Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

13 setembro, 2011

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem


Um dia ficaste sozinho e o silêncio tomou conta da tua vida. Caminhas na tua casa e é o som dos teus passos a tua companhia. Caminhas junto ao rio e aragem é o teu único afago. Caminhas como um homem cansado, caminhas como um homem triste que arrasta consigo a dor do passado. A sombra escura dos teus pensamentos rodeia-te num apertado abraço, a noite paira sempre sobre ti. As minhas palavras de nada te valem porque escolheste percorrer sozinho o longo e estreito caminho da memória. Há silêncio e desolação nas tuas árvores quase caídas de tanta solidão, há um silêncio nos caminhos em que nunca se vê uma única pessoa. Digo-te que a vida é aqui, mostro-te pássaros em pleno voo, barcos de verdade, pessoas que se abraçam, mulheres que passeiam, homens que olham o horizonte, crianças que brincam e tu preferes o isolamento da memória, preferes o teu mundo imaginado, distante, intangível, onde o sol um dia foi aprisionado.

És o homem que, quando a tarde morre de repente, se esconde e vai com o sol. E em silêncio, vergado pela saudade e pela eterna dor, avanças para o interior do teu mundo sombrio, como se estivesses esquecido, mutilado.

Posso fazer alguma coisa para te tirar desse mundo de sombras, de frios, de esquecimento, de tristeza? Posso?


(Deixa-me contar-te: há pouco, antes de anoitecer, estava este céu e este sol de uma beleza magnífica que vês nas fotografias mas nem todos o viram; ùm pouco depois, já noitinha, uma mulher chorou de dentro do rio e só eu a ouvi, disse-me mais tarde que já estava ali há muito tempo, 'ajude-me', depois voei procurando ajuda, e voltei, e fui sempre falando com ela e, quando a tiraram, agarrou-me a mão e disse-me 'ajude-me, sou tão infeliz' e eu segurei-lhe a mão enquando a levavam)

Hoje, há pouco, homem avança dentro de um sol que se esconde, junto ao Tejo

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
a terra estende-se infinita nos teus passos
ao passares o horizonte serás último
e partindo de mim avanças

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
onde o lugar das palavras que esquecemos?
se o nosso mapa foi o sol e as manhãs
onde foi que nos perdemos?

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
como um martírio triste como um homem cansado
como a morte ao fim da tarde como um rio
como um silêncio profundo a levar-te

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
começam hoje os dias os meses os anos depois de ti
começa hoje a ser recordação apenas o quanto vivi
e partindo de mim avanças

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
não vás porque a vida é aqui e o esquecimento é longe
mas tu não me ouves já avanças
e a noite segura-te por onde vais

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
ainda agora partiste e és já uma memória desfocada
não vás porque a vida é aqui e o esquecimento é longe
e as minhas palavras não valem nada

caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
avanças devagar percorrendo um grande caminho
a tarde morre de repente num silêncio como uma aragem
e fico morto esquecido mutilado sozinho


(Poema de José Luís Peixoto in 'A criança em ruínas')

Há pouco, gaivota voando sobre mim
ou melhor,
eu voando hoje à noitinha
fazendo a ronda pelas margens do Tejo

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