Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 setembro, 2011

Metade de mim cavalo de mim mesma eu te domino


Não me dominas, não me debelas, não me retens, não me tens. Por vezes tentas, mas já devias ter percebido que isso não será possível, nunca.

Sou metade mulher, metade cavalo, parto em voo, sem rédeas.

Tentas conter-me com esporas. Pior ainda.

Combates-me, tentas segurar-me, educar-me, adestrar-me, tentas colocar-me o freio. Impossível.

Tentas então prender-me, receias que me perca no deserto, sobre as águas, no fundo do mar, no alto dos montes, atrás dos grandes pássaros. Mas sabes que sempre fugirei.

Preciso de espaço, de solidão, de me perder no meio das grandes cidades, de me deslumbrar junto a um mar aberto no qual se reflecte o luar, preciso de ser eu, eu toda, eu.

E então, livre, feliz, subtil sopro dentro de um poema, embalada pela emoção profunda da música mais limpa, inundada de claridade, dos perfumes da maresia, o olhar lavado, os braços abertos, sonhando voar ao lado dos veleiros, chamar-te-ei. Anda, vem para perto de mim, deita-te ao meu lado, dá-me a mão, sente a minha pele, ouve o meu coração, mistura-te comigo.

|.|.|.|

[Depois da leitura do poema de Sophia, desce um pouco mais, vem comigo, vem que vou mostrar-te aquilo de que estou a falar-te. Svetlana ex-machina sou eu] 

Junto ao Tejo, de frente para Lisboa, a Iluminada
(fotografia propositadamente encoberta)


Metade de mim cavalo de mim mesma eu te domino
Eu te debelo com espora e rédea

Para que não te percas nas cidades mortas
Para que não te percas
Nem nos comércios de Babilónia
Nem nos ritos sangrentos de Nínive

Eu aponto o teu nariz para o deserto limpo
Para o perfume limpo do deserto
Para a sua solidão de extremo a extremo

Por isso te debelo te combato te domino
E o freio te corta a espora te fere a rédea te retém

Para poder soltar-se livre no deserto
Onde não somos nós dois mas só um mesmo
No deserto limpo com seu perfume de astros
Na grande claridade limpa do deserto
No espaço interior de cada poema
Luz e fogo perdidos mas tão perto
Onde não somos nós dois mas só um mesmo


("No deserto" de Sophia de Mello Breyner Andresen in Obra Poética III)
 .

2 comentários:

  1. ERA UMA VEZ04 outubro, 2011

    Ando a descobrir-te "jeito manso"
    e neste calmo percurso autorizado
    encontrei-te na minha figueirinha, ali
    onde banhei os filhos nas águas transparentes
    na minha arrábida
    onde enamorado
    o meu jovem corpo disse sim...

    Voltei aqui
    e encontrei Sofia
    saberás na Helena de Paris
    porque lhe levo flores
    de vez em quando
    Apenas algumas pedras de praia
    encontro na visita

    Eu sei que não importa o lugar
    onde ficou
    mas sabe-me bem encontrar o seu nome escrito
    e dizer-lhe poemas em surdina
    num lugar diferente
    onde há lagos, patos e alfazema
    e um moinho a desfazer-se em ruína

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  2. Era uma vez,

    Todas as noites eu ando estas minhas três casas (o Um Jeito Manso, o Ginjal, a Street Photo - e devia passar também pelas Historinhas mas quase não me dá tempo e os meus 3 menininhos ainda não reivindicam muito...).

    Em qualquer destes meus poisos, será sempre muito bem vinda.

    As suas poesias, tão espontâneas, numa toada tão natural, terão sempre lugar nestes meus cantos.

    No Um Jeito Manso já lhe contei uma lembrança que me ocorreu depois de ter lido o seu poema de 21 de setembro. Depois de o ler, foi a imagem que me veio à ideia.

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