Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 setembro, 2011

Metade de mim cavalo de mim mesma eu te domino


Não me dominas, não me debelas, não me retens, não me tens. Por vezes tentas, mas já devias ter percebido que isso não será possível, nunca.

Sou metade mulher, metade cavalo, parto em voo, sem rédeas.

Tentas conter-me com esporas. Pior ainda.

Combates-me, tentas segurar-me, educar-me, adestrar-me, tentas colocar-me o freio. Impossível.

Tentas então prender-me, receias que me perca no deserto, sobre as águas, no fundo do mar, no alto dos montes, atrás dos grandes pássaros. Mas sabes que sempre fugirei.

Preciso de espaço, de solidão, de me perder no meio das grandes cidades, de me deslumbrar junto a um mar aberto no qual se reflecte o luar, preciso de ser eu, eu toda, eu.

E então, livre, feliz, subtil sopro dentro de um poema, embalada pela emoção profunda da música mais limpa, inundada de claridade, dos perfumes da maresia, o olhar lavado, os braços abertos, sonhando voar ao lado dos veleiros, chamar-te-ei. Anda, vem para perto de mim, deita-te ao meu lado, dá-me a mão, sente a minha pele, ouve o meu coração, mistura-te comigo.

|.|.|.|

[Depois da leitura do poema de Sophia, desce um pouco mais, vem comigo, vem que vou mostrar-te aquilo de que estou a falar-te. Svetlana ex-machina sou eu] 

Junto ao Tejo, de frente para Lisboa, a Iluminada
(fotografia propositadamente encoberta)


Metade de mim cavalo de mim mesma eu te domino
Eu te debelo com espora e rédea

Para que não te percas nas cidades mortas
Para que não te percas
Nem nos comércios de Babilónia
Nem nos ritos sangrentos de Nínive

Eu aponto o teu nariz para o deserto limpo
Para o perfume limpo do deserto
Para a sua solidão de extremo a extremo

Por isso te debelo te combato te domino
E o freio te corta a espora te fere a rédea te retém

Para poder soltar-se livre no deserto
Onde não somos nós dois mas só um mesmo
No deserto limpo com seu perfume de astros
Na grande claridade limpa do deserto
No espaço interior de cada poema
Luz e fogo perdidos mas tão perto
Onde não somos nós dois mas só um mesmo


("No deserto" de Sophia de Mello Breyner Andresen in Obra Poética III)
 .

MÚSICA NO GINJAL - Svetlana Zakharova


Virtuosismo, elegância, elasticidade, ritmo, superação. Olho e vejo uma deusa mecânica - se pudesse aplicar a expressão, diria que Svetlana Zakharova nos aparece aqui como uma deusa ex machina.

Que mulher é esta que assim domina o companheiro, domina a situação, domina o espaço?

Que mulher é esta que afinal é assim que se funde com o companheiro, que assim oculta o espaço?


SVETLANA ZAKHAROVA


Svetlana Zakharova
nasceu em Louzk, na Ucrânia e
estudou na Escola de Ballet de Kiev e na Academia Vaganova.
Juntou-se ao Teatro Mariinski em 1996
e ao Bolshoi, como primeira bailarina, em 2003.

Andre Merkuriev
nasceu em Syktyvkar, na República de Komu
e estudou na Escola de Ballet Ufa.
Em 1997 juntou-se ao Teatro Mussorgsky, de S. Peterburg
e em 2002 mudou-se para o Mariinsky.
In The Middle Somewhat Elevated
é um bailado com música de Thom Willems
e coreografia de William Forsythe,
encomendado por Nureiev para o Ballet da Opera de Paris
onde foi estreado em 30 de Maio de 1987.

.

28 setembro, 2011

Promete ficares sempre junto a mim


Meu amor, meu amor. Fica sempre junto de mim. Meu amor. Sabes como sou. Sabes que toda eu sou paixão, corpo incendiado, loucura, voo, quentes abraços, mente largada. Segura-me. Abraça-me com força, e beija-me. E, nos momentos de delírio, se a noite for escura, se o futuro for distante, acende estrelas dentro de mim, deixa que o meu corpo em chama ilumine este mar, este céu. E diz-me, diz meu amor, diz que o tempo parou, diz que para sempre me terás nos braços, diz-me que ficarás sempre aqui, junto a mim, às vezes dentro de mim. Meu amor. Nunca me deixes desamparada.


[Em noite de mulheres em chamas, siga agora, por favor, para a sala abaixo, onde uma mulher se entrega a um fulgurante voo, a um fulgurante jogo: Natalia Osipova on fire]

Fim de tarde no Ginjal, mesmo rente ao Tejo

                           Promete ficares sempre
                           junto a mim
                           desconhecendo o tiro e o disparo

                           Confessa seres o fogo da paixão
                           enquanto
                           sou loucura    voo    e desamparo

                           E se ainda assim o delírio
                           for pouco
                           estrelas no corpo debruçado

                           Diz-me que o tempo parou
                           e no desvairo
                           jura ser pouco, não sendo necessário


                          ('Fogo' de Maria Teresa Horta in 'Poesia Reunida')

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MÚSICA NO GINJAL - Natalia Osipova

Mais uma bailarina nesta semana dedicada à grande dança. Natalia, tal como o vídeo nos mostra, explode em palco. Mais que voar, Natalia é de uma exuberância quase petulante, quase nos mostra como é ver o mundo de um plano superior. A sua excepcional preparação física permite-lhe elevar-se, rodopiar, saltar, provocar. Uma mulher on fire, sem dúvida.


NATALIA OSIPOVA


Natalia Osipova
(tem boa linha e é uma grande 'voadora')
nasceu em Moscovo e escolheu fazer carreira como ginasta
tendo mudado para a dança devido a uma lesão na coluna.
Estudou na Academia Coreográfica de Moscovo,
com M.Kotova e M.Leonova.
Em 2004 juntou-se ao Ballet Bolshoi
onde é primeira bailarina desde 2010.

Laurencia é um bailado de Vakhtang Chabukiani,
sobre musica de Alexander Crain.
Foi estreado no Teatro Kirov, em 1939
e no limite do aceitável pelo regime.

27 setembro, 2011

Abandono-me ao prolongamento do dia onde não me vês nem podes


Avanças sozinho. Corres. Depois chegas a casa, cansado. Agora estás aí, sentado em frente do computador. Abandonas-te a ti próprio, tentando puxar-me para junto de ti - a mim, esta que te escreve, que está aqui e que não vês, que não podes ver.

Pensas em mim. Como sou? Como é o meu olhar? E o meu sorriso? Como é a minha voz? Não sabes, não podes saber.

À noite dormes um sono pesado e, ainda na cama, pensas que o dia pouco te trará, nenhuma satisfação, muito cansaço.

Querias ser pássaro para voar para longe, para te elevares - mas não podes. Estás irremediavelmente preso ao teu mundo que tão pequeno é para ti.

Mas não estás sozinho, sabes que não. Todos os dias, sento-me aqui e escrevo estas palavras que podes usar como tuas, como pássaros que soltes na tua janela. Melhor, faz assim: escolhe aquelas de que gostes mais, apara-as, ajeita-as a teu gosto, e une-as como um pequeno ramo de flores. E amanhã oferece-mas. E nunca me venhas com palavras que cortam, só quero sorrisos e flores.


[E a seguir ao poema, dado que há 'Música no Ginjal', segue para a sala abaixo: hoje é Sylvie Guillem. Allez y]

Em Belém, num belíssimo fim de tarde de Outono, homem corre sozinho

                   Abandono-me ao prolongamento
                   do dia onde não me vês nem podes.

                   teu sono é profundo e assobias.

                  Não durmo e a vigília dura
                  até de manhã, quando levantar
                  é a contigência de um emprego
                  que não é, se alguma vez foi
                  de satisfação.

                  Prevenido com punhais
                  para enfrentar o adverso
                  meu olhar enlaço o pássaro
                  que fala no seu voo,
                  desafia-me e eu fico
                  preso à desumanidade
                  que mora a meu lado,
                  me atinge e compromete.


                 (Pássaro de Emerenciano in Ir e Vir)

.

MÚSICA NO GINJAL - Sylvie Guillem


Os entendidos que me perdoem. Estarão habituados a textos técnicos, secos, clean, e não a palavreados de quem escreve sem conhecimentos e com o coração na ponta dos dedos.

Estou a ver estas imagens pela primeira vez. Sou leiga. E delicio-me com a inocência de um primeiro olhar. Quando era menina, fiz ballet e adorava rodopiar, elevar as pernas, usar vestidinhos de tule e deslizar, toda eu sonho e ilusão. Parei. Depois foi a minha filha que queria fazer ballet. Acabou por fazer aeróbica, nada a ver. Mas a música no corpo, o corpo todo leveza, é uma coisa que adoro ver, sentir. E se me permite ter a ilusão de que estou a ver uma pessoa a voar, algo que tanto eu gostava de fazer, então fico presa.

Sylvie brinca, ilude, ilude-nos e nós presos dos seus pés, dos seus movimentos. Depois solta as asas e voa e nós com ela.

E que agradável partilhar a intimidade da aprendizagem, e que intrusivos nos sentimos ao assistir às dores que sempre estão associadas à beleza.

Entrem, meus Amigos, venham comigo (e imaginem que levam uma menina pela mão).


SYLVIE GUILLEM



Sylvie Guillem
(por vezes dita 'o Baryshnikov feminino')
nasceu em Paris,
estudou na Escola de Ballet de Paris
e o que vemos neste ensaio explica tudo.

Don Quixote
é um bailado em 4 actos
com coreografia original de M. Petipa e música de Ludwig Minkus;
foi inicialmente apresentado pelo Ballet do Teatro Bolshoi, em 1869
mas as produções modernas resultam da
versão encenada em 1900 por Alexander Gorsky.


26 setembro, 2011

Música não há aqui mais que a que faço


Aqui onde estou, silenciosa, vendo o rio que anoitece, vendo as estrelas que enfeitam a minha janela, escrevo palavras que alguém, não sei quem, vai ler. Solto as minhas palavras ao vento. Voam sobre o rio, voam sobre as cidades, atravessam o oceano, pousam não sei onde.

E então, olhando estas minhas palavras sinto que não estou sózinha, neste doce silêncio que me envolve. Aí, não sei onde, estão vocês, recolhendo as minhas palavras como pequenos pássaros que assomam à vossa janela. Sei que as tomam com carinho nas vossas mãos, que as aconchegam junto ao vosso coração. São vocês que estão aqui comigo. E lá em cima no céu, junto às estrelas ou dentro das águas frescas do rio, estão os anjos de grandes asas que a Sophia deixou para olharem por mim e para silenciosamente me ditarem estas palavras que vos digo.


[Convido-vos de novo, e agora todos os dias, a que, logo que tenham visto o poema abaixo, sigam até mais abaixo onde uma mulher rodopia como uma palavra largada ao vento; depois fechem os olhos e sintam-se felizes]

Junto ao Tejo, junto à Torre de Belém, o fotógrafo é fotografado

                     Música
                     não há aqui mais que a que faço,
                     a que eu faço e desfaço
                     à boca do silêncio.
                     Enquanto lá muito em cima,
                     em não sei que esferas,
                     cantam uns anjos que não ouço
                     mas fazem retinir as minhas mãos.


                    (Poema de Pedro Tamen in 'O livro do sapateiro')

MÚSICA NO GINJAL - Svetlana Lunkina


Pode um ser humano ter a leveza e graciosidade de uma ave? Pode uma mulher ser etérea como um pensamento? Pode a música transportar uma mulher no espaço como se fosse uma folha, uma quase transparente partícula de pólen? Pode uma mulher conter em si todo o júbilo de uma boneca?

Pode. Vejam, por favor, Svetlana Lunkina, vejam como ela desliza, como ela brinca, como ela é feliz.


SVETLANA LUNKINA



Svetlana Lunkina
nasceu em Moscovo e formou-se na
Academia Coreográfica de Moscovo
(classe de M.Leonova).
Em 1997 juntou-se à Companhia de dança do Teatro Bolshoi
onde é primeira bailarina desde 2005.

Quebra Nozes
é um bailado fantástico
com música de Tchaikovsky
e libreto de Lev Ivanov;
foi estreado no Teatro Mariinsky em 17 de Dezembro de 1892.


25 setembro, 2011

tenho aquela que me olha e que olho [... e tenho também um convite]


Tens-me e eu tenho-te. Olhas em frente, em silêncio e eu olho-te e tu sabes que te olho, que o meu olhar é um afago que respeita o teu silêncio. Ou então olhas-me e o teu olhar beija-me a alma e eu deixo que o teu olhar entre docemente em mim. Ou olhamos os dois o mesmo mar, o mesmo veleiro, a mesma grande ave que atravessa o espaço, olhamos, e nesse momento somos partilha, e estamos tão próximos, tão próximos, meu amor. E, às vezes, sentindo o meu olhar pousado sobre ti, perguntas, 'Diz?' e eu sorrio, dou-te a mão, e digo-te apenas 'Nada' e sorrimos, é assim o amor, sem palavras, sem justificações, apenas amor, uma paz imensa dentro de nós. E então beijas-me. E se estás longe eu digo-te 'beija-me na mesma, beija-me com palavras'. E eu, mesmo sem te ver, sei que sorris. E, digas o que disseres, sinto-me beijada.


PS: E agora, meus queridos Leitores, tenho um convite especial para vos fazer: a seguir ao poema do José Luís Peixoto, encontra-se uma novidade - sigam, pois, por favor, até aos posts abaixo. Um grande momento vos espera.

À beira do Tejo, num fim de tarde

                          tenho aquela que me olha e que olho
                          e misturamo-nos como brisas e
                          silêncios e digo tenho aquela que
                          me vê e ela olha-me e tudo o
                          que somos é uma partilha uma
                          mistura e digo diz e aquela que
                          tenho beija-me num olhar e num
                          silêncio que não posso dizer


                         (Poema de José Luís Peixoto in 'A criança em ruínas')

Atenção meus Caros Leitores: Nova Programação nesta Nova Temporada. A secção musical do Ginjal & Lisboa abre-se ao mundo e abrimos com Dança. Entrem e sejam muito bem-vindos.


Meus Caros, tem sido meu propósito divulgar aqui a poesia portuguesa e a música portuguesa ou interpretada em língua portuguesa.

Contudo, para obedecer ao critério do meu gosto pessoal, as possibilidades de escolha estavam a ficar limitadas. Eis senão quando um Leitor do Um Jeito Manso, o -pirata-vermelho-, me coloca um comentário   dizendo-me que 'A música é uma das mais elevadas manifestações do espírito humano civilizado' e recomendando-me duas senhoras, 'Elina de Riga' e 'Teresa de Braga'. Gostei da frase e gostei da recomendação e daí formou-se a ideia de o convidar a seleccionar a música que eu iria aqui colocar.

O que nasce hoje e espero que por algum tempo é, pois, o fruto desta colaboração que, desde já, muito agradeço.

Espero que vocês, meu queridos leitores (e ouvintes) a apreciem tanto quanto eu. Acomodem-se e desfrutem. E, se estão nos vossos empregos e não vos dá jeito ouvir música ou ver dança enquanto aí estão, registem, por favor: vejam à noite, quando estiverem em casa. Vão gostar, asseguro-vos.

MÚSICA NO GINJAL: Polina Semionova


É com um trecho de um maravilhoso bailado que hoje vos convido ao deleite, à emoção mais profunda.

Como vos referiri, este blogue abre-se hoje ao Mundo. Depois de durante quase um ano vos ter mostrado música portuguesa ou interpretada em língua portuguesa, eis que me apeteceu ceder à vontade de alargar horizontes.

Assim, contando com a valiosíssima e generosa colaboração do -pirata-vermelho-, sem aviso prévio, mudo a programação musical e abro a temporada com dança.

Sabem que voar é uma ideia recorrente naquilo que aqui escrevo. Voar, libertarmo-nos da lei da gravidade, vogar. Talvez por isso tanto me emocione ao ver estas mulheres e homens que voam ao som da grande música.

Polina, vocês verão, é mais que um cisne que voa. Ao vê-la pensei num gracioso flamingo, as altas e flexíveis pernas como finas e poéticas hastes - e como ela se eleva, como ela nos leva.

Queiram, pois, por favor, reservar um pouco do vosso tempo, da vossa sensibilidade.


POLINA SEMIONOVA
  


Polina Semionova
nasceu em Moscovo 1984, e estudou na Escola de Dança do Teatro Bolshoi.
Em 2002 juntou-se ao Berlin Staatsoper Ballet como bailarina principal.

Friedemann Vogel
 nasceu em Stuttgart, estudou na Academia de Dança Clássica Princesa Grace, no Mónaco e é, desde 2002, 1º solista do Sttugart Ballet.
O Cisne Negro
é um pas-de-deux de O Lago dos Cisnes, bailado dramático com música de Tchaikovsky
e libreto de Begitchev e Geltzer, estreado no Teatro Bolshoi em 20 de Fevereiro de 1877.

24 setembro, 2011

Tu és a esperança, a madrugada

Setembro avança e a luz dourada embala-me os sentidos. A luz macia, a aragem perfeita, o silêncio, apenas o rumor da água. Sabes que, quando aqui estou, me apetece voar, sabes, não sabes? Levanto os braços, aspiro o ar, penso em ti. Quero voar até ti. Gosto destes fins de tarde, a noite que chega, doce, terna, terna é a noite e não sorrias, dá-me antes a tua mão, leva-me pelos ares, leva-me até lá onde nasce a madrugada. Deixa-me dizer-te que amo a vida, que amo a amizade, que amo as palavras, deixa-me dizer-te palavras assim, e não digas que são palavras sem sentido, não digas, deixa que fiquem suspensas no ar, que as leve o vento, que as leve até ti. Acende aí uma vela e abre a tua janela para que eu, quando passar a voar, a possa ver. Quero entrar, quero passar a minha mão no teu cabelo, dizer-te um segredo, quero fazer-te sorrir. Vou dizer-te 'tu és a esperança' e tu não vais perceber e eu não vou explicar porque apenas quero dizer a palavra esperança, dizê-la devagarinho, ciciada, ao teu ouvido, para te fazer arrepiar, para te fazer sorrir.

Ginjal, o Tejo, Lisboa, o amor em Setembro

                             Tu és a esperança, a madrugada.
                             Nasceste

                             nas tardes de Setembro,
                             quando a lua é perfeita e mais doirada,
                             e há uma fonte crescendo no silêncio
                             da boca mais sombria e mais fechada.

                             Para ti criei palavras sem sentido,
                             inventei brumas, lagos densos,
                             e deixei no ar braços suspensos
                             ao encontro da luz que anda contigo.

                            Tu és a esperança onde deponho
                            meus versos que não podem ser mais nada.
                            Esperança minha, onde meus olhos bebem,

                            fundo, como quem bebe a madrugada.




('[Tu és a esperança...], de Eugénio de Andrade in 'Antologia breve')

 

21 setembro, 2011

Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão devagar sobre o peito da terra


Tens um beijo guardado dentro de ti. Está há tanto tempo guardado dentro do teu coração. Fechaste-o com chave e escondeste a chave. Um beijo precioso guardado dentro de um cofre de que só tudo conheces o segredo. Aprisionaste-o. No inverno, pensas: vem aí a primavera, e com ela virá uma rosa e com ela virá a mulher de pele de rosa que merecerá o meu beijo. Mas passa a primavera, vem o verão e as rosas ficam sem cor, vem o  outono e caem as pétalas e logo chega o inverno e voltas a pensar que já se sente a fina aragem da primavera. E o beijo fechado dentro de ti.

Mas hoje, de noite, vai até à janela, olha o céu, sente o aroma das flores, sente o aroma fresco da madrugada que se aproxima. Depois pousa a tua mão sobre o teu peito, sente o teu coração, sente, sente, ele bate, bate solitário, com um pequeno beijo que definha lá fechado. Respira o ar fresco da noite. E deixa que o teu coração se abra. Não tenhas medo, não tenhas. Um dia uma mulher vai pedir esse teu beijo. Um dia uma mulher.

Janela no Ginjal


                   Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
                   devagar sobre o peito da terra e sente respirar
                   no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
                   crescer: o linho e genciana; as ervilhas-de-cheiro
                   e as campainhas azuis; a menta perfumada para
                   as infusões do verão e a teia de raízes de um
                   pequeno loureiro que se organiza como uma rede
                   de veias na confusão de um corpo. A vida nunca                

                   foi só Inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
                   Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
                   tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
                   da tempestade que faz ruir os muros: explode no
                   teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
                   pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
                   hão-de pedir-to quando chegar a primavera.


('Não tenhas medo do amor', poema de Maria do Rosário Pedreira in 'Nenhum nome depois')

Maria Gadú interpreta A História De Lilly Braun

Maria Gadu, numa das suas canções mais conhecidas.



Como num romance
O homem dos meus sonhos
Me apareceu no dancing
Era mais um
Só que num relance
Os seus olhos me chuparam
Feito um zoom
Ele me comia
Com aqueles olhos
De comer fotografia
Eu disse cheese
E de close em close
Fui perdendo a pose
E até sorri, feliz
E voltou
Me ofereceu um drinque
Me chamou de anjo azul
Minha visão
Foi desde então ficando flou
Como no cinema
Me mandava às vezes
Uma rosa e um poema
Foco de luz
Eu, feito uma gema
Me desmilingüindo toda
Ao som do blues
Abusou do scoth
Disse que meu corpo
Era só dele aquela noite
Eu disse please
Xale no decote
Disparei com as faces
Rubras e febris
E voltou
No derradeiro show
Com dez poemas e um buquê
Eu disse adeus
Já vou com os meus
Numa turnê
Como amar esposa
Disse que agora
Só me amava como esposa
Não como star
Me amassou as rosas
Me queimou as fotos
Me beijou no altar
Nunca mais romance
Nunca mais cinema
Nunca mais drinque no dancing
Nunca mais cheese
Nunca uma espelunca
Uma rosa nunca
Nunca mais feliz
Nunca mais romance
Nunca mais cinema
Nunca mais drinque no dancing
Nunca mais cheese
Nunca uma espelunca
Uma rosa nunca
Nunca mais feliz


(Letra de 'A história de Lily Braun, composição de Chico Buarque)

20 setembro, 2011

E assim de enganos se amordaça o amor


Não conheço desamores, enganos, amores amordaçados, não conheço feridas a purgar amargura, veias a latejar de solidão, não conheço o abandono, dores de mágoa, pontadas desatinadas, não conheço gemidos de aflição. Raivas, lágrimas, pequenas zangas, quem as não tem? Mas, desgostos sérios, felizmente não os conheço.

Mas que quem os conhece, não esmoreça. Que quem conheça o abandono e o sofrimento, saia de dentro de si próprio e venha cá para fora, onde o sol ilumina as mentes e os corações, e se deixe estar calmamente à espera que o amor surja de novo. O amor é bom e deve ser vivido com serenidade, arrebatamento, entrega, tolerância, paixão, amizade, empatia. Que nunca se amordace o amor. Que nunca se prive o amor de alegria e paz. Deixe-se o amor rebentar em cor.

Há pouco no Ginjal, já noite

              Não será só o que arde sem se ver,
              mas olho de serpente amordaçado,
              bordado de ´viés e facetado,
              água aos milhares de limos e correntes.

              Nem é essa que dói e não se sente,
              mas ferida a bramir fúrias de razão
              (varia, consoante o coração,
              mas que se sente, é espinho consumado).

             E o seu final: roer junto do verso,
             ou ainda pontada em desatino,
             dor de cantão tao cínico e pequeno
             que a luta de existir mais se reverte.

             E chegam os punhais, os comprimidos,
             sonha-se a veia a rebentar a cor,
             sonha-se a paz em vinte mil gemidos.

            E assim de enganos se amordaça o amor.


('Amordaçando a serpente (variações) de Ana Luís Amaral in Vozes, novíssimo livro)

Maria Ana Bobone interpreta 'Com que voz'

Um dos mais belos fados interpretados por Amália que tem letra de Camões e música de Alain Oulman.

Aqui é interpretado por uma bela fadista e aqui a beleza é global: é ela, é a voz, é a atitude, é a interpretação no seu conjunto. Maria Ana Bobone.

Silêncio pois que vai cantar-se o Fado.


Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura paixão me sepultou.
Que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado.

Mas chorar não estima neste estado
aonde suspirar nunca aproveitou.
Triste quero viver, poi se mudou
em tisteza a alegria do passado.

Assim a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima ao pé que a sofre e sente.

De tanto mal, a causa é amor puro,
devido a quem de mim tenho ausente,
por quem a vida e bens dele aventuro.

(Letra de 'Com que voz' de Luís Vaz de Camões)

19 setembro, 2011

Pois às vezes me falta a quem contar certo dia passado do princípio ao fim

Algures um homem chega a casa com tanto que contar, palavras, cheiros, uma música, um olhar na rua, o sol que batia nas flores do canteiro, uma menina que ria, uma mãe que vestia um casaco ao filho, uma idosa com um belo cabelo branco, um carro novo, um filme de quem dizem bem, a voz simpática da empregada do restaurante, um problema no trabalho, a saúde da mãe, as saudades da filha, o livro que chegou pelo correio, tanta coisa para contar e ninguém para ouvir.

O homem chega a casa, pousa a mala, tira as moedas do bolso, despe o casaco, abre as janelas, bebe um copo de água, espreita pela janela, acende a luz, senta-se cansado. Tanta coisa para contar.

O homem fecha os olhos, cansado, e vai pensando, devagarinho. Para combater o sono, levanta-se, vai de novo até à janela, quase ninguém, quase noite, pudesse eu sair daqui a dançar nesta cidade vazia, pensa.

Volta a sentar-se, ninguém com quem dançar, ninguém com quem conversar.

Senta-se e imagina que, de trás, uma mão afagará a sua cabeça, alguém se debruçará e dirá 'conta-me o teu dia'. E então o homem sorri e pensa, 'ah vem para aqui, quero ver os teus olhos, quero ver a luz que vem de dentro deles'. E a mulher imaterial dirá então, 'olha os meus olhos, olha que eu gosto que me dispas, depois conta-me o teu dia mas com palavras irrealizáveis. Mas primeiro dá-me a tua mão, vamos dançar'.

Homem olha o rio, o pôr do sol, a grande cidade do outro lado
O Ginjal, o Tejo, Lisboa - uma história de amor
A Torre de Belém, o Padrão dos Descobrimentos - a presença do passado
           

            Pois às vezes me falta a quem contar
            certo dia do princípio ao fim
            o encanto que tenha realmente
            a insistência do vento ao longo da foz
            aquilo que daria (e eu daria tudo) por compaixão

            Nascemos e vivemos só algum tempo
            não temos nada
            não podemos mesmo na penumbra
            decidir a atenção ou o esquecimento
            as forças soçobram como vagos motivos
            em público
            e em qualquer lugar

            Por isso sei tão bem o valor
            da natureza indiscutível dos teus olhos
            onde a luz anota seus aspectos
            teus olhos impacientes e irrealizáveis
            que me acompanham
            agora que sozinho danço
            pela cidade vazia

            ('O último dia de verão' de José Tolentino Mendonça in 'A noite abre meus olhos')

Martinho Da Vila & Katia Guerreiro interpretam 'Dar e Receber'

Alegria, empatia, musiquinha, embalo, ternura: a fadista Katia Guerreiro em tom de samba, Martinho da Vila, num samba picado, todo fadista.



Com o meu canto
Eu quero lhe encantar
Lhe embalar com o meu som
Embriagar
Fazer você ficar feliz
Cantarolar
Lá, lá, lá, lá
Lá, lá, lá, lá
Lá, lá, lá, lá...(2x)
Capitando a energia
Desse seu lalalalá
Sigo a filosofia
Que é bom receber e dar...
Eu quero dar
Eu quero dar
Eu quero dar
E receber
E receber
E receber
Fazer, fazer
Me refazer fazendo amor
Sem machucar seu coração
Sem me envolver...(2x)
Mas se você se apaixonar
Me quiser numa total
Vai ter que ficar comigo
Coladinho a meu umbigo
De maneira visceral
Vou expor minhas entranhas
Lhe darei muito prazer
E bem prazerosamente
Vou abrir mão dos meus sonhos
Prá viver só com você...
Mas se você se apaixonar
Me quiser numa total
Vai ter que ficar comigo
Grudadinha ao meu umbigo
De maneira visceral
Vou expor minhas entranhas
Lhe darei muito prazer
E bem prazerosamente
Vou abrir mão de meus sonhos
Prá viver só com você...
Eu quero dar
Eu quero dar
Eu quero dar
E receber
E receber
E receber
Fazer, fazer
Me refazer fazendo amor
Sem machucar seu coração
Sem me envolver...


(Letra de 'Dar e receber', composição de Martinho da Vila)

18 setembro, 2011

Eu digo-te onde estou e logo saberás quem sou

Estudo as falas, ensaio as deixas, exponho-me, falo, aqui estou num palco. E o palco ilumina-se para que vocês me vejam.

Mas do lado de lá está escuro, não vos vejo. Estão aí? Estás aí?

Falo para todos, todos me ouvem mas espero que alguém, em particular, perceba de forma especial as minhas palavras. Você que me lê, sente que escrevo para si? Tu aí, que me lês, percebes que as palavras são para ti?

Vocês, aí às escuras, que ouvem as minhas palavras, sentem que agora, aqui, é para vocês que as escrevo? Cheguem-se, venham até aqui, cheguem-se um pouco à luz, deixem-me ver-vos.

Tu, tu aí, tu que estás longe de mim, em silêncio nessa cadeira, deixa que uma palavra tua atravesse a solidão do espaço, atravesse a escuridão do mundo, e diz-me uma palavra para que eu saiba que estás aí - só isso, não peço mais.

Não peço que pises o mesmo palco que eu, peço apenas que me deixes saber que estás aí. E que, ao ouvir-me, estás comigo. E que, ao ler estas palavras, ficas a pensar em mim.

Manhã irreal no Ginjal, teatro de sombras, veleiros brancos num Tejo quase inventado

          Eu digo-te onde estou
          e logo saberás qum sou.
          Na escuridão do mundo
          iluminarei a solidão do espaço
          e passo a passo os olhos hão-de ver
          o que mais ninguém vê.
          E até nós perguntaremos
          se o que os nossos pés agoram pisam
          são as tábuas do palco e as da lei.


          ('2. Ele', outro belo, belo poema de Pedro Tamen in 'Um teatro às escuras')

Manuel João Vieira interpreta Gosto de ti (realmente)

Admiro a figura excêntrica e controversa de Manuel João Vieira nas suas múltiplas identidades.

Não é fácil escolher um vídeo porque são raros os que se mantêm nos limites da 'decência', coisa que lhe perdoo mas que aqui não cai bem.

Esta canção, que hoje escolhi, é singela.


Gosto de ti
Gosto de ti quando te ris és tão bonita
Gosto de ti

Quando tu vens,
Quando tu vens
Olhas para mim
Sentas-te aqui,
És tão bonita

E não te ter,
Mas ter que ver o teu sorriso em todo o lado
Só faz doer,
Um coração tão trapalhão, apaixonado


(Letra de 'Gosto de ti, realmente' de Manuel João Vieira)

15 setembro, 2011

... este irreparável dentro, amor suspenso no lugar do outro.


Do coração para as mãos - e assim eu recebo o aroma dessas flores e dessas coloridas figuras.

Há um ligeiro deslocar da tua mão, um suave e subtil gesto, inconsciente até talvez mas, pelo menos, não são sombras, apenas frias pedras.

Guarda no teu coração o teu grande amor, que para sempre fique dentro de ti, a dor é irreparável, eu sei. Mas abre um espaço.

Tenho cheiros de maresia, gritos de gaivotas, rastos de veleiros, sorrisos, palavras alegres, aragens suaves, tenho flores, tenho gestos de afecto para te ensinar.

Talvez ainda não o 'amor suspenso no lugar do outro', mas, pelo menos, um suave e calmo afecto feito de palavras. E um mundo inventado, onde podemos sonhar sem medos, sem más recordações. Dá-me a tua mão. Vem comigo.

No Ginjal, ao cair da noite, sobre o Tejo e Lisboa do outro lado: o aroma do amor


            O ligeiro deslocar
            de tua mão que deste
            arbusto retira o aroma,
            almiscarao ou floral,
            e mo oferece, intacto,
            é o mais subtil, glorioso
            dos movimentos


           que não mais suporta
           o tremor do finito,
           ser pedra, ser água,
           acumulação de grãos,
           este irreparável dentro,
           amor suspenso
           no lugar do outro.


         ('Aroma suspenso' de Ana Marques Gastão in Adornos)

Jorge Palma interpreta 'Deixa-me rir'

Jorge Palma, um grande compositor e um grande intérprete, aqui numa das suas composições mais conhecidas: Deixa-me rir (ou então deixa-me entrar em ti).



Deixa-me rir
Essa história não é tua
Falas da festa, do Sol e do prazer
Mas nunca aceitaste o convite
Tens medo de te dar
E não é teu o que queres vender

Deixa-me rir
Tu nunca lambeste uma lágrima
Desconheces os cambiantes do seu sabor
Nunca seguiste a sua pista
Do regaço à nascente
Não me venhas falar de amor
[ Lyrics from: http://www.lyricsmode.com/lyrics/j/jorge_palma/deixa_me_rir.html ]
Pois é , pois é
Há quem viva escondido a vida inteira
Domingo sabe de cor
O que vai dizer Segunda-Feira

Deixa-me rir
Tu nunca auscultaste esse engenho
De que que falas com tanto apreço
Esse curioso alambique
Onde são destilados
Noite e dia o choro e o riso

Deixa-me rir
Ou então deixa-me entrar em ti
Ser o teu mestre só por um instante
Iluminar o teu refúgio
Aquecer-te essas mãos
Rasgar-te a máscara sufocante

Pois é, pois é
Há quem viva escondido a vida inteira
Domingo sabe de cor
O que vai dizer Segunda-Feira

(Letra de 'deixa-me rir', composição de Jorge Palma)

14 setembro, 2011

E eu escrevo-te toda no cometa que te envolve as ancas como um beijo


Custa-te dizer as palavras do carinho. Perdeste esse hábito e agora não sabes como recomeçar.

Mas esforças-te, eu vejo, e arrancas do peito palavras como 'a tua boca é um lugar luminoso, arterial'.

Vejo os teus olhos doces que me olham, sinto as tuas mãos cheias de ternura que me afagam e vejo como te esforças para me dizeres palavras de amor: 'a paixão é voraz'.

Eu sorrio-te e agradeço, vejo como te esforças. Tens nas mãos o coração que ainda sangra mas esforças-te, eu vejo.

E eu digo Obrigada, gosto de ouvir as tuas palavras. Fala mais.

E tu suspiras, quero sempre mais, eu sei, e tentas fazer-me a vontade, esforças-te ainda mais mas parece que já não consegues, encolhes os ombros e, para minha surpresa, dizes: agora já chega, agora 'sou um cometa e quero envolver-te as ancas com o meu beijo'.

E eu sorrio, encantada, conseguiste dizer uma frase grande, uma frase bonita e então 'como estrelas duplas consanguíneas, luzimos de um para o outro nas trevas'.

Fim de tarde à beira do Tejo, olhando Lisboa, a iluminada

                                        (...)
                                        Nenhuma
                                        estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
                                        astro
                                        é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
                                        do teu vestido.
                                        As palavras que escrevo correndo
                                        entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
                                        arterial.
                                        E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
                                        A paixão é voraz, o silêncio
                                        alimenta-se
                                        fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
                                        toda
                                        no cometa que te envolve as ancas como um beijo.

                                        (...)

                                        (excerto de 'Ou o poema contínuo' de Herberto Helder)

Teresa Silva Carvalho interpreta "As cinzas duma saudade"

Uma mulher bonita e com uma bela personalidade musical, Teresa Silva Carvalho. Aqui num belo fado.



Não encontrei a letra

13 setembro, 2011

Tentei fugir da mancha mais escura que existe no teu corpo, e desisti.


Quem do amor conheceu os delírios da paixão, quem do amor conheceu o carinho, quem do amor conheceu o desejo, quem do amor conheceu o sabor a fruta nos recantos do corpo, quem do amor conheceu o cheiro das flores, quem do amor conheceu a entrega de um olhar profundo, quem do amor conheceu a alegria, quem do amor conheceu a vontade de um afago, quem do amor conheceu a ternura de sorriso, quem do amor conheceu o prazer do corpo sobre corpo, quem do amor conheceu o forte poder das palavras queridas ditas rente à boca, rente ao ouvido, rente ao corpo - não pode depois, para sempre, furtar-se a ele.

Tenta, tenta, por brincadeira, por exercício, por graça, tenta dizer palavras de carinho, palavras de amor.

Dirige-as a uma mulher inventada, a uma mulher silenciosa como a casa em que nasceste que receberá com um sorriso sereno as tuas palavras hesitantes, uma mulher cheirosa como a fruta da casa da tua infância, uma mulher alegre e colorida como as flores que rebentam na primavera. Ensaia, por puro exercício de escrita. Experimenta fingir que és feliz. Depois diz-me, baixinho, só a mim, se te sentiste um bocadinho feliz.

Sobre o Tejo, em Belém, terno momento de amor

                                   Tentei fugir da mancha mais escura
                                   que existe no teu corpo, e desisti.
                                   Era pior que a morte o que antevi:
                                   era a dor de ficar sem sepultura.

                                   Bebi entre os teus flancos a loucura
                                   de não poder viver longe de ti:
                                   és a sombra da casa onde nasci,
                                   és a noite que à noite me procura.

                                   Só por dentro de ti há corredores
                                   e em quartos interiores o cheiro a fruta
                                   que veste de frescura a escuridão. . .

                                   Só por dentro de ti rebentam flores.
                                   Só por dentro de ti a noite escuta
                                   o que sem voz me sai do coração.



                         ('Casa' de David Mourão-Ferreira in "A arte amar"

Ana Carolina e Maria Gadu interpretam 'Mais que a mim'

Uma canção romântica.


Ouvi dizer que você tá bem
Que já tem um outro alguém
Encontrei moedas pelo chão
Mas não vi ninguém pra me abraçar, me dar a mão

Eu chorei sem disfarçar
Quando vi seu carro passar
Vi todo amor que em mim ainda não passou
Eu já não sei bem aonde vou, mas agora eu vou

Tentei falar mas você não soube ouvir tente admitir
Tentei voltar e pude ver o quanto errei
Te amei mais que a mim
Ah, bem mais que a mim, mais que a mim

Ouvi dizer que você tá bem
Que já tem um outro alguém
Encontrei moedas pelo chão
Mas não vi ninguém pra me abraçar, me dar a mão

Eu chorei sem disfarçar
Quando vi seu carro passar
Vi todo amor que em mim ainda não passou
Eu já não sei bem aonde vou, mas agora eu vou

Tentei falar mas você não soube ouvir tente admitir
Tentei voltar e pude ver o quanto errei
Te amei mais que a mim
Ah, bem mais que a mim, mais que a mim


(Letra de 'Mais que a mim', composição de Maria Carolina)

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem


Um dia ficaste sozinho e o silêncio tomou conta da tua vida. Caminhas na tua casa e é o som dos teus passos a tua companhia. Caminhas junto ao rio e aragem é o teu único afago. Caminhas como um homem cansado, caminhas como um homem triste que arrasta consigo a dor do passado. A sombra escura dos teus pensamentos rodeia-te num apertado abraço, a noite paira sempre sobre ti. As minhas palavras de nada te valem porque escolheste percorrer sozinho o longo e estreito caminho da memória. Há silêncio e desolação nas tuas árvores quase caídas de tanta solidão, há um silêncio nos caminhos em que nunca se vê uma única pessoa. Digo-te que a vida é aqui, mostro-te pássaros em pleno voo, barcos de verdade, pessoas que se abraçam, mulheres que passeiam, homens que olham o horizonte, crianças que brincam e tu preferes o isolamento da memória, preferes o teu mundo imaginado, distante, intangível, onde o sol um dia foi aprisionado.

És o homem que, quando a tarde morre de repente, se esconde e vai com o sol. E em silêncio, vergado pela saudade e pela eterna dor, avanças para o interior do teu mundo sombrio, como se estivesses esquecido, mutilado.

Posso fazer alguma coisa para te tirar desse mundo de sombras, de frios, de esquecimento, de tristeza? Posso?


(Deixa-me contar-te: há pouco, antes de anoitecer, estava este céu e este sol de uma beleza magnífica que vês nas fotografias mas nem todos o viram; ùm pouco depois, já noitinha, uma mulher chorou de dentro do rio e só eu a ouvi, disse-me mais tarde que já estava ali há muito tempo, 'ajude-me', depois voei procurando ajuda, e voltei, e fui sempre falando com ela e, quando a tiraram, agarrou-me a mão e disse-me 'ajude-me, sou tão infeliz' e eu segurei-lhe a mão enquando a levavam)

Hoje, há pouco, homem avança dentro de um sol que se esconde, junto ao Tejo

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
a terra estende-se infinita nos teus passos
ao passares o horizonte serás último
e partindo de mim avanças

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
onde o lugar das palavras que esquecemos?
se o nosso mapa foi o sol e as manhãs
onde foi que nos perdemos?

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
como um martírio triste como um homem cansado
como a morte ao fim da tarde como um rio
como um silêncio profundo a levar-te

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
começam hoje os dias os meses os anos depois de ti
começa hoje a ser recordação apenas o quanto vivi
e partindo de mim avanças

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
não vás porque a vida é aqui e o esquecimento é longe
mas tu não me ouves já avanças
e a noite segura-te por onde vais

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
ainda agora partiste e és já uma memória desfocada
não vás porque a vida é aqui e o esquecimento é longe
e as minhas palavras não valem nada

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
avanças devagar percorrendo um grande caminho
a tarde morre de repente num silêncio como uma aragem
e fico morto esquecido mutilado sozinho


(Poema de José Luís Peixoto in 'A criança em ruínas')

Há pouco, gaivota voando sobre mim
ou melhor,
eu voando hoje à noitinha
fazendo a ronda pelas margens do Tejo

12 setembro, 2011

Sérgio Godinho interpreta 'A noite passada'

A gravação é muito antiga e tem pouca qualidade mas a canção é das mais bonitas de Sérgio Godinho. A letra a mim toca-me muito, tenho esta mania de que sou pássaro, gaivota, de que sou capaz de voar.


A noite passada acordei com o teu beijo
descias o Douro e eu fui esperar-te ao Tejo
vinhas numa barca que não vi passar
corri pela margem até à beira do mar
até que te vi num castelo de areia
cantavas "sou gaivota e fui sereia"
ri-me de ti "então porque não voas?"
e então tu olhaste
depois sorriste
abriste a janela e voaste

A noite passada fui passear no mar
a viola irmã cuidou de me arrastar
chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo
olhei para baixo dormias lá no fundo
faltou-me o pé senti que me afundava
por entre as algas teu cabelo boiava
a lua cheia escureceu nas águas
e então falámos
e então dissemos
aqui vivemos muitos anos

A noite passada um paredão ruiu
pela fresta aberta o meu peito fugiu
estavas do outro lado a tricotar janelas
vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
cheguei-me a ti disse baixinho "olá",
toquei-te no ombro e a marca ficou lá
o sol inteiro caiu entre os montes
e então olhaste
depois sorriste
disseste "ainda bem que voltaste"


(Letra de 'A noite passada', composição de Sérgio Godinho)

não te pergunto de onde chegas, porque sei para onde vais


Sem que me avisasses, sem que eu te tivesse perguntado quando chegarias, eis que vieste. Mas não me procuraste. Por isso não sei a hora exacta a que chegaste, não sei quando partes, não sei se ficas.

Como de costume passeava junto ao rio e, para minha surpresa, bem no meio, como se estivesse pousado sobre o Tejo, como se fosse um desenho infantil, ali estava o teu pequeno barco, o barquinho de papel que desenhaste a azul, que disseste que ias pôr no rio.

Pequenino barco no Tejo de aspecto totalmente artesanal, avistado do Ginjal

E assim fizeste. Vieste. Mas ainda não ouvi a tua voz, ainda não vi o teu rosto. Estás ainda, certamente, dentro da minúscula embarcação, a saborear a leve ondulação, na companhia dos pássaros que guardas no teu chapéu, aspirando a maresia, sonhando. Deste pequeno barquinho não podias ter saído. Como o farias? Estás longe das margens, longo dos cais, estás simplesmente ali, ficando no rio que passa.

Estás ali, tão perto, e sempre, meu amigo, sempre tão inacessível.

Mas, tal como não te chamo, também não te procuro. Virá a noite, virão noites pesadas, e tu ali pernoitarás, em silêncio, nesse teu mundo distante, imaginado, imaterial.

Até que um dia me encontrarás. Serás tu a vir ao meu encontro. Num dia especial, virás até mim, entrarás no meu mundo que não existe, tirarás o teu chapéu, deixarás voar os pássaros e, com o teu sorriso menino, oferecer-me-ás um ramo de lírios brancos. E levar-me-ás, a voar nos teus braços, até ao teu pequeno barquinho azul, e iremos os dois, navegando nos nossos sonhos inocentes.

barquinho 'que fica no rio que passa'

Because I do not hope to turn again
Because I do not hope
Because I do not hope to turn

T. S. Eliot, Ash Wednesday



                                             não te pergunto de onde chegas?,
                                             porque sei para onde vais.
                                             hoje é a hora exacta em que até o vento
                                             até os pássaros desistem.
                                             e a noite a teus pés é um instante
                                             e um destino.

                                             não te pergunto onde está o teu rosto,
                                             tantas vezes ocluso e pisado sob os ramos,
                                             onde está o teu rosto?
                                             nem te peço que incendeies o teu nome
                                             numa nuvem nocturna,
                                             nem te procuro.

                                             és tu que me encontras,
                                             ficas no rio que passa,
                                             nada de um tempo que não existe,
                                             nem correntes, nem pedra, nem musgo.
                                             nem silêncio.


('não te pergunto de onde chegas?', mais um belo poema de José Luís Peixoto in A Criança em Ruínas)