Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

02 julho, 2012

No retrato em que estás nua, com a mão a esconder o rosto


Quero sentir o sol na tua pele, na minha pele. Que se soltem as doces gotículas do teu corpo salgado e doce, que se soltem que eu quero bebê-las. Deita-te comigo aqui ao sol. Deita-te no meu ombro e deixa que o rio corra aqui sob os nossos pés, tapete viajante; deixa que o sol doure a tua pele transpirada, deixa, não te mexas, meu amor.

Está calor e o teu corpo abre-se ao sol que cobre e afaga e beija o teu corpo. Conheço bem os gostos do teu corpo. Tenho os olhos fechados mas poderia descrever a forma como, depois de cobrires o rosto com a mão, com uma delicadeza muito feminina, as juntas sob os seios, como arqueias as pernas macias, como passas vagarosamente a língua pelos lábios que ficam secos. 

E, então, eis que passa um veleiro e depois outro. Têm velas brancas e atravessam, pequena aves marinhas, suaves pétalas de sol, este rio que brilha tanto que, se abrisses os teus olhos, eu poderia ver neles, reflectido, este brilho azul com sabor a maresia.

Se abrisses os olhos e fizesses um gesto, bastaria apenas um gesto, talvez até apenas um sorriso, um dos marinheiros dos veleiros brancos viria buscar-te. Gostam de deusas louras de pele branca os marinheiros tisnados pelo sol, habituados a lidar com as aves, com as sereias. Viria buscar-te, ah disso eu não tenho dúvida, e levar-te-ia rio adentro para o ajudares na navegação, deusa, mil vezes minha deusa.

Mas, felizmente, não abres os olhos, felizmente não partes com um dos marinheiros. Ficas comigo, aqui, doce, ao sol. E eu fico então a imaginar-te, quando chegarmos a casa, despida, elegante, de pé contra a luz da rua, de frente para mim, minha deusa, minha amada. E eu, meu amor, para te homenagear ler-te-ei um poema daquela que há oito anos se foi levada pela luz, como se fosse com o rio viajante, com o veleiro de asas brancas, a nossa querida Sophia.



[Logo abaixo da imagem poderão ler mais um dos muito belos poemas do mais recente livro de Nuno Júdice. Imediatamente a seguir mais um belo momento musical da autoria de Manuel de Falla, um momento de grande amor à música]



Em Lisboa, sobre um Tejo azul brilhante, de frente para um 'outro lado' que se estende até à serra de Palmela



                             No retrato em que estás nua, com a mão
                             a esconder o rosto, passa um lento barco de
                             velas brancas como as pétalas que se desprendem
                             do sol. Um só remador o conduz, guiando
                             o seu rumo como se não fosses tu o seu último
                             porto; mas dobras-te ligeiramente para um fim
                             de verso que o vento arrastou até ao limite
                             da página, como se quisesses ajudar
                             essa navegação por entre as ondas tempestuosas
                             dos cabelos louros. Há muito o sol desceu
                             sobre esta sala; e quando te encostas à falsa
                             coluna de um templo vago, és tu a deusa,
                             ou essa a quem ela deu o seu corpo.





['Cara de Mallarmé a Méry Laurent' de Nuno Júdice in 'Fórmulas de uma luz inexplicável']

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