Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

07 junho, 2013

Insatisfeito, um corpo rodopia na solidão que te rodeia


Sei muitas coisas. Já li muitos livros. Conheço muita gente que me ensina muitas coisas. Conheci pessoas, muitas, que já partiram e que me ensinaram muito do que sei.

Tenho muitas coisas. Livros, desde já. E muitas cadeiras, muitos quadros, muitos copos, muitas fotografias, muito tudo. 

E já tive alguns amores e já muito amei e já muito fui amada. E ainda sou. E ainda amo. E tenho junto a mim, dentro de mim, muitos afectos.

E amigos. Tenho alguns bons amigos. Os suficientes.

E tenho muita paz dentro de mim. 

Mas o tempo é pouco para o muito que quero viver. Tantos livros por ler, tanto por aprender, tanto que amar, tanto que ainda me falta, tanto, tanto, tanto. Tanto que ainda me falta estar, ser.

Gostaria de poder ficar à sombra de uma árvore junto ao rio, ficar, simplesmente ficar, horas. Em silêncio.

Gostaria de poder deitar-me no chão e olhar o céu e ouvir as águas que correm. Imóvel, eu. Tão imóvel que sobre mim pousassem folhas, pássaros, palavras.

Gostaria de poder ficar uma tarde inteira a olhar para um poema, em silêncio, imóvel, apenas ficar a olhar um poema.

Gostava de poder sonhar que era um pinheiro à beira rio e ficar horas assim, de olhos fechados, a imaginar que dava uma sombra maternal, sentindo a aragem na caruma.

Gostava de pensar que o meu tempo é infinito, tranquilo, tempo de paz, de beleza.

Gostava de te ter sempre junto a mim, meu amor, sempre, para sempre. A ti e a todos os meus amores. Felizes e amigos. Eternamente.

Olho o pássaro preto de bico amarelo. Está à sombra de uma árvore junto ao rio. Não sente solidão, não sente o limite de um horizonte que se aproxima à medida que o tempo passa. Ele vive a sua vida com tranquilidade, sem pressa, sem pressentir a sua finitude. Invejo-o. Ele tem o que tem e não sente falta de nada. Imagino que a felicidade seja isto.



[Abaixo do meu amigo pássaro preto do bico amarelo, um poema de David Mourão-Ferreira, um Poeta com uma voz quente e bela. A seguir mais um momento Luciano Berio]


O meu amigo no Jardim do Ginjal à sombra de uma árvore à beira Tejo



                                            Desejei-te pinheiro à beira-mar
                                            para fixar o teu perfil exacto.

                                            Desejei-te encerrada num retrato
                                            para poder-te contemplar.

                                            Desejei que tu fosses sombra e folhas
                                            no limite sereno dessa praia.

                                            E desejei: «Que nada me distraia
                                            dos horizontes que tu olhas!»

                                            Mas frágil e humano grão de areia
                                            não me detive à tua sombra esguia.

                                            (Insatisfeito, um corpo rodopia
                                            na solidão que te rodeia.)



                                            ['Paisagem' de David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"]

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