Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

19 dezembro, 2013

Não faz mal, abracem-me os teus olhos de extremo a extremo azuis


Ah, amor, a estranha perdição que nos arrasta para o fundo longínquo de um certo espelho dourado numa tarde imaginada, há tanto, tanto tempo. Vieste de longe, de outros tempos, vieste para logo te ires, curta perdição, remota, saudosa. 

Não. Não aconteceu. 

Perdeste-te de mim e eu de ti. E no fundo dos tempos ficou um abraço muito terno, um olhar muito doce e todos os nossos olhares ficaram fechados, perdidos, no fundo no meu coração. E do teu também, não é? 

Um pretérito muito perfeito. Não. Um passado imperfeito. Inconfessável.



Gato no Ginjal




Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria 
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros 
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes 
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso 
Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso  

['de profundis amamus' de Mário Cesariny dito por Guilherme Gomes]


2 comentários:

  1. Palavras que nos deixam sem palavras.
    Um grande poema.

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    1. Sim, belas palavras. E que promissor 'Dizedor' (como ele se auto-designa) não é? Tão jovenzinho e que bem que ele já dia poesia.

      Tenho pena de ter tão pouco tempo para, eu própria, ter tão pouco tempo para apreciar com vagar o que escolho e que, antes, não conhecia.

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