Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

28 julho, 2012

Na curva perigosa dos cinquenta derrapei neste amor


Um dia a mulher viu aquele homem, tantas vezes visto antes, tantas vezes odiado (tantas partidas que a vida nos prega), tantas vezes invisível, e notou nele um olhar e um sorriso diferentes. E o homem olhou a mulher com uma ternura e um desejo muito cúmplices e, aos poucos, qualquer coisa começou a nascer entre os dois. 

A vida estava prestes a separá-los mas, na curva da despedida, aproximaram-se com muito amor. 

Sem perceberem como, tornaram-se inseparáveis, acordavam e adormeciam a pensar um no outro e todo o dia era uma longa espera até que se pudessem encontrar. Estarem juntos era uma felicidade, uma muito inesperada felicidade. Os sorrisos, os beijos, os afagos, as palavras, o desejo, tudo os aproximava.

O tempo parava para que as confidências fluíssem, o tempo parava para que as horas de intimidade se fixassem indelevelmente nas suas memórias. Olhavam-se com vagar, davam-se as mãos, juntavam as almas e o tempo parado, o sol fixo na parede. Atrás das portas, esquivos, roubavam-se carícias, eram meninos, eram adolescentes de primeiro amor. E a mulher sonhava que passeavam num jardim, de mãos dadas e o homem sonhava que se encontravam num hotel, numa cama com vista sobre a cidade, numa serra com vista para o mar.

E as tardes eram infinitas e o amor era apaixonado e um cavalo corria doido nos seus peitos. Na curva perigosa dos cinquenta, despediram-se um dia para nunca mais, dois imprevistos amantes, dois amantes para sempre.



[Logo abaixo da imagem de um amor em fim de tarde, poderão encontrar a beleza da música interpretada por Jordi Savall]



À beira Tejo, em Belém


                                       Na curva perigosa dos cinquenta
                                       derrapei neste amor. Que dor! que pétala
                                       sensível e secreta me atormenta
                                       e me provoca à síntese da flor

                                       que não se sabe como é feita: amor,
                                       na quinta-essência da palavra, e mudo
                                       de natural silêncio já não cabe
                                       em tanto gesto de colher e amar

                                       a nuvem que de ambígua se dilui
                                       nesse objecto mais vago do que nuvem
                                       e mais defeso, corpo! corpo, corpo,

                                       verdade tão final, sede tão vária,
                                       e esse cavalo solto na cama,
                                       a passear o peito de quem ama.




['O quarto em desordem' de Carlos Drummond de Andrade in 'Nova Reunião', 23 livros de poesia]

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