo
(mal arrumadas, eu sei)
desajeitadamente falarão por mim
[De Era uma Vez num comentário aqui abaixo]
ResponderEliminar:-)Não obstante ao Gingal volta-se sempre para recuperar o que se perdeu, mesmo sem deixar rasto
Cara UJM,
ResponderEliminarquantas vezes caminhamos entre iguais, e o silêncio que nos une tem a dimensão de mil palavras que se perderam.
Na volatilidade dos nossos gestos e olhares, atravessamos os sentimentos alheios e vivemos a empatia dos seus sonhos e desejos.
No interior das nossas ausências, nunca estamos verdadeiramente sós. Passamos e repassamos a ternura das nossas sombras pela existência circundante, mas permanecemos os mesmos seres sensíveis e solidamente etéreos.
Os lugares permanecem para além da nossa presença. Apenas a nossa memória resistirá à verdadeira ausência e reconstruirá mil futuros em cada passado esquecido.
Ubíquos na imaginação, jamais esqueceremos, a vaga sinestesia das vivências e dos lugares dum passado evanescente.
Olá dbo,
EliminarTão bom chegar aqui e ver as suas palavras que tanto me encantam. Uma vez mais cometi a ousadia de dar às suas palavras o jeito de um poema - e que bem que ele me soa.
Coloquei-o lá em cima.
Muito obrigada.
Também já estive a ver a graça do seu comentário no UJM.
Desejo-lhe também muita saúde e sorte e alegria e tudo de bom.
se eu adormecer e não acordar diz-lhes que o sol é imenso
ResponderEliminare regressa em cada madrugada
que o mar, essa grande paixão, será sempre um mistério
de fúria e mansidão
que o Outono por mais belo e dourado
traz o vento
a debandada
o prenúncio do fim
e que eu não voltarei mais
mas as palavras que deixo
(mal arrumadas, eu sei)
desajeitadamente falarão por mim
Olá Erinha,
EliminarQue poema tão bonito. E tão triste. Tenho uma pessoa de família que está mesmo muito mal e este seu poema parece uma despedida, talvez as palavras que ela diria se ainda pudesse falar mas já nem isso pode.
Quanto a si, apesar do desconforto (ui... que me dói só de pensar), nada de pensamentos tristes. Alegria é que é preciso: está a caminho de ficar como nova!
O seu poema está lá em cima, ao pé do dbo (estar ao pé de um médico é capaz de agora a deixar mais descansada...).
As rápidas melhoras e um abraço e beijinhos!!!!