Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

21 novembro, 2011

Os gritos trespassam a noite e pela incisão começam a entrar cães de inverno e potros azuis

  
Aqui estou nesta minha sala, uma pequena luz mal iluminando o que escrevo. Assim gosto de estar. Só eu. Na noite escura, eu e os meus livros, eu e as minhas palavras, eu e os meus pensamentos.

E então, como um gato vadio, chega-me a tua imagem. Entra pela janela, salta-me para o colo, roça o pêlo macio por mim, traz o teu cheiro, traz-me o teu olhar. Olha-me o vadio, olha-me impudico. Mal se vê, ninguém o vê, confunde-se com o escuro da sala, ninguém dá por ele. Só eu o sinto, só eu o vejo. Gato escuro, moreno, esguio. Sorrateiro, desliza, roça-me as pernas, olha-me as pernas, e eu deixo-o, és tu que atravessas a noite, vens do lado do rio, vadio, vadio, e deixo-te entrar, deixo-te estar. Gato com cio, atravessas  a noite ao encontro do meu cheiro.

Interrompo os meus livros, calo as minhas palavras. Depois, quando me sinto satisfeita, saciada, a saudade acalmada, deixo-te ir. Abro de novo a janela e tu, gato vadio, lá vais, pelos telhados, atravessas a cidade, voltas ao rio, até que eu lá vá, ver-te de longe. E só eu te vejo, gato vadio, memória amada, cavalo alado.



[Siga o meu gato até lá mais abaixo, até onde Schumann nos invade com o seu Romanze]


Nas rochas, quase se confundindo com elas, gato vai rente ao Tejo
                   

                        Gritam os gatos todo o serão estridências
                        de cio que não pressionam mas despertam
                        a minha gata. Erguemos o olhar,
                        eu do livro ela do sono redondo e aspiramos
                        uníssonas correntes de ar gotículas nas vidraças.
                        Não sei que cheiros lhe fazem fremir o negro nariz.
                        Fecho as cortinas espevito o lume
                        volto ao livro, de vez em quando
                        os gritos trespassam a noite e pela incisão
                        começam a entrar cães de inverno e potros azuis.


                        ('Nocturno com gatos' de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra')

   

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