De noite, antes da madrugada raiar, as gaivotas juntam-se no jardim ao pé da minha casa. Vêm do rio e, da minha cama, eu ouço-as, são gritos longos, sentidos. A essa hora chegam-me pois, da noite, desalentos soltos, lamentos agudos. Sinto vontade, então, de abrir a janela do quarto, chegar-me à varanda e voar para junto delas.
Em círculo no relvado, andando com as suas longas asas quase por terra, as gaivotas estão intranquilas, desafiam-se, choram. Gritam, gritam e os seus gritos são viscerais, parecem carregados de lágrimas. Mas também podem ser gritos de desafio, de celebração. Talvez seja um ritual, talvez festejem apenas o dia que vai chegar, não sei.
Em círculo no relvado, andando com as suas longas asas quase por terra, as gaivotas estão intranquilas, desafiam-se, choram. Gritam, gritam e os seus gritos são viscerais, parecem carregados de lágrimas. Mas também podem ser gritos de desafio, de celebração. Talvez seja um ritual, talvez festejem apenas o dia que vai chegar, não sei.
A esta hora a casa está em silêncio. Pela janela chega uma quase invisível claridade, vestígios sombrios da noite. De olhos abertos vejo então as sombras que se desenham nas paredes. Penso que são os anjos que me protegem, talvez os meus que já partiram e que agora voltam, com as gaivotas, para ver que estou bem, ou para que eu lhes conte os meus sonhos, os meus medos, os meus segredos. Podiam ser deles os gritos que ouço mas sei que não são, os gritos vêm do jardim, das sombras brancas que clamam pela chama do dia. As paredes do meu quarto estão em silêncio, sorriem mas sorriem em silêncio.
Passado algum tempo, ouço o bater de asas, param os gritos, entra no quarto a primeira claridade do dia. Nessa altura os anjos partem também, satisfeitos por me saberem tranquila.
Fecho, então, os olhos e imagino que vou com as gaivotas a caminho do rio, rasgando os céus que se descobrem com os tons da aurora, que vou a caminho do mar, voando ao lado dos navios que se fazem ao mundo. E adormeço feliz, protegida, sem medos.
[Logo abaixo do espaço azul por onde passam caravelas brancas, poderão ver um belo poema de Al Berto e, logo a seguir, o som dos anjos desce, pela mão de Salieri para nos aconchegar]
Há algumas semanas, belo veleiro no Tejo com o Padrão das Descobertas em fundo |
se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
contínua e miudinha - não te assustes
são os teus antepassados que por um momento
se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te
diz-lhes que vives junto ao mar onde
zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo - diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas - com eles no chão
['Incêndio' de Al Berto in 'Horto de Incêndio']
Querida UJM
ResponderEliminarDei comigo com um sorriso agradado ao ler o seu texto. Mais abaixo o poema de Al Berto e vi como se interligam tão bem. Lembrei-me então dos Manes, os deuses do lar, celebrados na antiguidade, os entes queridos que já partiram e depois protegem-nos das agruras da vida. E a sua alegoria faz tanto sentido que parece incrível que não aproveitemos sempre este manancial de sabedoria que nos vem de longe...em vez dos receios, das superstições que, normalmente, acometem as pessoas em relação àqueles que já não andam,fisicamente, por cá.
Minha amiga, vou de férias, mas andarei por aqui, qual gaivota anunciando a alvorada...
Desejo-lhe a continuação de boas melhoras.
Beijos
Olinda
Olá Querida Olinda,
EliminarE eu também sorri com o que escreveu porque não me tinha ocorrido, quando escrevi este texto, que estava a referir-me aos Manes, aqueles que habitam a nossa vida e velam por nós mas já, apenas, em espírito. Mas, agora que mo apontou,faz sentido.
Eu não sou supersticiosa nem medrosa e, de facto, penso muito nos mais queridos que já partiram. Os seus sorrisos, as suas palavras vivem muito junto ao meu coração, a mim, portanto.
Desejo-lhe umas boas férias, de descanso, de lazer, de fruição.
Um beijinho, Olinda!