Cheia de desejo, eu, meu poeta, e tu aí, rendido, disponível, disposto. Pedes que te deixe veres-me e eu digo-te: podes ver-me sim, agora, sempre, aqui, em qualquer lugar. Olha para mim, meu navegador, meu poeta, despe-me com os teus olhos, sente como também é forte o meu desejo.
Desculpas-te, dizes-me da tua baixeza pelo teu desejo indecente por mim e, dizendo isso, baixas os olhos, baixas a voz e eu ouço a tua voz rouca a dizer-me, sente, sente o meu desejo, e não leves a mal que seja tão indecoroso.
Mas ouve: não é indecente o teu amor, nem indecoroso o teu desejo. Não baixes o teu olhar. Quero vê-lo ao alto, forte, erguido. Refiro-me ao teu olhar.
Dizes-te terrestre, humano, animal, e falas como se isso fosse pecado, como se temesses que eu te possa afastar. Qual quê, meu poeta, meu cavaleiro? Humano, animal, como queiras, és o meu amor, o corpo que me completa, o afecto que me preenche. Escuta, atenta ao meu conselho: põe de parte os freios do pensamento, entra em mim apenas com o teu sentimento, faz isso, faz como te digo. Nada receies.
Mas o quê ainda...?
Amor, cavaleiro meu, marinheiro solitário, não te envergonhes, peço-te, não hesites, digo-te, vê como eu não me envergonho, mostra-me o teu desejo, deixa que eu o sinta, deixa que o meu corpo o sinta. Meu rei, meu amor, vamos entrar juntos no centro da natureza, vamos mergulhar nas águas prateadas deste rio, vamos sentir o sangue quente e forte a inundar a parte mais sagrada dos nossos corpos. Vem. Vem, meu poeta, meu amor.
[Dia em que Camões se chega aqui à beira do rio, é dia em que me sinto intimidada. Penso sempre que mais valia estar calada. Mas, enfim, sou inconsciente e, como todos os inconscientes, gosto de desafios e não receio as consequências. Por isso, desculpem-me vocês.
A seguir, de novo, Luciano Berio, desta vez numa onda mais normal. Ou então sou eu que já me habituei]
No Ginjal, num dos cais sobre o Tejo, Lisboa entre a penumbra |
Pede-me o desejo, Dama, que vos veja,
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tem não sabe o que deseja.
Não há cousa a qual natural seja
Que não queira perpétuo seu estado;
Não quer logo o desejo o desejado,
Porque não falte nunca o que sobeja.
Mas este puro afeito em mim se dana;
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da natureza,
Assim o pensamento, pela parte
que vai tomar de mim, terrestre, humana
foi, Senhora, pedir esta baixeza.
['Pede o desejo, Dama, que vos veja' de Luís Vaz de Camões in 'Contradança, cartas e poemas de Camões']
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