Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

13 setembro, 2011

Tentei fugir da mancha mais escura que existe no teu corpo, e desisti.


Quem do amor conheceu os delírios da paixão, quem do amor conheceu o carinho, quem do amor conheceu o desejo, quem do amor conheceu o sabor a fruta nos recantos do corpo, quem do amor conheceu o cheiro das flores, quem do amor conheceu a entrega de um olhar profundo, quem do amor conheceu a alegria, quem do amor conheceu a vontade de um afago, quem do amor conheceu a ternura de sorriso, quem do amor conheceu o prazer do corpo sobre corpo, quem do amor conheceu o forte poder das palavras queridas ditas rente à boca, rente ao ouvido, rente ao corpo - não pode depois, para sempre, furtar-se a ele.

Tenta, tenta, por brincadeira, por exercício, por graça, tenta dizer palavras de carinho, palavras de amor.

Dirige-as a uma mulher inventada, a uma mulher silenciosa como a casa em que nasceste que receberá com um sorriso sereno as tuas palavras hesitantes, uma mulher cheirosa como a fruta da casa da tua infância, uma mulher alegre e colorida como as flores que rebentam na primavera. Ensaia, por puro exercício de escrita. Experimenta fingir que és feliz. Depois diz-me, baixinho, só a mim, se te sentiste um bocadinho feliz.

Sobre o Tejo, em Belém, terno momento de amor

                                   Tentei fugir da mancha mais escura
                                   que existe no teu corpo, e desisti.
                                   Era pior que a morte o que antevi:
                                   era a dor de ficar sem sepultura.

                                   Bebi entre os teus flancos a loucura
                                   de não poder viver longe de ti:
                                   és a sombra da casa onde nasci,
                                   és a noite que à noite me procura.

                                   Só por dentro de ti há corredores
                                   e em quartos interiores o cheiro a fruta
                                   que veste de frescura a escuridão. . .

                                   Só por dentro de ti rebentam flores.
                                   Só por dentro de ti a noite escuta
                                   o que sem voz me sai do coração.



                         ('Casa' de David Mourão-Ferreira in "A arte amar"

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