Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

03 julho, 2012

Somos blocos de plasticina entregues a mãos infantis e cruéis


O homem vagueava na rua. Ia sozinho, sem pressa. Chegou-se junto ao cais, sentou-se a ver o rio que ia negro numa noite que estava negra, apenas algumas luzes ao longe. O homem olhava e talvez não visse nada, talvez olhasse apenas a sua própria memória, talvez pensasse na sua vida, não sei.

Eu via-o de longe, gosto de andar de noite, gosto de ver os gatos que saltam das varandas vazias e se esgueiram até à beira do rio, gosto de ver os barcos que atravessam a escuridão, gosto de ver as pessoas apressadas, com sacos nas mãos que, num instante, desaparecem no meio da noite, não deixando qualquer rasto. E, então, eu estava ali, transparente, vendo este homem que percorria os caminhos da beira do rio, da beira da noite.

Depois, ele levantou-se, pôs as mãos nos bolsos, abeirou-se ainda mais do rio e ali ficou, de pé, altivo, cabeça erguida, desafiando a largueza do espaço, aspirando o ar fresco e nocturno.

Algum tempo depois, baixou a cabeça e dirigiu-se à paragem de autocarros. Sentou-se, porte humilde, paciente, cansado. O autocarro não vinha mas a sua paciência manteve-se. Depois mudou de posição, descontraíu-se e ficou a olhar a noite, como se o mundo inteiro tivesse desaparecido e só sobrasse a noite.

Percebi que aqueles breves instantes junto ao rio tinham sido o seu momento de liberdade e que estes momentos de espera eram o seu momento de descanso, de meditação. Que vida será a deste homem? Quem seria este homem se pudesse ter outra vida?



[Abaixo da fotografia deste homem, poderão ler mais um poema de Luís Filipe Castro Mendes, poeta com lugar cativo neste cais. Logo a seguir, dois belos espíritos juntam-se: Teresa Berganza e Manuel de Falla]



Na paragem de autocarro, numa noite fresca

             

                Pouca realidade nos cerca de noite,
                quando todos se calam à nossa volta
                e as coisas se acomodam no escuro, como se fosse o seu natural.

                E nós, que deixámos toda a espantosa realidade do mundo
                amassar-nos até aos ossos,
                olhamos para a noite com a estranheza
                de não podermos mais ser nós próprios.

                Somos blocos de plasticina entregues a mãos infantis
                e cruéis.



               ['Noite impassível' de Luís Filipe Castro Mendes in 'Lendas da Índia']

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