Quando aqui chego já a noite caíu há muito e venho sem ideias, a cabeça e o coração limpos. Esqueço os trabalhos do dia, preocupações profissionais ou familiares, esqueço até maleitas, tudo. Sou eu. Numa sala quase às escuras, numa mesa pouco iluminada, cercada por livros. Dir-se-ia que procuro o sossego ou que, a esta hora, gosto de sentir a leveza da solidão desejada. Mas não. Nem estou sozinha. O meu computador é muito mais que uma folha em branca: é uma janela que se abre para mundos que, de outra forma, eu jamais conheceria. O meu computador traz até aqui, à minha mesa, muita gente que fala coisas que eu gosto de ouvir.
Hoje lembrei-me de Adília Lopes. Há algo nesta mulher que me intriga. Quase acabou o curso de Física e a Física não é para todos, quem por lá perto tenha andado sabe o que aquilo é. Depois mudou para Literatura e pelos caminhos da literatura tem vindo a caminhar. Que padece de um certo tipo de psicose tem ela dito sem tabus e isso aparece muitas vezes nas suas palavras. Quando a ouço falar ou quando leio o que escreve fico sem perceber se ela fala ou escreve assim porque tem uma valente pancada, ou se se acha graça ou se é mesmo assim que ela é, infantil, irreverente, engraçada como uma menina grande e gorda.
Procurei por ela no YouTube e fui parar até um senhor fantástico: Eduardo Tornaghi. Ele diz poesia e prende-nos com a forma como diz e fala palavras engraçadas e, mais do que engraçadas, palavras muito oportunas como as que profere a propósito do mal-amado Acordo Ortográfico.
Vou acompanhar os seus vídeos. Abençoadas as pessoas que se dedicam à divulgação da bela língua portuguesa. Obrigada Eduardo Tornaghi.
Rosto de mulher impresso numa rocha no Jardim do Ginjal |
Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter
Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas
Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)
A vida
é livro
e o livro
não é livre
Choro
chove
mas isto é
Verlaine
Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico
A solidão
de Adão
antes da criação
de Eva
devia ser
terrível
mas a minha
é bem pior
os homens
que escreveram
o Génesis
não pensaram
que Adão
em vez de saudar
Eva
com um grito de júbilo
a mandasse embora
com sete pedras na mão
mas eu acho
que foi
o que me aconteceu
temendo isso
Deus
não me deu
o papel de Eva
nem o de Maria
porque também
S. José
me tinha corrido
a pontapé
['Meteorológica', para o José Bernardino, de Adília Lopes]
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