Custa-te dizer as palavras do carinho. Perdeste esse hábito e agora não sabes como recomeçar.
Mas esforças-te, eu vejo, e arrancas do peito palavras como 'a tua boca é um lugar luminoso, arterial'.
Vejo os teus olhos doces que me olham, sinto as tuas mãos cheias de ternura que me afagam e vejo como te esforças para me dizeres palavras de amor: 'a paixão é voraz'.
Eu sorrio-te e agradeço, vejo como te esforças. Tens nas mãos o coração que ainda sangra mas esforças-te, eu vejo.
E eu digo Obrigada, gosto de ouvir as tuas palavras. Fala mais.
E tu suspiras, quero sempre mais, eu sei, e tentas fazer-me a vontade, esforças-te ainda mais mas parece que já não consegues, encolhes os ombros e, para minha surpresa, dizes: agora já chega, agora 'sou um cometa e quero envolver-te as ancas com o meu beijo'.
E eu sorrio, encantada, conseguiste dizer uma frase grande, uma frase bonita e então 'como estrelas duplas consanguíneas, luzimos de um para o outro nas trevas'.
Fim de tarde à beira do Tejo, olhando Lisboa, a iluminada |
(...)
Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
(...)
(excerto de 'Ou o poema contínuo' de Herberto Helder)
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