Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

10 junho, 2013

despem-se diante dos olhos dois corpos de luz


Quem passa rente ao rio e espreita esta casa em ruínas vê uma escada e, na base dessa escada, um novelo de cabos e uma agenda abandonada. Números de telefone, nomes, moradas. Não é um livro: é uma agenda. Em tempos alguém ali anotou a sua vida. Todos os seus contactos por terra, agora sem préstimo. Ali está esse pedaço de vida abandonado, disponível para quem o queira devassar.

Mas ninguém lhe toca, não sei se por pudor. Também ninguém ousa subir aquela escada. Não se sabe onde vai dar. As janelas não têm vidros, o telhado não tem telhas, não há portas. Sabe-se lá o que se iria encontrar lá em cima? 

Mas eu vou contar-vos.

Lá em cima, a céu aberto, estou eu. Não sempre mas muitas vezes.

Sobre mim voam as gaivotas. Já me conhecem. Chegam-se a mim: entram, abrem as suas grandes asas brancas, ajeitam-se junto a mim e ali se deixam ficar. E depois há os gatos. Sobem, sedutores e silenciosos, pelas escadas, espreitam-me.

Quando está sol, gosto de me despir. A luz sobre o meu corpo alimenta-me a alma. Também gosto de me despir nas noites de calor e lua cheia. Gosto que o luar percorra o meu corpo como uma seda muito macia.

Mas não estou a contar-vos tudo. 

Na divisão ao lado daquela onde gosto de estar, a janela tem vidros e o telhado está intacto. As paredes estão cobertas de livros. E há uma pessoa que todos os dias sobe as escadas, em silêncio também, nem sinto o seu respirar. E, todos os dias, escolhe um livro e lê em voz alta. Tem uma voz grave, quase rouca e lê muito baixo. Encosto-me então à parede, o coração saciado, não raramente as lágrimas escorrendo-me pelo rosto. Ouço-o como quem ouve uma oração, uma bênção.

Depois ouço-o a guardar o livro na biblioteca e a descer, em silêncio, as escadas. Não sei se ele sabe que eu ali estou.

Mas sei que esta história não acaba aqui. O que não sei é se vos voltarei a falar dela.


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Rente ao rio, no silêncio das águas que passam, descansa o nome de ninguém, o aroma de vidas diluídas nas estepes do abandono.

Na doce quietude, o esquecimento afaga passados que ressumam das paredes limosas, lágrimas perdidas nas letras desbotadas de uma velha agenda, donde se apagaram os dias da cumplicidade vadia de outrora.

Sei que estás aí, para além do céu aberto, voando sobre a ausência das telhas e das vidraças. Esperas o abraço das gaivotas e a felina sedução dos gatos, cúmplices de teus desvarios solares e sedosas divagações lunares.

Ocultas a realidade dos momentos e deslizas, fio de luz e calor, pelas páginas dos livros, na invisibilidade das palavras que alguém afaga com o olhar e decanta com a voz grave, quase rouca, comprometida por medos e silêncios de esotéricas litanias e ignotas presenças.

Envolta na ausência de ti, acompanhas os passos de silêncio que se afastam do eco das palavras roucas que ficaram nas entrelinhas dos livros e se esparzem nas páginas desbotadas duma agenda de ninguém. 

Creio que voltarás, rente ao rio e ao silêncio das águas, nos dias de inquietação, para relembrares o calor das palavras que ficaram presas à memória das gaivotas e dos gatos e se dissolveram na maculada cumplicidade duma agenda de ninguém.


[Texto do Leitor dbo, a quem muito agradeço, num comentário aqui abaixo]


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[Bem. A seguir à escada misteriosa temos mais um belo poema de André Tomé. Quem é este poeta? A seguir, uma outra agradável surpresa que me foi dada a conhecer por um generoso Leitor a quem nunca agradecerei o suficiente: Jacques Loussier interpreta Bach, ao piano, em versão jazz. Mistura mais feliz seria difícil.]


Agenda abandonada numa casa em ruínas no Ginjal



                                           despem-se diante dos olhos dois corpos de luz
                                           mas a inclinação da luz é rasa
                                           é a fricção dos corpos que ilumina a biblioteca
                                           dos livros perde-se a cor da antiguidade
                                           dos sorrisos inverte-se a obliquidade das palavras
                                           e em silêncio inveja-se a luz produzida
                                           as páginas e os corpos tocam-se de perto
                                           por desejo, imagino eu que leio só.



                                           ['Biblioteca' de André Tomé in Insula]


3 comentários:

  1. Adorei o remate do post...é tão bom quando lemos na solidão de um livro!

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  2. Cara UJM,
    lindos o seu texto, o epílogo e o poema de André Tomé. Desculpe-me a ousadia, mas atrevi-me a replicar com algumas palavras e o enredo do seu texto. Cá vai, com o devido respeito:

    Rente ao rio, no silêncio das águas que passam, descansa o nome de ninguém, o aroma de vidas diluídas nas estepes do abandono.
    Na doce quietude, o esquecimento afaga passados que ressumam das paredes limosas, lágrimas perdidas nas letras desbotadas de uma velha agenda, donde se apagaram os dias da cumplicidade vadia de outrora.

    Sei que estás aí, para além do céu aberto, voando sobre a ausência das telhas e das vidraças. Esperas o abraço das gaivotas e a felina sedução dos gatos, cúmplices de teus desvarios solares e sedosas divagações lunares.
    Ocultas a realidade dos momentos e deslizas, fio de luz e calor, pelas páginas dos livros, na invisibilidade das palavras que alguém afaga com o olhar e decanta com a voz grave, quase rouca, comprometida por medos e silêncios de esotéricas litanias e ignotas presenças.

    Envolta na ausência de ti, acompanhas os passos de silêncio que se afastam do eco das palavras roucas que ficaram nas entrelinhas dos livros e se esparzem nas páginas desbotadas duma agenda de ninguém.

    Creio que voltarás, rente ao rio e ao silêncio das águas, nos dias de inquietação, para relembrares o calor das palavras que ficaram presas à memória das gaivotas e dos gatos e se dissolveram na maculada cumplicidade duma agenda de ninguém.

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    Respostas
    1. Até estou arrepiada...

      Parece a voz do outro lado da parede, parecem as palavras por quem está atrás do espelho.

      Vou colocar lá em cima, ao pé do meu texto.

      Muito obrigada. Adorei.

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