Em silêncio olho o mundo aqui à minha frente. Não sei se o mundo é só isto. Creio que haverá mais para além do que vejo mas não o conheço e nunca o vou conhecer, sei bem disso.
Gostava de fazer parte deste mundo que vejo aqui, tão perto de mim, gostava de poder andar com uma camisa com botões de punho, uma gravata às riscas, um casaco e uma pasta na mão, gostava que me cumprimentassem, gostava de poder entrar em salas com ar condicionado. Gostava de me sentar a uma secretária, que me passassem uma chamada, gostava de andar num corredor alcatifado com uma porta automática ao fundo.
Ou gostava de ter uma mulher e filhos e ir com eles passear ao castelo e espreitar para este lado por um binóculo. E, depois, comprava um olá a cada miúdo e, à minha mulher, levava-a, a seguir, aos saldos no fórum.
Ou gostava de trabalhar num banco, de ir com os colegas beber café e toda a gente saber 'estes são os que trabalham ali no banco'. E gostava que, no fim do mês, depositassem o ordenado na minha conta e que eu pudesse telefonar para um colega, dizendo para aplicar uma parte em títulos.
Gostava que a minha vida não fosse este deserto.
Ou gostava de entrar num veleiro e ir pelo rio fora, sem saber a que terra ia dar. Gostava de ter um boné branco de marinheiro. Gostava tanto que este rio aberto me levasse para muito longe ou que, não indo, ficando apenas aqui sentado a olhar em silêncio, quando aqui venho, ao menos, pudesse sonhar coisas sempre diferentes mesmo que tudo isso não passe de uma intangível miragem.
[Já abaixo da imagem do homem que olha, um pequeno e belo poema de Luís Veiga Leitão e, logo a seguir, de novo, a música pelas mãos de Jordi Savall e outros, entre os quais, a sua filha]
Olhando o mundo ou a ausência dele De frente para o Tejo e para Lisboa: o Terreiro do Paço e, lá em cima, o Castelo de S. Jorge |
É no silêncio do caminho aberto:
Quanto maior a alma maior o deserto
maior a sede e a miragem
do mundo à nossa imagem
['Homem' de Luís Veiga Leitão in 'Os poemas da minha vida' de Miguel Veiga]