Quem do amor conheceu os delírios da paixão, quem do amor conheceu o carinho, quem do amor conheceu o desejo, quem do amor conheceu o sabor a fruta nos recantos do corpo, quem do amor conheceu o cheiro das flores, quem do amor conheceu a entrega de um olhar profundo, quem do amor conheceu a alegria, quem do amor conheceu a vontade de um afago, quem do amor conheceu a ternura de sorriso, quem do amor conheceu o prazer do corpo sobre corpo, quem do amor conheceu o forte poder das palavras queridas ditas rente à boca, rente ao ouvido, rente ao corpo - não pode depois, para sempre, furtar-se a ele.
Tenta, tenta, por brincadeira, por exercício, por graça, tenta dizer palavras de carinho, palavras de amor.
Dirige-as a uma mulher inventada, a uma mulher silenciosa como a casa em que nasceste que receberá com um sorriso sereno as tuas palavras hesitantes, uma mulher cheirosa como a fruta da casa da tua infância, uma mulher alegre e colorida como as flores que rebentam na primavera. Ensaia, por puro exercício de escrita. Experimenta fingir que és feliz. Depois diz-me, baixinho, só a mim, se te sentiste um bocadinho feliz.
Sobre o Tejo, em Belém, terno momento de amor |
Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.
Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão. . .
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.
('Casa' de David Mourão-Ferreira in "A arte amar"
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