Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

19 setembro, 2011

Pois às vezes me falta a quem contar certo dia passado do princípio ao fim

Algures um homem chega a casa com tanto que contar, palavras, cheiros, uma música, um olhar na rua, o sol que batia nas flores do canteiro, uma menina que ria, uma mãe que vestia um casaco ao filho, uma idosa com um belo cabelo branco, um carro novo, um filme de quem dizem bem, a voz simpática da empregada do restaurante, um problema no trabalho, a saúde da mãe, as saudades da filha, o livro que chegou pelo correio, tanta coisa para contar e ninguém para ouvir.

O homem chega a casa, pousa a mala, tira as moedas do bolso, despe o casaco, abre as janelas, bebe um copo de água, espreita pela janela, acende a luz, senta-se cansado. Tanta coisa para contar.

O homem fecha os olhos, cansado, e vai pensando, devagarinho. Para combater o sono, levanta-se, vai de novo até à janela, quase ninguém, quase noite, pudesse eu sair daqui a dançar nesta cidade vazia, pensa.

Volta a sentar-se, ninguém com quem dançar, ninguém com quem conversar.

Senta-se e imagina que, de trás, uma mão afagará a sua cabeça, alguém se debruçará e dirá 'conta-me o teu dia'. E então o homem sorri e pensa, 'ah vem para aqui, quero ver os teus olhos, quero ver a luz que vem de dentro deles'. E a mulher imaterial dirá então, 'olha os meus olhos, olha que eu gosto que me dispas, depois conta-me o teu dia mas com palavras irrealizáveis. Mas primeiro dá-me a tua mão, vamos dançar'.

Homem olha o rio, o pôr do sol, a grande cidade do outro lado
O Ginjal, o Tejo, Lisboa - uma história de amor
A Torre de Belém, o Padrão dos Descobrimentos - a presença do passado
           

            Pois às vezes me falta a quem contar
            certo dia do princípio ao fim
            o encanto que tenha realmente
            a insistência do vento ao longo da foz
            aquilo que daria (e eu daria tudo) por compaixão

            Nascemos e vivemos só algum tempo
            não temos nada
            não podemos mesmo na penumbra
            decidir a atenção ou o esquecimento
            as forças soçobram como vagos motivos
            em público
            e em qualquer lugar

            Por isso sei tão bem o valor
            da natureza indiscutível dos teus olhos
            onde a luz anota seus aspectos
            teus olhos impacientes e irrealizáveis
            que me acompanham
            agora que sozinho danço
            pela cidade vazia

            ('O último dia de verão' de José Tolentino Mendonça in 'A noite abre meus olhos')

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