Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 novembro, 2011

Nomeado inominável: ternura a levedar na polpa dos meus dedos. Uma vontade muito branca.

  
Paredes brancas, lisas, a história à espera de escrever-se sobre elas. Escadas, caminhos, labirintos, veredas. Por onde ir, como vir?  Como chegar a tempo agora que a pressa me começa a percorrer a corpo? Detenho-me, hesito, perigosos caminhos, a ternura nos dedos, a inquietação no corpo, as veias impacientes, um latejar surdo, uma vontade sem nome.

E depois lá estás tu, espelho de mim, eu do outro lado, eu à minha espera, tu e eu iguais, o mesmo sorriso, o mesmo desejo de ir pelo caminho errado da vida. Ignoramos o olhar oblíquo dos outros, o olhar carregado de crueldade, ignoramos a fria  pedra onde estendemos o corpo apressado. 

Mas que claridade que vem, rente à terra, que luz se levanta do mais íntimo da pedra que os corpos cobrem percorridos pelo fogo. E, então, a pedra é quente, é seda, e então as árvores são as cortinas que envolvem a nossa intimidade, e o vento não é senão um afago de ternura, e então, depois, sorrimos porque brando e amoroso é o Outono.


 

[Talvez devessemos, aqui chegados, descer um pouco, até ali onde um violoncelo nos traz a Sonata de Chopin e depois voltar aqui para ouvirmos Eduardo Pitta a ler-nos o seu poema.] 

No Ginjal, junto à praia, caminhos e escadas que nos levam até ao Tejo


                  Nomeado inominável: ternra a levedar
                  na polpa dos meus dedos. Uma vontade muito
                  branca para o crime. Os dentes nas espáduas.

                  Contenção de espelhos: as espadas acesas
                  nos nevoeiros de Setembro. Palavras nítidas, velozes,
                  a claridade rente à terra. De uma crueldade sedosa, diluindo-se
                  pelo romper do dia
                  - e delas devir em pedra.

                  Veredas percorridas pelo fogo. Um brilho fugaz no
                  ar. Um perfil de árvores nuas, dispersas, austeras,
                  adiadas. O vento, implacável, de uma doçura de lâmina.



                  (Poema de Eduardo Pitta in 'Desobediência, Poemas Escolhidos'

Chopin - Sonata por Gregor Piatigorsky

  

28 novembro, 2011

Eis o que sei sobre ti: versos são folhas também

 
Escrevo estas palavras aqui no escuro da sala e, ao escrevê-las, sem nome eu, estou a deslizar entre sombras. As folhas de outono estão vermelhas e eu olho-as, pensativa. São folhas, são versos, são seiva, são palavras? E eu penso, 'que não desapareçam, que não se desfaçam' e secretamente desejo que sejam eternas, que perdurem nas suaves tardes de Outono. Olho as folhas que cobrem esta parede, olho estas palavras que vão enchendo o écran à minha frente e vejo a luz que delas vem. Que não me abandonem, que não me abandonem as palavras. E as folhas deixam passar uma luz inflamada, vermelha e eu suspeito que são as minhas palavras, as minhas palavras que tento domar, sempre à beira de serem tomadas pela paixão, vermelhas, ardentes. E eu vejo a minha sombra aqui no teclado, a minha sombra que se mistura com as folhas vermelhas e sinto que a minha alma está toda ali. E aqui, nas palavras que vão escorrendo sobre uma parede límpida.



[A seguir ao poema eu vou ouvir Chopin, esta é a semana Chopin. Vem comigo, não vem?]

Mulher contempla parede coberta de vinha virgem na Boca do Vento, sobre o Ginjal
´

                        Árvore muda de folhas vermelhas na luz de outono,
                             tudo tu cantas por mim - eu que te canto a ti.
                        Tuas ou minhas serão as ramagens que ergues na tarde?
                            Cantam meus versos teu ser, muda imagem de mim.
                        Folhas que nascem e morrem são versos de límpido timbre.
                             Eis o que sei sobre ti: versos são folhas também.
                        Alma não tem quem não crê nas veredas dos bosques eternos?
                             Listras de sombra no chão, clara suspeita de luz.


                         (Poema de Frederico Lourenço in 'Clara suspeita de luz')

Chopin - The Minute Waltz por Victor Borge e Leonid Hambro

  



 

Outono do amor que folhas moves na direcção dos corpos separados

  
Outono pesado este. Longínqua a primavera de todas as esperanças, longínquo o verão de usufruto, de corpos quentes abraçados cuja imagem um espelho na penumbra nos mostrava irradiando luz e felicidade.

Outono de folhas caídas, de aves em terra, de aves aprisionadas, outono cansado, vozes distantes, esperanças penhoradas. Mas também outono de musgos, sussurros, cumplicidades, uma resistência que começa a forjar-se.

Outono de folhas molhadas, de temor, de surdos prantos - mas também de sorrisos que se descobrem, de punhos que se adivinham, de cânticos que começam a levantar-se, agora ainda apenas em ténue surdina.

Outono, a preparação para a descida que antecede a subida. Em breve, novos sorrisos virão, as aves abrirão as suas longas asas e voarão, livres, libertas, atravessando os grandes espaços e os corpos voltarão a encontrar-se, amantes e disponíveis.




(No dia da atribuição de título de Património da Humanidade ao Fado,
Gaivota segundo Amália Rodrigues, letra de Alexandre O'Neill)


Gaivora na beira do cais
O Tejo corre,cinzento e frio, em baixo


                     Outono do amor que folhas moves
                     na direcção dos corpos separados
                     e molhas desses prantos ignorados

                     de quem da primavera conheceu o

                     movimento das aves
                     e desse movimento estas esperas
                     agora só conhece já e ouve
                     a própria descida com as folhas

                     a voz própria cansada
                     quando a vida
                     e a voz lhas está a dor tirando

                     Outono do amor outono de aves
                     e de vozes caladas e de folhas
                     molhadas de temor e surdo pranto


 
('Outono do Amor que Folhas Moves' de Gastão Cruz, in “Poemas Reunidos”)

Chopin - Nocturne no. 8 op. 27 no. 2 por Maurizio Pollini

  



26 novembro, 2011

MÚSICA NO GINJAL - Sopranos portuguesas, poucas mas boas

   
ELISABETE MATOS 
Além do que é sabido, também uma grande 'wagneriana'




Final (Liebestod) - Tristan u. Isolde - Wagner


[Segundo de três Extras na 'Música no Ginjal'] 

  

24 novembro, 2011

As mãos crescem de silêncio amarrotadas, esquecidas do pó

  
Estamos juntos e esquecemo-nos dos outros. Podemos estar no meio de outros que apenas nos vemos um ao outro. Outras vezes, isolamo-nos num recanto e esquecemo-nos que há mais mundo para além desse pequeno recanto.

Outras vezes estamos longe, sem sabermos um do outro mas, estando juntos em pensamento (e quero lá eu saber que tudo isto soe a cliché), sentimo-nos confortados com pequenas peças de recordações que se abrigaram dentro de nós.

Poderíamos entrar pela água dentro, poderíamos voar juntos, poderíamos apenas ficar sentados em frente um do outro, olhando-nos sem palavras, que nenhuma nervura de água, nenhum ar se agitaria, nenhum som seria emitido. As nossas mãos transportam o imenso silêncio que nos envolveu, um silêncio sagrado que vigiamos com respeito e saudade.

Não me queixo do destino, não. Não me posso queixar. Tenho-te a ti, tenho a felicidade imensa de me sentir amada, desejada. Tenho braços que me abraçam com um suave calor, tenho a ternura de um longo olhar que pousa manso sobre mim, tenho a música do teu sorriso brando.



[Não acabe aqui, siga pela poesia, e deixe-se ficar com Mahler, deixe-se ficar de olhos fechados, coração aconchegado]

Na Boca do Vento, sobre o Jardim do Ginjal, de frente para Lisboa, sobre o Tejo


                      Estamos tão perto
                      que aqui onde estamos
                      não nos descobre nem o ar
                      sequer a nervura das águas se agita.
                      As mãos crescem de silêncio
                      amarrotadas     esquecidas do pó
                      como as ruínas da urze.


                      ('Cântico raso' de Catarina Nunes de Almeida in Bailias)
  

MÚSICA NO GINJAL - Sinfonia

  
SYMPHONIE nr.2   Urlicht
(Gustav Mahler 1860-1911)





As sinfonias de Mahler terão sido, segundo algumas opiniões, escritas quando a sinfonia, como género e modo, deveria ter já desaparecido. Para mim mas por outro lado, Mahler é de facto o último grande sinfonista, de acordo com o que a partir da segunda metade do séc XVIII passa a entender-se por sinfonia - um arranjo orquestral autónomo, com uma narrativa subjacente de natureza descritiva ou referencial; por outras palavras, uma 'aventura musical' de carácter mais ou menos dramático que, com o tempo, passa a incluir a intervenção de instrumentos solistas e depois, de partes para vozes solistas ou mesmo para grandes corais. 
A Sinfonia nº2 (Auferstehung) -Ressurreição- de Gustav Mahler, é disto exemplo, não só pela pureza da concepção, como pela dramaticidade do discurso musical que neste compositor nunca se desliga das raízes fundadoras da moderna música erudita europeia - Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert e Bruckner.
A Sinfonia nº2, em cinco andamentos -Totenfeier; Ländler; In ruhig fliessender Bewegung; Urlicht; Im Tempo des Scherzos- foi a preferida de Mahler mas, também dele, as minhas preferidas são as de número ímpar, sendo esta a grande excepção.

_____________


______________

23 novembro, 2011

A greve geral não será decretada em Cantão

    
Dia 24 de Novembro, quarta feira, dia de Greve Geral. Tempos de inquietação, tempos de capitulação, tempos de avassaladora mediocridade, tempos de questionamentos vários, como chegámos até aqui?, o que fizémos nós para merecer isto?, dias de chumbo, de medo.

Ensinava-se a optimização fiscal, o enriquecimento rápido era louvado, emolulado, os proletários iam de férias a Punta Cana, as empregadas de escritório faziam ginásio e conversavam sobre as suas empregadas, todos se sentiam capitalistas, ricos e heróis.

E, um dia, toda a gente percebeu que o dinheiro se tinha evaporado - e, nesse dia, toda a gente acusou os seus governantes e, de seguida, quase todos exigiram outros governantes e, no dia seguinte, os que ganharam as eleições desataram a fazer muito pior, a cortar subsídios e ordenados, a aumentar impostos, e agora este nosso governante contradiz o que diz o presidente e cola-se às posições de uma governante alemã que quer mandar em toda a Europa (que já manda em toda a Europa) e que nos arrasta a todos para a falência.

E agora os homens e mulheres deste país, mais pobres, ameaçados, assustados, temem pelo seu futuro e percebem que estão a ser vítimas de quem apenas segue o rasto do dinheiro.

E agora, todos olham uns para os outros, não percebem o que aconteceu, não sabem como foi possível que toda a esperança tivessem desaparecido, não percebem porque parece o futuro uma coisa tão assutadora - e interrogam-se. Olham uns para os outros e interrogam-se. Onde estão hoje os homens (e as mulheres, claro!) fortes, determinados, que ainda procuram um certo e emplumado pássaro entre as nuvens, onde estão os cavaleiros do vento, os poetas, os guerreiros? Onde estão os homens que ainda se sentem vivos e invencíveis? Onde?

A greve geral pode não ter sido decretada em Cantão mas, no dia 24 de Novembro de 2011, foi decretada em Portugal, Europa.



[Marche mais um pouco, vamos até onde Rimsky Korsakov nos leva a ouvir mais uma história de Xerazade]

Não é uma manifestação - é a saída dos barcos depois de uma manhã de trabalho, num sábado


                     A greve geral não será decretada em Cantão. Não só
                     porque Malraux nunca mais escreverá essa frase
                     mas porque Deng Xiaoping disse que ser rico é ser herói.
                     Agora os proletários lutam para ser capitalistas
                     e o socialismo está de pernas para o ar.
                     Só eu não sigo a linha.
                     trago comigo a obsessão metafísica
                     eu sou eu mesmo a greve geral
                     que não vai ser decretada em Cantão.
                     A não ser que de repente os proletários
                     comecem a ler Li Bai
                     e em vez de seguirem o rasto do dinheiro
                     procurem 'um pássaro entre nuvens'
                     cavaleiros do vento
                     como eu
                     em Cantão.


                     ('Greve Geral em Cantão' de Manuel Alegre in 'Livro do Português Errante')
  

MÚSICA NO GINJAL - Sinfonia

   
ШЕХЕРАЗАДА СЮИТА (SUITE XERAZADE) 
Рассказ царевича Календера (A história do príncipe Kalender)
(Nicolai Rimskiî-Korsakov 1844-1908)





Os músicos são contadores de histórias e deleitam-se com as histórias que a música conta. Consta que Bernstein, um dia perguntou, antes de começar um ensaio da Filarmónica de New York, 'Já conhecem a história que se conta nesta música?'.
'As mil e uma noites' é a história das histórias e seria difícil que não tivesse aparecido quem a quisesse contar em música; será o que terá levado Rimskiî-Korsakov a escrever esta Suite Sinfónica em que se descrevem as artes usadas por uma das mulheres do sultão -Xerazade- para escapar de morte certa, devido à traição perpetrada por uma das concubinas do harém. O sultão ao tomar conhecimento da traição, decidiu ficar uma noite com cada mulher e mandá-las matar, uma a uma, na manhã seguinte. Quando chegou a vez de Xerazade, ela propõe-se contar uma história de encantar; o sultão acedeu, movido pela curiosidade e assim ficou, noite após noite, ouvindo enfeitiçado as intermináveis aventuras e peripécias com que ela o deslumbrava e acabando, ao fim de 1001 noites, por perdoar a todos e casar com ela.
A peça, com quatro andamentos - O mar e o navio de Sindbad; O príncipe Kalender; O jovem príncipe e a jovem princesa; Festival em Bagdad- foi estreada em 1888, com direcção de orquestra do autor e veio ainda, mais tarde, em 1910, a ser adaptada à dança pelos Ballets Russes, de Serguei Diaguilev, com coreografia de Mikhaíl Fokine.

_____________

OBRA COMPLETA AQUI 

_____________

22 novembro, 2011

Estou tão perto dos seres mortais que me alegra o poema descontínuo

  
Quem é este homem que se cruza comigo na rua, me olha, se dirige a mim, me olha, olhar fixo?

Qualquer coisa de homem perdido de si próprio, desencontrado do seu destino, no seu olhar intenso. Não desviou, nem por um segundo, o olhar de mim. Queria dizer-me qualquer coisa mas não concluíu. Começou a dizer '... eu conheci bem isto aqui, antes de ...' e calou-se. Esperei mas não disse mais nada, olhava apenas. Vim-me embora. Um homem que vive na sombra do seu destino. Não havia no seu olhar nem um ténue fio de esperança. Lembrava o passado talvez, desinteressado do futuro, apagando-se a si próprio como se apagam os riscos sem valor.

Qualquer coisa neste homem me fez lembrar de ti. Assustei-me com medo que fosse um presságio, afastei-me apressada, este homem era demasiado humano, demasiado mortal e eu a ti quero-te para sempre.




[Ah, não fique aqui, venha comigo, precisamos de música, venha ouvir e venha ver o fantástico maestro que dirige a orquestra na 7ª sinfonia de Bruckner]


'Menina, tire-me uma fotografia' - tirei.
Olhou-me nos olhos, uma angústia no olhar.
Fiquei impressionada com a intensidade da sua angústia.

                         
                          estou tão perto dos seres mortais
                          que me alegra o poema descontínuo,
                          mais ténue do que um fio.

                          digamos: odeio-me.

                          não sou eterno,
                          mas leio na vegetação
                          futuros augúrios

                          e é este o meu presságio:
                          viveremos para sempre na sombra
                          que a morte se esquece de apagar.


                         (Poema XXXIII de Ricardo Gil Soeiro in Espera Vigilante)

MÚSICA NO GINJAL - Sinfonia

  
SYMPHONIE Nr.7   Scherzo
(Anton Bruckner 1824-1896)



Esta Sinfonia nº7 tem também uma história rocambolesca; há dela duas versões muito próximas no tempo: a primeira, terminada em Agosto de 1883 mas estreada em Leipzig apenas em 30 de Dezembro de 1884 e a segunda, definitiva, de 1885 e resultado de uma revisão decidida pelo compositor, com algumas influências determinantes de outros músicos, envolvendo trocas de instrumentos e alterações de tempo. Da primeira versão, existe o manuscrito original mas perdeu-se a cópia; ora, as alterações que deram origem à versão definitiva, a segunda, tinham sido feitas sobre esta cópia que se perdeu; nela foram apagados alguns trechos e outros adicionados, tendo sido também apostos comentários vários, de diferentes pessoas. Daqui resulta que as cópias publicadas a partir de então e que dão suporte à versão que hoje conhecemos, são livres interpretações do manuscrito original, perturbado por estas inúmeras intervenções de vários autores. Numa demonstração da autonomia da obra em relação ao autor, nada disto prejudica a fruição da fina harmonia e elevada complexidade desta sinfonia.
 
_____________

  

_____________

   

21 novembro, 2011

Os gritos trespassam a noite e pela incisão começam a entrar cães de inverno e potros azuis

  
Aqui estou nesta minha sala, uma pequena luz mal iluminando o que escrevo. Assim gosto de estar. Só eu. Na noite escura, eu e os meus livros, eu e as minhas palavras, eu e os meus pensamentos.

E então, como um gato vadio, chega-me a tua imagem. Entra pela janela, salta-me para o colo, roça o pêlo macio por mim, traz o teu cheiro, traz-me o teu olhar. Olha-me o vadio, olha-me impudico. Mal se vê, ninguém o vê, confunde-se com o escuro da sala, ninguém dá por ele. Só eu o sinto, só eu o vejo. Gato escuro, moreno, esguio. Sorrateiro, desliza, roça-me as pernas, olha-me as pernas, e eu deixo-o, és tu que atravessas a noite, vens do lado do rio, vadio, vadio, e deixo-te entrar, deixo-te estar. Gato com cio, atravessas  a noite ao encontro do meu cheiro.

Interrompo os meus livros, calo as minhas palavras. Depois, quando me sinto satisfeita, saciada, a saudade acalmada, deixo-te ir. Abro de novo a janela e tu, gato vadio, lá vais, pelos telhados, atravessas a cidade, voltas ao rio, até que eu lá vá, ver-te de longe. E só eu te vejo, gato vadio, memória amada, cavalo alado.



[Siga o meu gato até lá mais abaixo, até onde Schumann nos invade com o seu Romanze]


Nas rochas, quase se confundindo com elas, gato vai rente ao Tejo
                   

                        Gritam os gatos todo o serão estridências
                        de cio que não pressionam mas despertam
                        a minha gata. Erguemos o olhar,
                        eu do livro ela do sono redondo e aspiramos
                        uníssonas correntes de ar gotículas nas vidraças.
                        Não sei que cheiros lhe fazem fremir o negro nariz.
                        Fecho as cortinas espevito o lume
                        volto ao livro, de vez em quando
                        os gritos trespassam a noite e pela incisão
                        começam a entrar cães de inverno e potros azuis.


                        ('Nocturno com gatos' de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra')

   

MÚSICA NO GINJAL - Sinfonia

  
SYMPHONIE nr.4   Romanze
 (Robert Schumann 1810-1856)





Schumann compôs esta Sinfonia em Setembro de 1841, com o nº 2 de ordem de criação; não tendo autorizado que fosse publicada, procedeu depois a grandes mudanças, tanto no que se refere à forma como à orquestração e dez anos mais tarde estreou-a em Dusseldorf, dirigindo ele próprio a orquestra. A revisão que Schumann fez da inicial 'Sinfonia em Ré menor' foi profunda e a obra, destinada a uma orquestra composta por 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, timpanos e cordas, foi finalmente publicada no ano seguinte, em 1853 e uma vez que tinham já sido editadas as três outras por ele compostas, esta recebeu agora o nº4 (Opus 120). A transformação do trabalho original não teve o acordo de toda a gente e Brahms, um perfeccionista fortemente crítico e amigo do compositor, sempre se lhe opôs, sublinhando a superioridade da versão original e de tal modo estava disso convicto que veio a publicá-la em 1880, depois da morte do amigo e sob veemente protesto de Clara Schumann, ela própria compositora e pianista distinta, com quem Brahms trabalhou e manteve durante anos uma relação muito próxima.

_____________

  OBRA COMPLETA AQUI

______________

20 novembro, 2011

Passo secreta tormenta que só comigo se sente

  
Passam os dias e eu sem ti, quase não pensando em ti, feliz sem ti. Passam os dias e eu alheada de ti, feliz na minha vida longe de ti.

Mas, depois, inesperado, um momento vem que me traz o teu doce olhar, o teu terno sorriso, ou uma aragem que me traz o teu cheiro (ou a imaginação dele), que me traz a tua voz (ou o seu eco dentro de mim) - e eu recolho-me, isolo-me dentro de mim (para te ter comigo). São breves momentos, só me permito esse desvio por breves momentos - porque tenho que continuar, logo de seguida, a minha vida feliz, contigo longe de mim (contigo bem fechado dentro de mim).




            Passo secreta tormenta
            que só comigo se sente,
            mas o que mais m'atormenta
            é mostrar-me descontente
            de quem muito me contenta.

            Dessimulo que não vejo
            quem folgo muito de ver;
            é um mal muito sobejo
            mostrar contrairo desejo
            do que desejo fazer.
            Assi que, passo tormenta
            de nunca viver contente,
            mas o que mais m'atormenta
            é mostrar-me descontente
            de quem muito me contenta.  


('Passo secreta tormenta' de Diogo Brandão in '366 Poemas que falam de amor')

 

MÚSICA NO GINJAL - Sinfonia

 
SYMPHONIE FANTASTIQUE   Un bal
 (Hector Berlioz 1803-1869)



 
Première partie - Rêveries, passions
L’auteur suppose qu’un jeune musicien voit pour la première fois une femme qui réunit tous les charmes de l’être idéal que rêvait son imagination, et en devient éperdument épris. Par une singulière bizarrerie, l’image chérie ne se présente jamais à l’esprit de l’artiste que liée à une pensée musicale. Ce reflet mélodique avec son modèle le poursuit sans cesse comme une double idée fixe. Le passage de cet état de rêverie mélancolique, interrompue par quelques accès de joie sans sujet, à celui d’une passion délirante, avec ses mouvements de fureur, de jalousie, ses retours de tendresse, est le sujet du premier morceau.
Deuxième partie - Un bal
L’artiste est placé dans les circonstances de la vie les plus diverses mais partout, à la ville, aux champs, l’image chérie vient se présenter à lui et jeter le trouble dans son âme.
Troisième partie - Scène aux champs
Se trouvant un soir à la campagne, il entend un duo pastoral, le léger bruissement des arbres agités par le vent, quelques motifs d’espérance qu’il a conçus depuis peu, tout concourt à rendre à son cœur un calme inaccoutumé. Il espère n’être bientôt plus seul. Mais si elle le trompait! Ce mélange d’espoir et de crainte, ces idées de bonheur sont troublées par quelques noirs pressentiments.
Quatrième partie - Marche au supplice
Ayant acquis la certitude que son amour est méconnu, l’artiste s’empoisonne avec de l’opium; il plonge dans un sommeil accompagné des plus étranges visions. Il rêve qu’il a tué celle qu’il aimait, qu’il est condamné et qu’il assiste à sa propre exécution. Le cortège s’avance aux sons d’une marche tantôt sombre et farouche, tantôt brillante et solennelle, dans laquelle un bruit sourd de pas graves succède sans transition aux éclats les plus bruyants.
Cinquième partie - Songe d’une nuit du Sabbat
Il se voit au sabbat, au milieu d’une troupe affreuse d’ombres, de sorciers, de monstres, réunis pous ses funérailles. Bruits étranges, gémissements, éclats de rire et cris lointains. La mélodie a perdu son caractère de noblesse et de timidité; ce n’est plus qu’un air de danse ignoble, trivial et grotesque; c’est elle qui vient au sabbat. Elle se mêle à l’orgie diabolique.

(extracto adaptado das notas elaboradas por Berlioz, destinadas a ser distribuídas como programa dos concertos)

_____________



_____________
  

19 novembro, 2011

MÚSICA NO GINJAL - Sopranos portuguesas, poucas mas boas

  
RAQUEL CAMARINHA
Primeiro prémio no Concurso e Festival de Ópera Armel 2011




Aux langueurs d'Apollon - Platée - Rameau



[NB: Primeiro de três Extras na 'Música no Ginjal']
 

18 novembro, 2011

Já nos ombros se sente o ardor da sua navegação

  
O teu olhar em mim. O teu olhar. Os meus olhos que me mostram os teus olhos e que emudecem, lágrimas por detrás, saudades imensas, impotência, impotência, tu ali tão perto e, no entanto...

Regressaste mas de passagem. Já não é a mim que regressas todos os dias. No verão longínquo do nosso terno amor morri um pouco. Mas não te disse. Para quê? Para quê se tentei, logo a seguir, renascer?

Regressaste, e o teu sorriso doce entrou em mim, com o calor que as tuas mãos não me puderam dar. Ah como eu queria um abraço, um quente abraço.  Mas regressaste. Vieste sorridente, meigo, e não há lugar na terra em que o sorriso seja mais doce que o espaço que se fecha em nossa volta.

Mas o verão ficou para trás há tanto tempo. Temos agora um outono e os espelhos já não devolvem a imagem de um casal luminoso, feliz, abraçado. Não, os espelhos ficaram cegos, escuros.

Mas estou a iludir-me - não, meu amor, não regressaste, no amor não há regresso, tudo é um labirinto. Perdemo-nos no labirinto. Estamos perdidos no labirinto.



[Desça um pouco mais - a seguir ao labrinto e às dissonâncias de Eugénio de Andrade, Glenn Gould desfia as Variações Goldberg.]

No Ginjal, sobre o Tejo, olhando Lisboa

                         Pedra a pedra
                         a casa vai regressar.
                         Já nos ombros se sente o ardor
                         da sua navegação.

                         Vai regressar
                          o silêncio com suas harpas.
                          As harpas com as abelhas.

                          No verão morre-se
                          tão devagar à sombra dos ulmeiros!

                          Direi então:
                          Um amigo
                          é o lugar da terra
                          onde as maçãs brancas são mais doces.

                          Ou talvez diga:
                          O outono amadurece nos espelhos.
                          Já nos meus ombros sinto
                          a respiração das suas águas.
                          Não há regresso: tudo é labirinto.

 
                          ('Dissonâncias' de Eugénio de Andrade in Antologia Breve)
 
  

17 novembro, 2011

MÚSICA NO GINJAL - Variações Goldberg




GLENN GOULD



Bach  (Die Goldberg Variationen) Ária e Cânones 


No fim do séc XVII a música estaria a deixar de ser mero vestígio de uma antiguidade primária, mais ou menos simplista; para tal vai contribuir decisivamente a inventividade e acção de Johann Sebastian Bach (Ioan Zêbásstian Bakh), o pai da música moderna, o maior dos compositores místicos, o formalizador do contraponto e da 'fuga', o autor de incontáveis obras de génio em que se contam as suas 224 cantatas, das quais apenas 44 seculares mas todas belíssimas. A obra de Bach é muito vasta e variada mas dela é indispensável conhecer a série 'O cravo bem temperado' (Das wohltemperierte Klavier) e as 'Variações Goldberg' (Die Goldberg Variationen) - está lá tudo!
Glenn Gould manteve uma relação com o piano e desenvolveu uma forma de tocar de tal maneira próprias que não encontro maneira de o descrever em poucas linhas - é um virtuoso.

    

16 novembro, 2011

Às vezes nem sequer podemos garantir que houve um sinal

 
Quando foi? Quando foi que resolvemos que nem a memória merecia já qualquer alimento? Houve uma palavra que marcou o momento em que nos dissemos adeus? Houve um pestanejar, um trejeito, uma desatenção? Nem sei se isso interessa. Afastámo-nos, fomo-nos afastando, afastámos o olhar, afastámos as vozes, apagámos todos os vestígios - e isso é a verdade que importa.

Ainda te lembras de mim ou até o pensamento se afastou já também? Quando caminhas, quando percorres as estradas ou os campos, ainda me vês, ainda me ouves? Às vezes ainda te sorris ao lembrares-te de mim? Diz que eu consigo suportar. Sei o que isso é. Não és só tu. Perdemos os sonhos e era tão bom sonhar, não era? Fechavas os olhos e pensavas em mim, não era? Nunca dançámos, nunca vamos dançar, mr and mrs jones ou outra qualquer, nunca nos vamos enlear ao som da música, a música abandonou-nos também.

Por onde andas, amor que um dia amei?


Junto ao Farol de Cacilhas, rente ao Tejo, Lisboa já ali


                                 Às vezes nem sequer podemos garantir
                                 que houve um sinal

                                 e por isso é difícil saber se     efectivamente
                                 chegou a hora destinada a afastar os olhos
                                 dos vestígios de ti

                                 às vezes há apenas um leve fio de espuma a
                                 contornar     eficazmente     os sonhos que
                                 perdermos por nossa culpa     dando
                                 estranhos nomes ao que sempre soubemos
                                 ser inominável


                                 e os nossos dedos deixam marcas no copo    enquanto
                                 a música desiste de nós
                                 ao primeiro acorde dissonante


(Poema '8' de Alice Vieira in 'O que dói às aves')

MÚSICA NO GINJAL - Sonata Nº 4



ARTURO BENEDETTI MICHELANGELI 




Schubert  (Klaviersonate nr.4  D.537) Sonata nº4  D.537  

Franz Schubert (Frantz Chubert) nasceu em Viena no fim do séc XVIII, o que por si só diria muito mas não será demais acentuar que estamos perante um representante de um clacissismo marcado pelos músicos da 1ª Escola de Vienna - Mozart, Haydn e Beethoven; um pré-romântico que conviveu com Salieri e que deve ser visto como figura de destaque na modernização da música europeia.
Arturo Benedetti Michelangeli manteve uma relação com o piano e desenvolveu uma forma de tocar de tal maneira próprias que não encontro maneira de o descrever em poucas linhas - é um virtuoso.

  

15 novembro, 2011

Esquece o que eu escrevi, deita-te aqui perto e ouve só as minhas palavras

  
Quase todos os dias aqui venho falar um pouco contigo, contigo que me lês. Sento-me aqui e escrevo, aqui deixando estas palavras que tu, que me lês, interpretarás a teu gosto. Não sei quem és. Não te vejo. Não sei o que pensas. Conheces-me, sabes o que penso, o que sinto. E, no entanto, se eu me cruzar contigo, não saberei que lês as minhas palavras, não saberei que as recebes dentro de ti.

Mas não faz mal. Ouve apenas estas palavras. Por um momento fecha os olhos e pensa que estou aqui, do outro lado, estou aqui a murmurar estas palavras. E digo-te: afecto, voz, poesia, leituras, luz, silêncio, companhia. Com estas palavras estou a dar-te a mão. Prende também a minha. Sente o calor da minha mão, sente.

Gostava também de ouvir a tua voz. Diz-me que estás aí. Diz-me que, quando acabas de me ler, as minhas palavras continuam vivas dentro de ti, diz-me.

Pensas que são palavras sem sentido, pensas que palavras são palavras, que as leva o vento, não é? Mas não, as palavras são as minhas células, sou eu, é a minha respiração, é a minha voz. Por isso, vem, chega-te aqui, devagarinho, ouve: esta sou eu, esta que ama a vida quer estar aqui contigo. Sê feliz, vive a vida, festeja a vida. E diz-me que me ouves, diz-me que gostas de me vir visitar. Diz.




[Desça um pouco mais e, a seguir ao poema, encontrará uma música maravilhosa (quase me apetecia dizer: maviosa), esta semana é a do piano]

Sobre um rochedo junto ao Tejo, no Ginjal, claro


                                      Esquece o que eu escrevi, deita-te aqui perto
                                      e ouve só as minhas palavras sem sentido,
                                      o balbuciar que eu solto antes da voz,
                                      tudo o que há tanto tempo trago preso na garganta.

                                      Nem o ritmo da cantilena aprendida na infância,
                                      nem a música da poesia:

                                      ouve apenas o balbuciar, o sopro antes da voz,
                                      quase um estertor, mas a dizer agora
                                      que estamos vivos.


 ('A leitora perfeita' de Luís Filipe Castro Mendes in 'Lendas da Índia')
  

MÚSICA NO GINJAL - Concerto Nº 1


YUJA WANG




Mendelssohn  (Klavierkonzert Nr.1 Op25) Concerto nº1 Op.25


Jakob Ludwig Felix Mendelssohn Bartholdy (Iacob Ludvic Félics Mendelsson Barrtoldi) tinha este imponente nome que é vulgarmmente reduzido a 'Mendelssom'; tinha também uma irmã mais velha -Fanny Cäcilie- que não sei se não terá sido tão grande como ele. Já nasceu rico e por isso, em sua casa, desde muito cedo aprendeu a conviver com a norma culta da época e desde sempre ouviu música de elevada qualidade o que, por sua vez, terá aguçado o seu finíssimo sentido musical. Felix Mendelssohn Bartholdy foi um brilhante compositor e a excepcional Yuja Wang aqui o demonstra com grande vivacidade.


     

14 novembro, 2011

No meu esconderijo preferido, vou murmurar-te o meu último sonho em câmara lenta

  
Estou aqui, eu e mais ninguém, estou aqui sozinho no meu esconderijo. Para aqui venho, sentar-me, sentir a tua ausência. Olho o rio, olho a grande cidade, e penso em ti. Todos os dias te escrevo uma carta que não sei para onde enviar. Tantas cartas já. E escrevo no computador como se fosse um diário. Ninguém lê. Mas é nas cartas que te escrevo e nas páginas do diário que nem eu leio que derramo o sangue estilhaçado que se derrama em golfadas de um coração inchado de saudade. Sento-me aqui e chamo por ti. Mas não vens. O rio corre e leva restos de árvores, restos. Leva a minha esperança junto com os restos. Para aqui venho e, quando venho, venho a pensar que te vou aqui encontrar, a sorrir, à minha espera. Mas não, não vens, pensas que naufraguei e é verdade, naufraguei sem brilho, naufraguei por desamor. Mas deixa-me dizer-te um segredo, deixa que te conte, num murmúrio, o meu último sonho, deixa, escuta, vou dizer baixinho. Não tenho mais ninguém a quem o dizer, escuta, escuta, que vou dizer-te ao ouvido, vem, chega-te aqui.



[Ah, e não deixe de seguir até lá mais abaixo que há um piano que, ao de leve, espera por nós]

Na solidão do pensamento,no jardim do Ginjal, rente ao Tejo


                                Suponho que vou alcançar:
                                e espero, espero pelos fragmentos
                                de um diário que não chega.

                                Vamos fingir em conjunto,
                                 derramando medo sobre
                                 a escrita do desastre.

                                 Nas veias inchadas,
                                 vai escorrendo
                                 o sangue estilhaçado.

                                 Leio os dias e dedilho a guitarra:
                                
                                 estou a naufragar sem brilho,
                                 mas, no meu esconderijo preferido,
                                 vou murmurar-te
                                 o meu último sonho
                                 em câmara lenta.


                                (Poema XXV de Ricardo Gil Soeiro in Espera Vigilante)                             

MÚSICA NO GINJAL - Prelúdio nº 5


VALENTINA LICITSA


Rachmaninov (Прелюдия Nº5 Op.32) 


Sergueî Rakhmaninov (Сергей Рахманиновъ) foi essencialmente um pianista de ânimo; mas foi também um grande compositor.
A exuberância da sua alma russa transparece na cor e na exaltação dos grandes momentos que escreveu, especialmente nos concertos para piano com orquestra. Após a revolução de 1917, foi viver para os Estados Unidos onde estabeleceu uma sólida amizade com Vladimir Gorovitss (Владимир Горовиц) que foi um dos grandes intérpretes das suas obras. Actualmente, Valentina Licitsa (Валентина Лисиця), com indiscutível talento e virtuosismo a que se junta a suave beleza da sua presença, quase materializa a música deste grande romântico tardio.

13 novembro, 2011

Veio o Outono, a rua toda coberta de folhas daquela cor indecisa entre o castanho e o verde

  
Do verão que se prolongou até ao outono, passámos directamente para a invernia. Chove, faz um vento inclemente, troveja, os dias estão pequenos, escuros.

Há ainda vestígios de outono: algumas paredes cobrem-se de vinha virgem; mas, não tarda, as folhas cairão deixando a nu os troncos despidos, a parede por detrás. Há uma tristeza húmida no ar, um desalento pesado.

Às vezes arranjo-me com rigor, o meu melhor vestido ou um elegante saia-casaco, ponho as minhas meias de seda, calço uns sapatos pretos de salto bem alto e vou. Mas não é para ti que vou, já não é para ti. O sonho acabou num longínquo verão, não resistiu ao outono.



[O momento requer um piano. Por favor, sigam até um pouco mais abaixo, Monsieur Satie vous attend)


Parede na Boca do Vento sobre o Ginjal

                                  
                                    Veio o Outono, a rua toda coberta de folhas
                                    lanceoladas daquela cor indecisa entre
                                    o castanho e o verde, belíssima. Pensei:
                                    Prévert, Kosma, folhas mortas, querem lá ver
                                    é o fim, mas não, apenas tu que chegas
                                    o tronco cingido por um vestido breve, pernas
                                    determinadas e em equilíbrio sobre uns
                                    sapatos pretos, muito altos, a brilhar.


                                   (Poema de Rui Caeiro in 'O quarto azul e outros poemas')

 

MÚSICA NO GINJAL - Gymnopédie nº1


ALDO CICCOLINI  




Satie      Gymnopédie nº1

Éric Satie era um homem de pensamento esotérico, excêntrico, empregado dos correios e coleccionador de chapéus de chuva; escrevia a si próprio, a convidar-se para jantar e ficava ansiosamente à espera de ver chegar o carteiro.
Trabalhou como músico de cabaret e apresentava-se declarando, 'Erik Satie, comme tout le monde...'; se quiséssemos arrumá-lo teria que ser numa gaveta incerta, entre um post-impressionismo impreciso e um minimalismo à venir. Nos interstícios de tudo isto, escreveu a música de outro planeta que aqui se ouve e que Aldo Ciccolini divulgou com grande notoriedade.

   

10 novembro, 2011

Do mar traziam o que é do mar: doçura e ardor nos olhos fatigados

 

Vieste. Sei que vieste. Estás por aí. Andas pela noite como um gato vadio, como um cão sem dono. Andas pela noite como um homem desamado, como um homem que não tem uma mulher que o espere quando chega de longas viagens. Talvez percorras as ruas chamado pelo brilho de umas unhas brilhantes, de jóias de vidro brilhante, luzes fátuas, talvez, não sei. Não sei de ti.

Vieste de longe, atravessaste o mar e eu não sei de ti. Mas imagino-te doce, imagino os teus olhos fatigados, imagino os teus olhos percorrendo os livros de poemas, percorrendo vadio as ruas frias e chuvosas.

Chegaste, percorres as ruas, as livrarias, o teu olhar percorrerá o rio, pensarás talvez em mim quando olhares as águas que correm para o mar ou quando vires uma gaivota elevando-se nos ares com as suas longas e brancas asasa e, um dia, com elas, partirás de novo.

Não te ouvirei dizer o meu nome, não me ouvirás dizer o teu nome. Os nossos nomes continuarão silentes dentro de nós.

Vieste, pois, de passagem. Apenas de passagem. 


Casal que veio de longe e que vai - no Ginjal, rente ao Tejo

                     Vinham ao fim do dia.
                     Talvez chamados pelo brilho
                     dos dentes, ou das unhas,
                     ou dos vidros.

                     Eram de longe.
                     Do mar traziam
                     o que é do mar: doçura
                     e ardor nos olhos fatigados.

                    Chegavam, bebiam
                    a púrpura dos espelhos,
                    e partiam.
                    Sem declinar o nome.


                    ('De passagem' de Eugénio de Andrade in Antologia Breve)

MÚSICA NO GINJAL - A guitarra portuguesa

 

ARMANDO FREIRE (Armandinho) - VARIAÇÕES EM LÁ MENOR




Pedro Caldeira Cabral  

Pedro Caldeira Cabral nasceu em Lisboa e já em miúdo ouvia em casa música barroca e música dos compositores românticos alemães, o que terá imprimido um cunho clássico ao seu gosto. Aos quinze anos, muda de orientação e dedica-se a tocar guitarra nas tabernas dos bairros populares da cidade. Autodidacta assumido, dedica-se desde logo aos seus próprios temas e assim vai definindo a sua identidade como compositor. Muito influenciado pela música que se ouve nos locais que frequenta, desenvolve um estilo de compor e um modo de interpretar que mostra afinidades com a musica medieval e com a música popular portuguesa. Foi fundador dos grupos «Lusitani Musici» e «La Batalla» e é também um dos músicos que mais tem contribuído para a evolução da Guitarra Portuguesa.

Armando Augusto Freire, foi um dos mais proeminentes executantes de guitarra portuguesa e figura de grande influência na evolução do fado. O fado tradicional, antigo, tem três modos ou estilos: 'o menor', 'o corrido' e 'o mouraria'. Com o tempo, foram aparecendo outras formas -o Armandinho, o Franklin, o Peniche, o Alexandrino, o Maria Vitória, etc.- umas mais, outras menos fundacionais mas todas mantendo, na sua estrutura de base, a característica dos primitivos, com pequenas alterações.

 

09 novembro, 2011

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio

  

E então vieste. Atravessaste os mares e voaste até a este rio que corre vagarosamente para o mar. Talvez te sentes, sozinho, olhando o mar. Talvez te sentes sozinho pensando que nenhuma mulher esperou por ti, nenhum abraço te esperou. Voaste para uma cidade fria, triste, escorrendo chuva como lágrimas e não tinhas ninguém à tua espera. O rio corre, a vida corre, e tu limitas-te a ver a vida a passar. Nem uma mão que enlace a tua, nem um sorriso pousando carinhoso no teu rosto. A vida corre e tu não vais com ela, tu ficas sentado sozinho a uma margem desolada, numa cidade triste e escura. Talvez penses que, se quisesses, terias beijos, carícias, talvez penses isso. Mas não, não terias isso, terias apenas o afecto de quem sabe que a vida às vezes nos reserva a surpresa de nos desvendar uma alma sensível que toca a nossa alma sensível. Nem beijos, nem carícias - terias apenas a convergência de um olhar solidário na direcção deste rio que tanto amo, apenas as palavras de quem ama as palavras, terias apenas o meu sorriso. Não te iria desassossegar, claro que não. Quando te sentares, aí onde te sentas, abrigado da chuva ou à beira do rio, ou quando regressares, lembrar-te-ás de mim sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova, porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos. Mas eu penso em ti aqui tão perto de mim e fico tão desolada, tão triste. Sinto-me uma criança crescida, uma pagã inocente, sem flores no regaço, triste, sem sequer poder recordar-te.

               
Sentados à beira rio

                                 Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
                                 Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
                                 que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
                                      (Enlacemos as mãos.)

                                 Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
                                 passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
                                 vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
                                     mais longe que os deuses.

                                 Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
                                 Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
                                 Mais vale saber passar silenciosamente
                                      e sem desassossegos grandes.

                                  Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
                                  nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
                                  nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
                                      e sempre iria ter ao mar.

                                  Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
                                  se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
                                  mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
                                       ouvindo correr o rio e vendo-o.

                                  Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
                                  no colo, e que o seu perfume suavize o momento -
                                  este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
                                      pagãos inocentes da decadência.

                                   Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
                                   sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
                                   porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
                                        nem fomos mais do que crianças.

                                   E se antes do que eu levares o o bolo ao barqueiro sombrio,
                                   eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
                                   Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
                                        pagã triste e com flores no regaço.



                                   ('Vem sentar-te comigo Lídia' de Fernando Pessoa - Ricardo Reis)