Habito a noite. Quando a casa sossega e as ruas se calam, eu movo-me como uma gata cheia de silêncios e subtilezas e esgueiro-me até aqui. Brinco com as palavras, afago livros, sento-me numa mesa carregada e onde um pequeno candeeiro tenta não perturbar a quietude da noite. Ouço poetas, dizedores, ponho-me, eu própria, a escrever palavras que não sei que caminhos percorrem ou onde me levam.
Mas tenho sono. Daqui a nada tenho que tentar parecer uma criatura normal, daquelas que vive de dia. Não posso levantar-me mais tarde pois o dia começa cedo. Tenho uma verdadeira vida dupla. Vocês que aqui me lêem não me reconheceriam se me vissem, eficiente e executiva, conduzindo reuniões difíceis. Tal como qualquer das pessoas que comigo se cruza durante o dia jamais suspeitaria que eu, aquela que ali vêem, se deita tão tarde para ler, escrever, ouvir dizer poesia, coisas assim, tão contrárias ao mundo dos negócios.
Gaivota à beira Tejo |
estavam os homens as águas os animais e as terras
cansados de luz e de não haver noite
levantei a mão
fiz rodar a terra para que se retirasse o sol
enrolei os dedos nas últimas fulgurações
teci com os cintilantes fios
a misteriosa linguagem dos astros
depois
fui pela escura abóbada
estendi a fantástica tapeçaria
para que lá em baixo ninguém perdesse o seu caminho
e nela pudesse adivinhar o doloroso humano destino
a noite ficou assim tão habitada quanto a terra
os homens podem hoje sonhar com aquilo que mal entendem
e quando o medo atribuiu um nome àquele luzeiro
dei por terminada a obra
cortei os fios como se cortasse um pedaço de mim
fui para outro hemisfério adormecer o dia
construir a pirâmide o quadrado o círculo a linha recta
as cores do mundo
e dar vida a outras incandescentes criaturas
xiça, gostei!
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