Aqui estou nesta minha sala, uma pequena luz mal iluminando o que escrevo. Assim gosto de estar. Só eu. Na noite escura, eu e os meus livros, eu e as minhas palavras, eu e os meus pensamentos.
E então, como um gato vadio, chega-me a tua imagem. Entra pela janela, salta-me para o colo, roça o pêlo macio por mim, traz o teu cheiro, traz-me o teu olhar. Olha-me o vadio, olha-me impudico. Mal se vê, ninguém o vê, confunde-se com o escuro da sala, ninguém dá por ele. Só eu o sinto, só eu o vejo. Gato escuro, moreno, esguio. Sorrateiro, desliza, roça-me as pernas, olha-me as pernas, e eu deixo-o, és tu que atravessas a noite, vens do lado do rio, vadio, vadio, e deixo-te entrar, deixo-te estar. Gato com cio, atravessas a noite ao encontro do meu cheiro.
Interrompo os meus livros, calo as minhas palavras. Depois, quando me sinto satisfeita, saciada, a saudade acalmada, deixo-te ir. Abro de novo a janela e tu, gato vadio, lá vais, pelos telhados, atravessas a cidade, voltas ao rio, até que eu lá vá, ver-te de longe. E só eu te vejo, gato vadio, memória amada, cavalo alado.
[Siga o meu gato até lá mais abaixo, até onde Schumann nos invade com o seu Romanze]
Nas rochas, quase se confundindo com elas, gato vai rente ao Tejo |
Gritam os gatos todo o serão estridências
de cio que não pressionam mas despertam
a minha gata. Erguemos o olhar,
eu do livro ela do sono redondo e aspiramos
uníssonas correntes de ar gotículas nas vidraças.
Não sei que cheiros lhe fazem fremir o negro nariz.
Fecho as cortinas espevito o lume
volto ao livro, de vez em quando
os gritos trespassam a noite e pela incisão
começam a entrar cães de inverno e potros azuis.
('Nocturno com gatos' de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra')
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