Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

06 junho, 2013

Pede-me o desejo, Dama, que vos veja


Cheia de desejo, eu, meu poeta, e tu aí, rendido, disponível, disposto. Pedes que te deixe veres-me e eu digo-te: podes ver-me sim, agora, sempre, aqui, em qualquer lugar. Olha para mim, meu navegador, meu poeta, despe-me com os teus olhos, sente como também é forte o meu desejo.

Desculpas-te, dizes-me da tua baixeza pelo teu desejo indecente por mim e, dizendo isso, baixas os olhos, baixas a voz e eu ouço a tua voz rouca a dizer-me, sente, sente o meu desejo, e não leves a mal que seja tão indecoroso.

Mas ouve: não é indecente o teu amor, nem indecoroso o teu desejo. Não baixes o teu olhar. Quero vê-lo ao alto, forte, erguido. Refiro-me ao teu olhar.

Dizes-te terrestre, humano, animal, e falas como se isso fosse pecado, como se temesses que eu te possa afastar. Qual quê, meu poeta, meu cavaleiro? Humano, animal, como queiras, és o meu amor, o corpo que me completa, o afecto que me preenche. Escuta, atenta ao meu conselho: põe de parte os freios do pensamento, entra em mim apenas com o teu sentimento, faz isso, faz como te digo. Nada receies.

Mas o quê ainda...? 

Amor, cavaleiro meu, marinheiro solitário, não te envergonhes, peço-te, não hesites, digo-te, vê como eu não me envergonho, mostra-me o teu desejo, deixa que eu o sinta, deixa que o meu corpo o sinta. Meu rei, meu amor, vamos entrar juntos no centro da natureza, vamos mergulhar nas águas prateadas deste rio, vamos sentir o sangue quente e forte a inundar a parte mais sagrada dos nossos corpos. Vem. Vem, meu poeta, meu amor.



[Dia em que Camões se chega aqui à beira do rio, é dia em que me sinto intimidada. Penso sempre que mais valia estar calada. Mas, enfim, sou inconsciente e, como todos os inconscientes, gosto de desafios e não receio as consequências. Por isso, desculpem-me vocês.

A seguir, de novo, Luciano Berio, desta vez numa onda mais normal. Ou então sou eu que já me habituei]


No Ginjal, num dos cais sobre o Tejo, Lisboa entre a penumbra



                                                  Pede-me o desejo, Dama, que vos veja,
                                                  Não entende o que pede; está enganado.
                                                  É este amor tão fino e tão delgado,
                                                  Que quem o tem não sabe o que deseja.

                                                  Não há cousa a qual natural seja
                                                  Que não queira perpétuo seu estado;
                                                  Não quer logo o desejo o desejado,
                                                  Porque não falte nunca o que sobeja.

                                                  Mas este puro afeito em mim se dana;
                                                  Que, como a grave pedra tem por arte
                                                  O centro desejar da natureza,

                                                  Assim o pensamento, pela parte
                                                  que vai tomar de mim, terrestre, humana
                                                  foi, Senhora, pedir esta baixeza.


['Pede o desejo, Dama, que vos veja' de Luís Vaz de Camões in 'Contradança, cartas e poemas de Camões']

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