Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

16 julho, 2012

Volta a romper, ferir, acariciar a mais longínqua das estrelas


A aragem tépida que vinha do rio trazia-me uma toada lenta, esparsa. As gaivotas voavam brandas, as pessoas de fora passavam olhando com assombro a beleza do outro lado, um rapaz passava de bicicleta e, a instantes, como se viesse trazido por um leve sopro, chegava-me um breve acorde, notas soltas.

Talvez uma gaivota estivesse trazendo a música dos céus. Ou talvez uma nuvem tivesse deixado cair o som dos deuses.

Até que, antes encoberto pelo farol, vejo um rapaz tocando guitarra. Passei junto a ele. A música confundia-se com o rumor das águas, com os sons do barco que atracava. Mas, indiferente ao mundo, o rapaz dedilhava e a música subia no ar. Deixei-me estar imóvel. Um momento único. Tudo quase demasiado perfeito. 

De que falavam os dedos do rapaz ao dedilhar as cordas da sua alma? Da sua vida? Do seu amor? De males que ainda está apenas a começar a conhecer? De como o mundo parece um deserto quando nele falta o sorriso de que nos alimentamos?

Ou estaria simplesmente a agradecer a felicidade sem preço de estar vivo, de estar a fazer música, de se sentir abençoado num local tão sagrado como aquele?

Sem vontade, afastei-me mas dentro de mim levava ainda a música que ia acariciando aquele espaço azul e trémulo no qual as palavras se rarefazem.



[Abaixo da imagem, um poema mais de Eugénio de Andrade, desta vez sobre a música e, logo a seguir, justamente, a música em festa: é a abertura da semana que vou dedicar a Béla Bartók]



Há semanas atrás, música à beira Tejo, olhando Lisboa, a Bela



                       A música é assim: pergunta,
                       insiste na demorada interrogação
                       - sobre o amor?, o mundo?, a vida?
                       Não sabemos, e nunca
                       nunca o saberemos.
                       Como se nada dissesse vai
                       afinal dizendo tudo.
                       Assim: fluindo, ardendo até ser
                       fulguração - por fim
                       o branco do deserto.
                       Antes porém, como sílaba trémula,
                       volta a romper, ferir,
                       acariciar a mais longínqua das estrelas.


                       ['É assim, a música' de Eugénio de Andrade in 'Os lugares do lume']


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