Disse que não sabia se voltaria a falar do que se passa nesta casa misteriosa. Mas, afinal, aqui estou. Aconteceu um mistério e eu tenho que o contar, não quero guardar este segredo que me assusta um pouco. Eu conto e agora não pensem que estou a ficcionar: não estou.
Há coisas inexplicáveis.
Ao ver as fotografias feitas entre ruínas, gaivotas, gatos, veleiros, eis que me apareceu uma estranha imagem.
Está exactamente entre um conjunto de fotografias em que o protagonista é um gato negro de olhos muito verdes, um gato que ora fingia ignorar-me, ora me olhava fixamente, ora se lambia, uma língua indecente.
Pantera negra de olhos verdes - no Jardim do Ginjal |
Eu andava de volta dele, aproximava-me e o gato ali. Várias fotografias do gato entre verde, o rio em fundo. De tal forma era negro ou de tal forma me hipnotizava, as fotografias, ao contrário do que é costume, apareceram-me mal focadas.
E, no meio dessas fotografias, uma incompreensível. Não sei o que é. Não sei como ali apareceu.
Parece uma folha manuscrita. Já ampliei mas perde a definição. Parece uma folha escrita em letra miúda, uma página em branco na qual a vida se derramou, palavras rápidas, recordações, sonhos, amores, rasuras.
Parece que o sol pousou numa folha como pousa, por vezes, nos corpos, no meu corpo desnudo. Não sei.
O que é? Como me apareceu entre fotografias normais?
Não sei. Estive a ver as outras fotografias, tentando perceber se haveria ali algo em que eu não tivesse reparado. Não. Havia um solo coberto de verde, uma árvore, uma rocha, um tronco caído, o rio ao fundo. Nada mais. Não havia nada que se parecesse com isto. Juro.
Digam-me vocês o que acham que é. Digam-me que é uma coisa normal, uma banalidade.
O que é? Como me apareceu entre fotografias normais?
Não sei. Estive a ver as outras fotografias, tentando perceber se haveria ali algo em que eu não tivesse reparado. Não. Havia um solo coberto de verde, uma árvore, uma rocha, um tronco caído, o rio ao fundo. Nada mais. Não havia nada que se parecesse com isto. Juro.
Digam-me vocês o que acham que é. Digam-me que é uma coisa normal, uma banalidade.
Agora sim, vou ficcionar. Tem que ser. A razão não alcança o que os olhos vêem.
Foste tu, homem silencioso que percorres os caminhos nocturnos que te trazem até mim, homem silencioso que sobes as escadas e te sentas a ler palavras roucas? Foste tu que as escreveste e, enquanto eu dormia, as implantaste sob a minha pele?
Foste tu que, com dedos ágeis e boca tumultuosa, vieste deixar dentro do meu coração esta folha na qual derramaste a tua vida feita de palavras como quem derrama esperma dentro de um corpo que não conhece?
Diz-me.
Esta noite vou deitar-me, nua, encostada à parede que te separa de mim, vou deitar-me entre os corpos macios das gaivotas, e vou esperar que, do lado de lá, leias, na tua bela voz cava e silenciosa, as palavras que rasgam a minha pele aflita.
Diz-me. Diz que não tenho razão para ter medo. Abraça-me mesmo que apenas com palavras imateriais e misteriosas, mesmo que apenas com palavras lavradas numa estranha folha branca banhada pelo sol.
[Abaixo da fotografia que tomara que não seja misteriosa, um poema de Casimiro de Brito. A seguir a maravilhosa música de Jacques Loussier dando um ar de jazz a Bach]
Fotografia estranha que não dei por ter tirado. Não sei o que é. Aparece no meio das fotografias tiradas no Ginjal, é só o que sei. |
O sol que na página se levanta
antes e depois de se ter levantado
no corpo amado nas suas fendas e cicatrizes
não será uma fonte paciente uma boca
que nas minhas noites tumultuosas
arde?
['O sol nas ilhas, I', de Casimiro de Brito in 'Amar a a Vida Inteira']
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