Ginjal e Lisboa
30 junho, 2013
28 junho, 2013
Às vezes é um sopro que revira o mundo no ventre do tempo
Sou tão mau exemplo. Não consigo dar lições, tirar grandes conclusões. Não sei bem explicar o que faço, porque faço. Não é falsa modéstia, não é mesmo. Não sei citar nomes de personagens, não consigo lembrar-me de excertos que uma vez me prenderam, não consigo decorar poemas. Nada. Gosto, fico presa enquanto leio, vivo ao máximo, e depois apago. Bem, não apago mesmo. Será mais correcto dizer que arquivo. Volta e meia lembro-me de coisas que estão arrumadas no passado.
Mas desprendo-me do que arquivo porque quero estar sempre muito aberta ao que via acontecendo. Sei, isso sim, que estou disponível para ver o que há para ser visto e viver o inesperado que nos surpreende a cada momento - assim o consigamos perceber.
E não sou dada a saudosismos, não comparo novas situações com anteriores. Recomeço a cada instante e, assim renascendo, vou vendo cada coisa com um olhar que é sempre o primeiro. E assim me deslumbro.
Pode ser uma música, a sonoridade de umas palavras, pode ser uma luz branca tombando sobre o rio, pode ser uma aragem que me levante a saia, pode ser um grito de gaivota, pode ser um gesto, um abraço mais sentido, um beijo dado com o coração. Com tudo me encanto.
Por isso estou sempre preparada para uma nova vida. A ideia do recomeço exerce uma tremenda atracção sobre mim.
[E eis que entra aqui no Ginjal um novo poeta: Nuno Costa Santos, a quem dou as boas vindas. A seguir temos toda a vitalidade esfuziante da orquestra e dos coros juvenis Simón Bolívar conduzida por Gustavo Dudamel que também parece viver em permanente estado de felicidade]
Cair do dia em Cacilhas, rente ao Tejo, de frente para Lisboa |
Às vezes é um insecto que faz disparar o alarme
um zumbido que detona o coração.
Às vezes é uma vírgula que tomba na frase
uma cabeça que desaba num ombro qualquer.
Às vezes é um fósforo
que resplandece venturosas entradas
no dicionário dos dias.
Às vezes nem isso.
Às vezes é um sopro que revira o mundo
no ventre do tempo
como quem se prepara para uma nova vida.
['Às vezes é um insecto que faz disparar o alarme' de Nuno Costa Santos in 'Resumo- a poesia em 2012]
Gustavo Dudamel conduz a Orquestra da Juventude Simón Bolívar e o Coro Nacional Juvenil que interpretam a 2ª sinfonia de Gustav Mahler (Ressurreição)
E chamo a vossa atenção para o comentário abaixo pois há coisas que merecem reflexão e todo o nosso apreço.
26 junho, 2013
Luis Miguel Cintra diz "A instabilidade da Fortuna" do disco "X Canções de Luís de Camões"
Obra prima da poesia maneirista portuguesa, estas cantigas integravam a primeira edição de 1595 das "Rimas" de Luis Camões
25 junho, 2013
ainda estou à espera que apareças para que tudo se apague à tua minha volta
Recebi uma mensagem, hoje apareço por lá. A mensagem era anónima e o conteúdo pouco explícito. E, no entanto, nem por um instante duvidei que fosse tua. Preciso de confessar que o meu coração disparou? Inquieto, surpreso, fiquei encostado à parede, ao sol, e tanto calor que estava, pensando. Apareces? Onde? A que horas? Pensando, e tanto, tanto nervosismo: como estarás? Será que cortaste o cabelo e me vais aparecer de cabelo curo, espetado, queimada pelo sol, outra? Ou que me vais aparecer uma senhora, bem vestida, distante? Ah batia-me o coração de medo, tanto medo, e se os nossos corpos já não se reconhecem? E se as palavras e o afecto se esqueceram de nós?
Dizia alto, como se zangado, julgas que é assim? Onde queres tu que eu te espere? E quem te diz que ainda te espero? Mas, dentro de mim, eu sabia a que lugar te estavas a referir, a que hora do dia esperarias que eu te aguardasse. Mas quanta insegurança: e se não era? E se, não era ali, mas num outro lugar, numa outra hora? Aparecias e eu não estava lá? Tanto tempo a pensar em ti, esperando que regresses, que expliques porque partiste, que me digas se me queres ou se me tornei descartável, querendo ver-te arrependida, chorando de saudades, sonhando que te ias atirar nos meus braços, desculpa, desculpa, pensei que podia existir sem ti mas não posso, desculpa-me, receber-me de volta. E eu, sem fazer perguntas, recebendo-te num longo abraço, feliz por te ter comigo que isso me basta. Romântico. Patético.
E agora sem saber onde te esperar.
Não fui trabalhar. Logo de manhã para lá. Sabia que virias pela tardinha mas podias vir logo de manhã. Inseguro, eu, vê tu o que me fizeste. Todo o dia a olhar para todos os lados, a tentar descobrir-te num cacilheiro, ou talvez venhas a pé, ou, quem sabe?, talvez desças dos céus. Todo o dia. Todo o dia a andar de um lado para o outro, uma inquietação, uma inquietação, e nada. Percorri mil vezes cada cais que entra pelo rio, percorri os caminhos todos, entrei em cada ruína, escutei cada som, podias estar nalgum beiral e chamar por mim, podias estar num qualquer quarto de uma qualquer casa sem janelas, sem telhado, podias vir num veleiro, subir as escadas da muralha e sair do fundo do mar.
Nada. Já é tarde e ainda não apareceste. Porque te demoras? Porque te demoras tanto? Não saberás que me despedaças? Vem. Vem.
Mas talvez ainda seja cedo, o sol ainda não se pôs, talvez venhas quando o sol mergulhar no rio. Talvez venhas quando eu estiver trémulo, vencido, cheio de medo e solidão, talvez desças, intangível e bela, sobre o meu corpo rendido quando me deitar sobre as águas.
Fazes-me sofrer. O meu coração está frágil, cansado. Vem, vem, vem. Desculpa-me.
Fazes-me sofrer. O meu coração está frágil, cansado. Vem, vem, vem. Desculpa-me.
[Gosto do poeta aqui abaixo, um poeta que descobri recentemente, João Vasco Coelho. A seguir Gustavo Dudamel traz-nos uma outra sonoridade porque é de músicas assim que o momento sente a falta]
No Ginjal, percorrendo os caminhos do Tejo - Lisboa do outro lado |
ainda estou à espera que apareças
para que tudo se apague à tua minha volta
e a cabeça se cale enfim
ando pálido mal escrito
no silêncio das ruínas
porque te demoras? penso tanto
tenho o céu encostado no ouvido
desde que me disseste
que ias aparecer
['Reconciliação' de João Vasco Coelho in 'Na ordem do dia']
24 junho, 2013
há coisas pelo meio - distância ecos obscuridade
A paisagem é tranquila, imensa, muito bela. O rio corre, azul e fresco, ligeiro, as gaivotas recolheram e já não cruzam os céus gritando. O silêncio é muito leve, e entra nas nossas almas, e a paz é total. Cai a noite devagar.
Mas, rente ao rio, caminha uma mulher. Vai sem pressa, olha o horizonte, detém-se espreitando as águas, parece que procura alguém no fundo ou nas lonjuras do mar. Mas não há ninguém. Olho-a de longe. Tão discreta vai que mal se vê. Podia ser uma sombra esquecida numa parede.
Mas pára, espera, espreita as águas. Talvez espere algum cavalo negro, vigoroso, que saia, resfolegando, do fundo do mar. Talvez ela conheça o segredo que pensei que apenas eu conhecesse.
Em surdina, rogo que o cavalo lustroso, molhado, veias salientes no pescoço, não apareça hoje, que a mulher silenciosa não saiba dele. Que o cavalo negro seja um segredo só meu.
Não tenho mais segredos. Não sei latim, nunca tive interesse numa língua que já ninguém fala, gosto de línguas vivas, das que entram na nossa boca, molhadas, maliciosas, não sei de mitologias, nada sei de figuras religiosas, místicas, sofredoras. Nada sei de figuras presas às páginas de um livro velho, nada sei de quase tudo. Nada sei daquela mulher que ali vai. Nada sei de mim. Não tenho segredos mas não sei de mim. Nem sei se aquela que ali vai, silenciosa e sem pressa, sou eu.
Não tenho mais segredos. Não sei latim, nunca tive interesse numa língua que já ninguém fala, gosto de línguas vivas, das que entram na nossa boca, molhadas, maliciosas, não sei de mitologias, nada sei de figuras religiosas, místicas, sofredoras. Nada sei de figuras presas às páginas de um livro velho, nada sei de quase tudo. Nada sei daquela mulher que ali vai. Nada sei de mim. Não tenho segredos mas não sei de mim. Nem sei se aquela que ali vai, silenciosa e sem pressa, sou eu.
Por isso não posso contar da história deste cavalo negro que, à noite, sai do mar para galopar, alvoreado, debaixo da minha janela, que sobe sem medo a estreita escada que leva ao quarto onde espreito a lua sobre o rio, enquanto ouço a voz de alguém que tantas vezes lê livros numa língua que desconheço, uma língua que parece envolta em cinza e sombras. Lê para si próprio ou para alguém que viveu noutros tempos. Ou para mim, não sei. Não sei de nada. Tantos segredos. Tanta distância, tantos ecos. Tanta obscuridade.
[Abaixo da mulher misteriosa que caminha rente ao rio, há mais um poema de João Miguel Fernandes Jorge, um poema que, tal como todos os outros, é uma bela oferenda. A música que se lhe segue é outra interpretação do Quarteto de Cordas Simón Bolívar]
Entardecer no Ginjal, rente ao Tejo |
Terra e céu. O cavalo negro à beira do rio
gelado. O pão que Märta cortou, em Luz de
Inverno, esboroa-se em duas partes
à semelhança das duas igrejas quase desertas
nas planícies de Upsala - Nosso Senhor
Jesus Cristo na noite em que foi traído.
A imagem é um campo de neve: o que nos
abandona não se une às pedras ao silêncio de
deus
ao latim, que por um momento emerge na sua nudez de
língua viva
há coisas pelo meio - distância ecos obscuridade
[Poema XXIX de João Miguel Fernandes Jorge, in Oferenda, belo livro com pinturas de Jorge Pinheiro]
além dos lábios procurava gentileza
O homem que aqui passa no rio é um solitário. Tem um corpo bonito, tisnado, tem um rosto também bonito, e passa aqui, à minha frente, olhando a cidade, o rio, o horizonte. Quer perder-se no oceano, esquecer a boca que para ele se fechou pouco tempo antes.
Antes de embarcar procurou-me. Eu estava ao sol, no meio dos gatos e das gaivotas, aconchegada nas rochas molhadas, pensando em palavras, em sombras, em raízes, no fundo do mar.
Chegou apressado, espantou as gaivotas, afugentou os gatos, avançou para mim, braços fortes, peito quente, e agarrou-me. Os lábios sedentos, entreabertos, procuraram a minha boca. Não cuidou de antes tocar a minha alma, não cuidou de antes roçar minha a pele. Não. Avançou como um guerreiro sobre fortaleza já conquistada.
Fechei os lábios. Pensei: não, assim não.
O homem tisnado, forte, apressado, deu um passo atrás e olhou-me, admirado. Porquê?, quis saber.
Não fui capaz de dizer nada. Calei-me.
Ele olhou-me com espanto e ainda desejo, essa tua boca de ameixa madura, deixa-me comê-la.
Mantive os lábios cerrados. Tantas coisas para dizer. Tanta vontade de me aninhar no colo, pedir para me levar no veleiro, deixar-me ir rente à água, as gaivotas talvez a voar junto a mim. Mas não disse, a ameixa madura sangrava de solidão.
E, por isso, sem um beijo, sem uma palavra, o homem tisnado fez-se à água, solitário, silencioso.
[Abaixo do homem que não comeu a gentil ameixa madura, mais um poema de Abel Neves e, logo a seguir, uma interpretação fantástica de Shostakovich pelo Simón Bolívar String Quartet, uma nova agradável surpresa]
Navegador num veleiro deslizando no Tejo, avistado do Ginjal, com Lisboa em fundo |
azul forte e frio
procurou os lábios sem pressa eram dela
eram carne de ameixa
no exacto ponto em que está madura
corria o avesso da época das colheitas
não estou pronta disse
além dos lábios procurava gentileza
uns passos mais no bairro feliz
abriu a janela havia tanto para falar
e ela ali sem saber o que fazer o que dizer
[Poema de Abel Neves in 'Quasi Stellar']
O Simón Bolívar String Quartet interpreta Shostakovich - Quarteto Nr.8, Op.110, "En memoria de las Vitimas del Fascismo y de la Guerra"
Violinos: Alejandro Carreño, Eduardo Salazar
Viola: Ismel Campos
Violoncelo: Aimon Mata
22 junho, 2013
Lisboa em si - a cidade é uma orquestra. Uma festa para os sentidos!
OS INSTRUMENTOS:
+ 25 EMBARCAÇÕES | + 100 SINOS | 2 COMBOIOS | 6 ELÉCTRICOS | 6 VIATURAS DE BOMBEIROS
+ DE 100 MÚSICOS
DEVEM TER INTERPRETADO EM DIRECTO A PEÇA ORIGINAL DA AUTORIA DO COMPOSITOR PEDRO CASTANHEIRA.
21 DE JUNHO, 22h
A CIDADE É UMA ORQUESTRA!
20 junho, 2013
rosa esquerda, plantei eu num antigo poema virgem
Um poeta deu-me, um dia, uma rosa e eu aconcheguei-a no meu regaço. Estava dentro de um livro e era feita de palavras. Depois ele disse que era uma rosa brava e que eu a deveria guardar no meu ventre e eu assim fiz. Depois, quando do meu ventre saía sangue, eu pensava que ele diria que eram as pétalas vermelhas da rosa. Eu gostava de pensar que assim era. Um sangue fértil e perfumado, um ventre aconchegado, florido e puro.
As mulheres têm uma assombrada roseira, disse ele. As mulheres pensam como uma impensada roseira que pensa rosas. Pensam de espinho para espinho, param de nó em nó. As mulheres dão folhas, recebem um orvalho inocente. Depois sua boca abre-se.
E a minha boca abria-se de espanto e desejo - porque as mulheres são assim, inocentes fêmeas. E a boca do meu corpo também, porque as mulheres são assim, sequiosas e maternais.
A minha roseira brava está dentro de mim, ninguém ma pode roubar. Talvez esteja no meu útero. Ou talvez seja a minha alma, única e simples. Que sei eu do meu corpo? Nada. E, da alma, ainda menos.
A rosa esquerda do Poeta foi-lhe levada mas ele diz que esse seu pequeno achado florirá para sempre dentro dele pois, fora dele, ela não existe. Levaram a parte exterior da rosa mas a parte interior, feita de carne e sangue, essa ficou-lhe nas mãos suaves, no peito amplo, generoso, floral. E das suas mãos nascem palavras floridas como rosas, direitas e belas.
[Abaixo da flor do cardo que mostra a sua espampanante beleza no meio das roas bravas, parte de um belo poema de Herberto Helder. A seguir prossigo com a descoberta de José Valente]
Não é uma rosa mas estava entre rosas na barreira do Ginjal, talvez fosse afinal a rosa esquerda de Herberto Helder |
(...)
rosa esquerda, plantei eu num antigo poema virgem,
e logo ma roubaram,
logo me perderam o pequeno achado,
mas ninguém me rouba a alma,
roubam-me um erro apenas que acertava só comigo,
um umbigo, um nó,
um nome que só em mim era floral e único
[excerto de poema de Herberto Helder in Servidões]
19 junho, 2013
a confissão das pedras é oração
Entro. Se vejo um mosteiro sinto necessidade de entrar. E, se o mosteiro em vez de santos tem memórias e se em vez de ouro tem pedras, ainda mais eu me comovo.
Entro. Vou em silêncio, ando na direcção da luz. Passo os claustros e tu vens comigo, paro e tu paras junto a mim, olho o céu e a luz e tu esperas por mim. Sabes que estou a rezar. Não rezo a deuses que não conheço: aqui entre as ruínas que me abrigam como uma pele sobre o meu corpo nu, eu rezo. Agradeço a luz que me ilumina, agradeço a tua presença, agradeço os caminhos que juntos haveremos de percorrer, agradeço o teu olhar compreensivo e doce, agradeço a esperança em dias melhores. Nada dizes mas talvez em silêncio rezes também.
As paredes parecem desfazer-se, carne macia, uma seda íntima e eu rezo e tu esperas por mim e eu desejo que rezes comigo, por isso o digo mais que uma vez, reza comigo, reza por mim, a luz entra e eu hesito entre sair da sombra ou avançar para dentro da luz e, decida o que decidir, tu acompanhar-me-ás e eu digo-o porque quero que me acompanhes, vem comigo, vem, vamos percorrer juntos todos os caminhos.
São assim as minhas orações, sabes?, por isso não as posso dizer para que as ouças, não pareceriam orações a sério e são, são mesmo a sério.
[Abaixo do casal que entrou na ruína do Ginjal, um poema de um outro poeta que desconhecia, Abel Neves, mais uma boa surpresa. E porque de surpresa em surpresa vou percorrendo estes meus caminhos no Ginjal, a seguir tenho mais uma música muito especial, tal como especial é a interpretação do compositor, José Valente. Bem haja José Valente!]
Num espaço em ruínas no Ginjal |
entrar no mosteiro a qualquer hora
ir adiante no recolhimento na ruína
sem livro nem pressa
a confissão das pedras é oração
no claustro há o suspiro do lagarto
mas isso é no claustro nas pedras ao largo
íntimas do musgo
[Poema de Abel Neves in Quasi Stellar]
"Cenas que me fazem lembrar o Azerbaijão", do fantástico José Valente
Estou encantada com este rapaz. Quem é ele? Porque não se ouve falar mais dele? Acho-o o máximo!!!!
18 junho, 2013
Ficam sombras nem sempre as nossas
Se caminhas por entre o arvoredo, por entre a névoa, só tu, só tu e as tuas memórias, e não sabes se vais perdido, se o caminho tem um sentido, não pares, não te desvies, vai onde os teus passos te levam.
São tantas e tão altas as árvores, tanta a sombra e não sabes se a sombra é abrigo, se é um limite. Mas não penses nisso, esquece as sombras.
Não sabes onde te levam os teus passos, e as sombras navegam, perdidas, à tua volta. Não sabes para onde vais mas que isso não te deixe preso ao passado. Podias estar a andar em círculo, tantas as dúvidas, tantas vezes os mesmos pensamentos. Mas avança, avança. Nem olhes para trás. Se deixas um rasto, se passas como um vulto imaterial, que interessa isso?
Não penses.
Nada sabes, nada saberás. Se tentas perceber o que te trouxe aqui, não sabes bem. Foram os teus passos, sim, mas foram mil acasos, mil, mil, nem sabes quantos mil. Não interessa, avança, procura o que está à tua frente.
Ouves vozes que te prendem, sombras que te enleiam, memórias que nem sabes se são tuas, se são alheias, se apenas as sonhaste ou temeste. Não interessa. Avança. Mantém-te de pé. Nada temas. A vida é uma passagem. Breve.
Talvez lá mais à frente esteja um abismo mas deixa. Se estiver, voa. Voa. Voa no meio do imenso silêncio.
[Estreia-se aqui hoje um Poeta. Nunca antes tinha ouvido falar dele mas agora não o vou largar: João Vasco Coelho. A seguir uma música muito bela composta e interpretada por José Valente, em memória de Bernardo Sassetti]
Homem caminha num dia cinzento no Jardim do Ginjal |
As árvores crescem como o passado
o passado não é fácil
ficam sombras
nem sempre as nossas.
[Árvore' de João Vasco Coelho in 'Na ordem do dia']
---
As árvores crescem como o passado…
… passado que cresce na dor das raízes que vais pisando enquanto caminhas por entre o arvoredo, envolto na névoa do esquecimento das tuas silentes memórias.
Perdido, segues um fio de luz, na busca de um trilho, sem desvios, que mostre a linha que faça sentido e te leve onde o passado te clama.
O passado não é fácil…
… quando caminhas entre o arvoredo e não vês o limite entre a fantasia das sombras e o teu próprio medo. Desconheces o rumo de teus passos, a incerteza das tuas dúvidas e o ónus dos teus pensamentos. Segues a tua jornada de busca e vais deixando, na leveza da viagem, o aroma do teu rasto.
Ficam sombras…
… ignotas vozes e memórias que dormem entre a marginal dos teus anseios e o cerne dos teus sonhos. No entanto, avanças, sem temor, na busca de uma breve passagem que te mostre a essência das sombras. Deslumbrado voas para além da quietude do abismo onde, outras sombras, haverá…
Nem sempre as nossas…
… sim, nem sempre as nossas sombras fazem resplandecer o nosso passado deixando recordações auspiciosas. Contudo esse passado continuará a crescer como as árvores…e vice-versa.
[Texto de dbo num comentário aqui abaixo]
16 junho, 2013
O namorado par se alonga em relva de sexo verde aceso na friagem
Não deveriam ser ditas palavras quando se vêem dois corpos aspirando o amor, quando o azul ainda é muito azul, quando as árvores se fazem cortina, quando a intimidade se resguarda dentro do céu, por detrás dos ramos verdes, suaves, dedos cúmplices.
E as vozes ciciadas que se ouvem talvez sejam dos ternos amantes, talvez sejam da aragem do rio nas ramagens, talvez sejam os suaves anjos que sempre vigiam os que muito se amam. Abraçam-se com ternura e paixão e é deles toda a vida que têm pela frente, todos os caminhos que têm que fazer, caminhando.
Rodeia estes dois que se amam um calor que não vem do sol, que o ar está fresco, da maresia húmida e fria não é: é dos seus corpos que vem este calor cheio de vida e esperança.
Podiam estar deitados na relva que o sexo por vezes assim o pede mas não, voaram pelos céus, e vieram para aqui, pousaram nesta árvore, e aqui estão junto aos pássaros, debicando-se, miminhos na voz e nos gestos, na aventura da descoberta.
Que a sorte lhes seja um vento de feição, que a vida lhes seja um leito suave como um rio que corre docemente para o mar.
Que a sorte lhes seja um vento de feição, que a vida lhes seja um leito suave como um rio que corre docemente para o mar.
[Abaixo do casal de pombinhos, mais um poema de Jorge de Sena, um poeta que tão bem cantou o amor. A seguir um novo compositor e intérprete, certamente também uma boa descoberta: José Valente]
Amar junto às entranhas da água, no Ginjal |
para o centenário de Teixeira de Pascoaes
Vento de primavera que assobia
nas árvores e esquinas recortadas
de azul tão pálido no céu varrido,
ao sol sacode as folhas e os cabelos.
O namorado par se alonga em relva
de sexo verde aceso na friagem
que os corpos une em paralela forma.
E no calor menos da luz que seu
se agita imóvel no ranger do vento.
Assim se tocam ramos como dedos
e as vozes se penetram ciciadas.
Não entardece ainda. Está-se o instante
em que declina o sol sem descair-se
ao leito fluido das entranhas de água.
['Entranhas de água' de Jorge de Sena in 'Antologia Poética']
**
porque o momento é tão intenso
que a cidade, o rio, a passarada
a relva o vento,o por do sol
tudo afinal fica suspenso
desse imenso beijo
ofegante e belo
na hora inexplicável da "chegada"...
["não entardece ainda" de 'Era uma Vez' num comentário abaixo]
15 junho, 2013
Como o pianista Davide Martello acalmou uma multidão em fúria na Praça Taksim (Turkia) com a sua inesperada música
Um dia alguém fará um filme com este músico alemão que conseguiu o feito espantoso de acalmar uma multidão descontrolada.
14 junho, 2013
Alma - deixa voar ao teu redor a manhã
Não sei o que é a minha alma, onde está.
Será o pequeno grão que se esconde algures no meu peito e que me faz pensar, sonhar, chorar, rir?
Ou será uma suave mas insubmissa nervura dentro da minha cabeça que me faz arrepiar com uma palavra antevista, imaginar vastos voos cruzando o horizonte, desejar o afago ou um beijo ou o amor feito carne e desejo?
Não sei.
Sei tão pouco. À medida que o tempo avança, eu vou deixando cair as certezas que me amparavam. Aproximo-me da minha infância, querendo sempre saber mais, querendo descobrir o inesperado, o que se esconde por trás do que óbvio e fácil.
Olho tudo com o espanto da primeira vez, com o deslumbramento de quem ajoelha perante uma grande obra de arte.
Um pequeno pássaro rente ao rio. Brinca, salta, saltita, solta pequenos voos, olha o rio, olha para mim, volta a brincar.
Como explicar o meu encantamento perante esta pequena ave, tão alegre? Como explicar que quase a invejo, tão inocente, tão despreocupada, tão confiante?
Um bando de aves de mau agoiro que paira sobre pessoas ameaçadas, felizmente ainda não se lembrou de fazer tombar as pequenas aves. Elas, tão inocentes e felizes, não sabem a sorte que têm.
Olho-o e fotografo-a e acompanho-a, maravilhada, silenciosa (não vá ela assustar-se). Quanta liberdade a desta pequena ave, quanta.
Depois penso: é a minha alma que assim se reage? Ou esta pequena ave é a minha alma que por vezes se evade da prisão do meu corpo e brinca e voa livre à minha frente, desafiando-me?
[Abaixo do passarinho brincalhão, um pequeno e belo poema de João Miguel Fernandes Jorge. Logo a seguir, um maravilhoso momento musical, Bach em modo jazz, uma vez mais pelo trio Jacques Loussier]
Pequena ave junto ao Tejo, no Ginjal |
Alma -
deixa voar ao teu redor
a manhã
onde as aves fazem ninho
com a sua voz de vento e de névoa
ela mesmo, a manhã
deixa-a ser tua alma
[Poema XXXII de João Miguel Fernandes Jorge in Oferenda, belo livro ilustrado com pinturas de Jorge Pinheiro]
13 junho, 2013
Marcha de Santo António - Cuca Roseta
12 junho, 2013
O sol que na página se levanta antes e depois de se ter levantado no corpo amado
Disse que não sabia se voltaria a falar do que se passa nesta casa misteriosa. Mas, afinal, aqui estou. Aconteceu um mistério e eu tenho que o contar, não quero guardar este segredo que me assusta um pouco. Eu conto e agora não pensem que estou a ficcionar: não estou.
Há coisas inexplicáveis.
Ao ver as fotografias feitas entre ruínas, gaivotas, gatos, veleiros, eis que me apareceu uma estranha imagem.
Está exactamente entre um conjunto de fotografias em que o protagonista é um gato negro de olhos muito verdes, um gato que ora fingia ignorar-me, ora me olhava fixamente, ora se lambia, uma língua indecente.
Pantera negra de olhos verdes - no Jardim do Ginjal |
Eu andava de volta dele, aproximava-me e o gato ali. Várias fotografias do gato entre verde, o rio em fundo. De tal forma era negro ou de tal forma me hipnotizava, as fotografias, ao contrário do que é costume, apareceram-me mal focadas.
E, no meio dessas fotografias, uma incompreensível. Não sei o que é. Não sei como ali apareceu.
Parece uma folha manuscrita. Já ampliei mas perde a definição. Parece uma folha escrita em letra miúda, uma página em branco na qual a vida se derramou, palavras rápidas, recordações, sonhos, amores, rasuras.
Parece que o sol pousou numa folha como pousa, por vezes, nos corpos, no meu corpo desnudo. Não sei.
O que é? Como me apareceu entre fotografias normais?
Não sei. Estive a ver as outras fotografias, tentando perceber se haveria ali algo em que eu não tivesse reparado. Não. Havia um solo coberto de verde, uma árvore, uma rocha, um tronco caído, o rio ao fundo. Nada mais. Não havia nada que se parecesse com isto. Juro.
Digam-me vocês o que acham que é. Digam-me que é uma coisa normal, uma banalidade.
O que é? Como me apareceu entre fotografias normais?
Não sei. Estive a ver as outras fotografias, tentando perceber se haveria ali algo em que eu não tivesse reparado. Não. Havia um solo coberto de verde, uma árvore, uma rocha, um tronco caído, o rio ao fundo. Nada mais. Não havia nada que se parecesse com isto. Juro.
Digam-me vocês o que acham que é. Digam-me que é uma coisa normal, uma banalidade.
Agora sim, vou ficcionar. Tem que ser. A razão não alcança o que os olhos vêem.
Foste tu, homem silencioso que percorres os caminhos nocturnos que te trazem até mim, homem silencioso que sobes as escadas e te sentas a ler palavras roucas? Foste tu que as escreveste e, enquanto eu dormia, as implantaste sob a minha pele?
Foste tu que, com dedos ágeis e boca tumultuosa, vieste deixar dentro do meu coração esta folha na qual derramaste a tua vida feita de palavras como quem derrama esperma dentro de um corpo que não conhece?
Diz-me.
Esta noite vou deitar-me, nua, encostada à parede que te separa de mim, vou deitar-me entre os corpos macios das gaivotas, e vou esperar que, do lado de lá, leias, na tua bela voz cava e silenciosa, as palavras que rasgam a minha pele aflita.
Diz-me. Diz que não tenho razão para ter medo. Abraça-me mesmo que apenas com palavras imateriais e misteriosas, mesmo que apenas com palavras lavradas numa estranha folha branca banhada pelo sol.
[Abaixo da fotografia que tomara que não seja misteriosa, um poema de Casimiro de Brito. A seguir a maravilhosa música de Jacques Loussier dando um ar de jazz a Bach]
Fotografia estranha que não dei por ter tirado. Não sei o que é. Aparece no meio das fotografias tiradas no Ginjal, é só o que sei. |
O sol que na página se levanta
antes e depois de se ter levantado
no corpo amado nas suas fendas e cicatrizes
não será uma fonte paciente uma boca
que nas minhas noites tumultuosas
arde?
['O sol nas ilhas, I', de Casimiro de Brito in 'Amar a a Vida Inteira']
10 junho, 2013
despem-se diante dos olhos dois corpos de luz
Quem passa rente ao rio e espreita esta casa em ruínas vê uma escada e, na base dessa escada, um novelo de cabos e uma agenda abandonada. Números de telefone, nomes, moradas. Não é um livro: é uma agenda. Em tempos alguém ali anotou a sua vida. Todos os seus contactos por terra, agora sem préstimo. Ali está esse pedaço de vida abandonado, disponível para quem o queira devassar.
Mas ninguém lhe toca, não sei se por pudor. Também ninguém ousa subir aquela escada. Não se sabe onde vai dar. As janelas não têm vidros, o telhado não tem telhas, não há portas. Sabe-se lá o que se iria encontrar lá em cima?
Mas eu vou contar-vos.
Lá em cima, a céu aberto, estou eu. Não sempre mas muitas vezes.
Sobre mim voam as gaivotas. Já me conhecem. Chegam-se a mim: entram, abrem as suas grandes asas brancas, ajeitam-se junto a mim e ali se deixam ficar. E depois há os gatos. Sobem, sedutores e silenciosos, pelas escadas, espreitam-me.
Quando está sol, gosto de me despir. A luz sobre o meu corpo alimenta-me a alma. Também gosto de me despir nas noites de calor e lua cheia. Gosto que o luar percorra o meu corpo como uma seda muito macia.
Mas não estou a contar-vos tudo.
Na divisão ao lado daquela onde gosto de estar, a janela tem vidros e o telhado está intacto. As paredes estão cobertas de livros. E há uma pessoa que todos os dias sobe as escadas, em silêncio também, nem sinto o seu respirar. E, todos os dias, escolhe um livro e lê em voz alta. Tem uma voz grave, quase rouca e lê muito baixo. Encosto-me então à parede, o coração saciado, não raramente as lágrimas escorrendo-me pelo rosto. Ouço-o como quem ouve uma oração, uma bênção.
Depois ouço-o a guardar o livro na biblioteca e a descer, em silêncio, as escadas. Não sei se ele sabe que eu ali estou.
Mas sei que esta história não acaba aqui. O que não sei é se vos voltarei a falar dela.
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Rente ao rio, no silêncio das águas que passam, descansa o nome de ninguém, o aroma de vidas diluídas nas estepes do abandono.
Na doce quietude, o esquecimento afaga passados que ressumam das paredes limosas, lágrimas perdidas nas letras desbotadas de uma velha agenda, donde se apagaram os dias da cumplicidade vadia de outrora.
Sei que estás aí, para além do céu aberto, voando sobre a ausência das telhas e das vidraças. Esperas o abraço das gaivotas e a felina sedução dos gatos, cúmplices de teus desvarios solares e sedosas divagações lunares.
Ocultas a realidade dos momentos e deslizas, fio de luz e calor, pelas páginas dos livros, na invisibilidade das palavras que alguém afaga com o olhar e decanta com a voz grave, quase rouca, comprometida por medos e silêncios de esotéricas litanias e ignotas presenças.
Envolta na ausência de ti, acompanhas os passos de silêncio que se afastam do eco das palavras roucas que ficaram nas entrelinhas dos livros e se esparzem nas páginas desbotadas duma agenda de ninguém.
Creio que voltarás, rente ao rio e ao silêncio das águas, nos dias de inquietação, para relembrares o calor das palavras que ficaram presas à memória das gaivotas e dos gatos e se dissolveram na maculada cumplicidade duma agenda de ninguém.
[Texto do Leitor dbo, a quem muito agradeço, num comentário aqui abaixo]
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[Bem. A seguir à escada misteriosa temos mais um belo poema de André Tomé. Quem é este poeta? A seguir, uma outra agradável surpresa que me foi dada a conhecer por um generoso Leitor a quem nunca agradecerei o suficiente: Jacques Loussier interpreta Bach, ao piano, em versão jazz. Mistura mais feliz seria difícil.]
Agenda abandonada numa casa em ruínas no Ginjal |
despem-se diante dos olhos dois corpos de luz
mas a inclinação da luz é rasa
é a fricção dos corpos que ilumina a biblioteca
dos livros perde-se a cor da antiguidade
dos sorrisos inverte-se a obliquidade das palavras
e em silêncio inveja-se a luz produzida
as páginas e os corpos tocam-se de perto
por desejo, imagino eu que leio só.
['Biblioteca' de André Tomé in Insula]
07 junho, 2013
Insatisfeito, um corpo rodopia na solidão que te rodeia
Sei muitas coisas. Já li muitos livros. Conheço muita gente que me ensina muitas coisas. Conheci pessoas, muitas, que já partiram e que me ensinaram muito do que sei.
Tenho muitas coisas. Livros, desde já. E muitas cadeiras, muitos quadros, muitos copos, muitas fotografias, muito tudo.
E já tive alguns amores e já muito amei e já muito fui amada. E ainda sou. E ainda amo. E tenho junto a mim, dentro de mim, muitos afectos.
E amigos. Tenho alguns bons amigos. Os suficientes.
E tenho muita paz dentro de mim.
Mas o tempo é pouco para o muito que quero viver. Tantos livros por ler, tanto por aprender, tanto que amar, tanto que ainda me falta, tanto, tanto, tanto. Tanto que ainda me falta estar, ser.
Gostaria de poder ficar à sombra de uma árvore junto ao rio, ficar, simplesmente ficar, horas. Em silêncio.
Gostaria de poder deitar-me no chão e olhar o céu e ouvir as águas que correm. Imóvel, eu. Tão imóvel que sobre mim pousassem folhas, pássaros, palavras.
Gostaria de poder ficar uma tarde inteira a olhar para um poema, em silêncio, imóvel, apenas ficar a olhar um poema.
Gostava de poder sonhar que era um pinheiro à beira rio e ficar horas assim, de olhos fechados, a imaginar que dava uma sombra maternal, sentindo a aragem na caruma.
Gostava de pensar que o meu tempo é infinito, tranquilo, tempo de paz, de beleza.
Gostava de te ter sempre junto a mim, meu amor, sempre, para sempre. A ti e a todos os meus amores. Felizes e amigos. Eternamente.
Olho o pássaro preto de bico amarelo. Está à sombra de uma árvore junto ao rio. Não sente solidão, não sente o limite de um horizonte que se aproxima à medida que o tempo passa. Ele vive a sua vida com tranquilidade, sem pressa, sem pressentir a sua finitude. Invejo-o. Ele tem o que tem e não sente falta de nada. Imagino que a felicidade seja isto.
[Abaixo do meu amigo pássaro preto do bico amarelo, um poema de David Mourão-Ferreira, um Poeta com uma voz quente e bela. A seguir mais um momento Luciano Berio]
O meu amigo no Jardim do Ginjal à sombra de uma árvore à beira Tejo |
Desejei-te pinheiro à beira-mar
para fixar o teu perfil exacto.
Desejei-te encerrada num retrato
para poder-te contemplar.
Desejei que tu fosses sombra e folhas
no limite sereno dessa praia.
E desejei: «Que nada me distraia
dos horizontes que tu olhas!»
Mas frágil e humano grão de areia
não me detive à tua sombra esguia.
(Insatisfeito, um corpo rodopia
na solidão que te rodeia.)
['Paisagem' de David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"]
06 junho, 2013
Tive um sonho precioso que me fez muito ditoso! - a palavra aos Leitores do Ginjal
(No post abaixo tenho um poema cheio de amor e desejo do galante Camões e, com vossa licença, a respectiva contradança. Mas, entretanto, recebi um delicioso comentário de uma Leitora e resolvi publicá-lo sob a forma de um post autónomo.
É a minha forma de agradecer a gentileza, Pôr do Sol!)
Ainda bem que aqui o clima é outro.
Porque também é uma amante do Tejo e da nossa Lisboa, trago-lhe um presente que encontrei entre as páginas de um velho livro por onde me passeei hoje.
É um sonho, simples e cândido de que não sei autor mas de que gostei de recordar.
Três amigos contemplam Lisboa, a Bela, e um valente veleiro |
Tive um sonho precioso
que me fez muito ditoso!
Sonhei que a nossa Lisboa
em doce se transformava
Ah! Mas que coisa tão boa!
Oh! Mas que coisa tão rara!
Os prédios eram de açúcar
açúcar cristalizado
e cada pedra da rua
era um grande rebuçado!
A estátua de D.José
era de açúcar pilé!
O Tejo que nunca treme
era todo leite creme!
As nuvens eram farófias
que cresciam em castelo...
e os candeeiros da rua
eram grandes caramelos!
(e como todo o sonho acaba...)
Mas tudo foi sonho vão,
uma fantasia inglória!
e quando estendi a mão...
agarrei a palmatória!
Afinal era um sonho... afinal estava sozinha e não havia nenhum veleiro (mas Lisboa lá estava, sempre presente, sempre bela) |
Espero que goste, tem uma simplicidade comovente, que nos ajuda a esquecer este mundo complicado.
Um abraço e uma boa quinta feira.
***
Gostei mesmo!
Um grande abraço e uma boa quinta feira para si também, Sol Nascente!
E para todos os outros meus queridos Leitores também, é claro!
Pede-me o desejo, Dama, que vos veja
Cheia de desejo, eu, meu poeta, e tu aí, rendido, disponível, disposto. Pedes que te deixe veres-me e eu digo-te: podes ver-me sim, agora, sempre, aqui, em qualquer lugar. Olha para mim, meu navegador, meu poeta, despe-me com os teus olhos, sente como também é forte o meu desejo.
Desculpas-te, dizes-me da tua baixeza pelo teu desejo indecente por mim e, dizendo isso, baixas os olhos, baixas a voz e eu ouço a tua voz rouca a dizer-me, sente, sente o meu desejo, e não leves a mal que seja tão indecoroso.
Mas ouve: não é indecente o teu amor, nem indecoroso o teu desejo. Não baixes o teu olhar. Quero vê-lo ao alto, forte, erguido. Refiro-me ao teu olhar.
Dizes-te terrestre, humano, animal, e falas como se isso fosse pecado, como se temesses que eu te possa afastar. Qual quê, meu poeta, meu cavaleiro? Humano, animal, como queiras, és o meu amor, o corpo que me completa, o afecto que me preenche. Escuta, atenta ao meu conselho: põe de parte os freios do pensamento, entra em mim apenas com o teu sentimento, faz isso, faz como te digo. Nada receies.
Mas o quê ainda...?
Amor, cavaleiro meu, marinheiro solitário, não te envergonhes, peço-te, não hesites, digo-te, vê como eu não me envergonho, mostra-me o teu desejo, deixa que eu o sinta, deixa que o meu corpo o sinta. Meu rei, meu amor, vamos entrar juntos no centro da natureza, vamos mergulhar nas águas prateadas deste rio, vamos sentir o sangue quente e forte a inundar a parte mais sagrada dos nossos corpos. Vem. Vem, meu poeta, meu amor.
[Dia em que Camões se chega aqui à beira do rio, é dia em que me sinto intimidada. Penso sempre que mais valia estar calada. Mas, enfim, sou inconsciente e, como todos os inconscientes, gosto de desafios e não receio as consequências. Por isso, desculpem-me vocês.
A seguir, de novo, Luciano Berio, desta vez numa onda mais normal. Ou então sou eu que já me habituei]
No Ginjal, num dos cais sobre o Tejo, Lisboa entre a penumbra |
Pede-me o desejo, Dama, que vos veja,
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tem não sabe o que deseja.
Não há cousa a qual natural seja
Que não queira perpétuo seu estado;
Não quer logo o desejo o desejado,
Porque não falte nunca o que sobeja.
Mas este puro afeito em mim se dana;
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da natureza,
Assim o pensamento, pela parte
que vai tomar de mim, terrestre, humana
foi, Senhora, pedir esta baixeza.
['Pede o desejo, Dama, que vos veja' de Luís Vaz de Camões in 'Contradança, cartas e poemas de Camões']
05 junho, 2013
É no meio das noites e dos improváveis sonhos
Conta-me, Poeta, das palavras que nascem no segredo da noite, conta-me de como levantas as pedras nos caminhos nocturnos em busca da palavra mais rara, de como olhas a lua tentando descobrir uma mulher branca, de facto transparente, que esconda palavras leves como asas, conta-me, Poeta.
Percorres os dias, ofereces sorrisos, distribuis farpas, amas a musa e os filhos, escreves, olhas a luz, abrigas-te na sombra, os deveres, as devoções, tudo certo. Mas é à noite, quando soltas os sonhos, quando as rolas arrulham, meigas, e se aninham, quando os gatos se enroscam desfiando velhas sabedorias, quando as gaivotas se enlaçam nos rochedos, quando as árvores abrigam mulheres perdidas, é à noite que tu és rei do teu reino inventado, e as palavras descem, bailarinas improváveis, doces companheiras, amantes indecentes.
É isso, Poeta?
Conta-me. Conta-me com as tuas palavras tão leves.
[Hoje, uma vez mais, e já tantas são as vezes, o Poeta-Embaixador chega-se até aqui e as suas palavras perfumam a beira do rio.
A seguir continua a música desconcertante (para mim e talvez por enquanto) de Luciano Brio hoje numa interpretação também muito curiosa.]
Pequena pintura numa parede do Ginjal |
Saldo do dia, o poema:
o deve e o haver, o peso, o custo
e tudo o mais que não fica na memória.
É no meio da noite
e dos improváveis sonhos.
['Saldo do dia' de Luís Filipe Castro Mendes in Lendas da Índia]
||||
Eu conto:
Porque gosto
de agarrar as palavras
de lhes abrir as entranhas
e redescobrir tesouros
apagados pelo tempo.
Porque gosto
de sentir
o rumor transparente
de um verso,
de escutar
os sentidos sentidos
de um sentido
sou poeta.
Um poeta de merda
mas um poeta!
['Eu conto', poema de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]
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