Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

27 setembro, 2011

Abandono-me ao prolongamento do dia onde não me vês nem podes


Avanças sozinho. Corres. Depois chegas a casa, cansado. Agora estás aí, sentado em frente do computador. Abandonas-te a ti próprio, tentando puxar-me para junto de ti - a mim, esta que te escreve, que está aqui e que não vês, que não podes ver.

Pensas em mim. Como sou? Como é o meu olhar? E o meu sorriso? Como é a minha voz? Não sabes, não podes saber.

À noite dormes um sono pesado e, ainda na cama, pensas que o dia pouco te trará, nenhuma satisfação, muito cansaço.

Querias ser pássaro para voar para longe, para te elevares - mas não podes. Estás irremediavelmente preso ao teu mundo que tão pequeno é para ti.

Mas não estás sozinho, sabes que não. Todos os dias, sento-me aqui e escrevo estas palavras que podes usar como tuas, como pássaros que soltes na tua janela. Melhor, faz assim: escolhe aquelas de que gostes mais, apara-as, ajeita-as a teu gosto, e une-as como um pequeno ramo de flores. E amanhã oferece-mas. E nunca me venhas com palavras que cortam, só quero sorrisos e flores.


[E a seguir ao poema, dado que há 'Música no Ginjal', segue para a sala abaixo: hoje é Sylvie Guillem. Allez y]

Em Belém, num belíssimo fim de tarde de Outono, homem corre sozinho

                   Abandono-me ao prolongamento
                   do dia onde não me vês nem podes.

                   teu sono é profundo e assobias.

                  Não durmo e a vigília dura
                  até de manhã, quando levantar
                  é a contigência de um emprego
                  que não é, se alguma vez foi
                  de satisfação.

                  Prevenido com punhais
                  para enfrentar o adverso
                  meu olhar enlaço o pássaro
                  que fala no seu voo,
                  desafia-me e eu fico
                  preso à desumanidade
                  que mora a meu lado,
                  me atinge e compromete.


                 (Pássaro de Emerenciano in Ir e Vir)

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