Um dia a mulher viu aquele homem, tantas vezes visto antes, tantas vezes odiado (tantas partidas que a vida nos prega), tantas vezes invisível, e notou nele um olhar e um sorriso diferentes. E o homem olhou a mulher com uma ternura e um desejo muito cúmplices e, aos poucos, qualquer coisa começou a nascer entre os dois.
A vida estava prestes a separá-los mas, na curva da despedida, aproximaram-se com muito amor.
Sem perceberem como, tornaram-se inseparáveis, acordavam e adormeciam a pensar um no outro e todo o dia era uma longa espera até que se pudessem encontrar. Estarem juntos era uma felicidade, uma muito inesperada felicidade. Os sorrisos, os beijos, os afagos, as palavras, o desejo, tudo os aproximava.
O tempo parava para que as confidências fluíssem, o tempo parava para que as horas de intimidade se fixassem indelevelmente nas suas memórias. Olhavam-se com vagar, davam-se as mãos, juntavam as almas e o tempo parado, o sol fixo na parede. Atrás das portas, esquivos, roubavam-se carícias, eram meninos, eram adolescentes de primeiro amor. E a mulher sonhava que passeavam num jardim, de mãos dadas e o homem sonhava que se encontravam num hotel, numa cama com vista sobre a cidade, numa serra com vista para o mar.
E as tardes eram infinitas e o amor era apaixonado e um cavalo corria doido nos seus peitos. Na curva perigosa dos cinquenta, despediram-se um dia para nunca mais, dois imprevistos amantes, dois amantes para sempre.
[Logo abaixo da imagem de um amor em fim de tarde, poderão encontrar a beleza da música interpretada por Jordi Savall]
À beira Tejo, em Belém |
Na curva perigosa dos cinquenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca à síntese da flor
que não se sabe como é feita: amor,
na quinta-essência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar
a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objecto mais vago do que nuvem
e mais defeso, corpo! corpo, corpo,
verdade tão final, sede tão vária,
e esse cavalo solto na cama,
a passear o peito de quem ama.
['O quarto em desordem' de Carlos Drummond de Andrade in 'Nova Reunião', 23 livros de poesia]
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