Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

24 junho, 2013

há coisas pelo meio - distância ecos obscuridade


A paisagem é tranquila, imensa, muito bela. O rio corre, azul e fresco, ligeiro, as gaivotas recolheram e já não cruzam os céus gritando. O silêncio é muito leve, e entra nas nossas almas, e a paz é total. Cai a noite devagar.

Mas, rente ao rio, caminha uma mulher. Vai sem pressa, olha o horizonte, detém-se espreitando as águas, parece que procura alguém no fundo ou nas lonjuras do mar. Mas não há ninguém. Olho-a de longe. Tão discreta vai que mal se vê. Podia ser uma sombra esquecida numa parede.

Mas pára, espera, espreita as águas. Talvez espere algum cavalo negro, vigoroso, que saia, resfolegando, do fundo do mar. Talvez ela conheça o segredo que pensei que apenas eu conhecesse. 

Em surdina, rogo que o cavalo lustroso, molhado, veias salientes no pescoço, não apareça hoje, que a mulher silenciosa não saiba dele. Que o cavalo negro seja um segredo só meu. 

Não tenho mais segredos. Não sei latim, nunca tive interesse numa língua que já ninguém fala, gosto de línguas vivas, das que entram na nossa boca, molhadas, maliciosas, não sei de mitologias, nada sei de figuras religiosas, místicas, sofredoras. Nada sei de figuras presas às páginas de um livro velho, nada sei de quase tudo. Nada sei daquela mulher que ali vai. Nada sei de mim. Não tenho segredos mas não sei de mim. Nem sei se aquela que ali vai, silenciosa e sem pressa, sou eu. 

Por isso não posso contar da história deste cavalo negro que, à noite, sai do mar para galopar, alvoreado, debaixo da minha janela, que sobe sem medo a estreita escada que leva ao quarto onde espreito a lua sobre o rio, enquanto ouço a voz de alguém que tantas vezes lê livros numa língua que desconheço, uma língua que parece envolta em cinza e sombras. Lê para si próprio ou para alguém que viveu noutros tempos. Ou para mim, não sei. Não sei de nada. Tantos segredos. Tanta distância, tantos ecos. Tanta obscuridade.



[Abaixo da mulher misteriosa que caminha rente ao rio, há mais um poema de João Miguel Fernandes Jorge, um poema que, tal como todos os outros, é uma bela oferenda. A música que se lhe segue é outra interpretação do Quarteto de Cordas Simón Bolívar]


Entardecer  no Ginjal, rente ao Tejo



                                                        Terra e céu. O cavalo negro à beira do rio
                                                        gelado. O pão que Märta cortou, em Luz de
                                                        Inverno, esboroa-se em duas partes
                                                        à semelhança das duas igrejas quase desertas
                                                        nas planícies de Upsala - Nosso Senhor
                                                        Jesus Cristo na noite em que foi traído.

                                                        A imagem é um campo de neve: o que nos
                                                        abandona não se une às pedras ao silêncio de
                                                        deus
                                                        ao latim, que por um momento emerge na sua nudez de
                                                        língua viva
                                                        há coisas pelo meio - distância ecos obscuridade



[Poema XXIX de João Miguel Fernandes Jorge, in Oferenda, belo livro com pinturas de Jorge Pinheiro]


2 comentários:

  1. Cara UJM
    É deveras mitigante falar da tranquilidade das águas e das paisagens. Reinventar, cada dia, uma nova viagem às margens de um rio azul e fresco que guarda os arquétipos da nossa memória.
    Deixar que a nossa sombra procure na lonjura do mar o corcel subaquático da nossa infinita imaginação, segredo que ocultamos na caixa de Pandora da nossa inocência infantil de antanho.
    O desejo supremo é não saber nada sobre nós próprios e os nossos oníricos devaneios. Divagar, apenas, sobre o que resta desses sonhos e anseios e alimentar a fogosidade do corcel subaquático que galopa na memória que esculpimos nos trilhos da nossa demanda.
    Se alguém lê, em voz alta e no silêncio da noite, as ignotas e babélicas palavras, é porque segue os verdadeiros trilhos e procura o doce afago dum coração feminino… talvez seja a metamorfose dum almejado corcel subaquático…

    Como sempre, muita saúde, devaneios e felicidades.

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    1. Que palavras tão bonitas. São como cavalos à solta, como mulheres correndo na noite (como as de Herberto), como árvores ondulando com o vento. sabe bem lê-las. Entram aqui na minha casa como uma aragem fresca nesta noite tão quente.

      Muito obrigada!

      Uma boa noite para si!

      Uma bela semana também. Apesar dos pesares (li o seu comentário lá no UJM), que o sonho nos transporte.

      Saúde, felicidade, devaneios e tudo de bom também para si, dbo.

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