O tempo passa por mim. O tempo passa pela minha casa. Junto à varanda a parede devia ser pintada, ali o fio descolou-se e, à medida que o tempo passa, uma ruga, um desânimo que vai entrando, como um fungo, no espírito da casa.
Junto ao rio, a tinta das casas também vai caindo e várias camadas de cores vão ficando à vista. A superfície da parede vai estalando, as rugas estão bem visíveis, tantos anos, tanta gente, gerações por aqui passando, e as casas permanecendo, velhas e dignas.
Mas eu gosto de ver o efeito do tempo que passa. Ficam suaves as pessoas, ficam muito belas as casas.
Nesta parede que aqui vos mostro há cores a que o tempo eliminou a petulância, cores antigas, há musgos agora já secos mas, no inverno, reverdecerão e, até, flores. O tempo vai aqui deixando fragmentos de terra, o vento vai trazendo sementes e, nos desvãos surgem inesperadas flores do campo. Aqui à beira do rio, nas paredes das casas nascem flores que trazem a luz amarela dos campos douradas pelo sol.
Por isso, não me falem em ter tudo limpo e assético, não me falem em arrumações artificiais, não me falem em casas e em ruas sem o som buliçoso de crianças, em mesas sem migalhas de pão, em casas sombrias e melancólicas, não me falem em corações frios.
Não, deixem que as rugas apareçam, que a pintura estale, que as crianças corram e riam, que as casas de desarrumem, que as palavras nasçam livremente - disso se faz a felicidade das casas e das pessoas.
[Logo abaixo da parede florida, poderão ver um poema de um Poeta cujas palavras habitam este espaço. A seguir, estamos a concluir 'o ciclo' dedicado a Manuel de Falla.]
Parede do casario do Ginjal - a beleza do tempo que passa |
"Só mais um dia,
um dia luminoso e barulhento
por mim a dentro,
um dia bastaria,
em prosa que fosse.
Mas dá-me para a melancolia,
para a limpeza, para a harmonia,
impacientam-me as migalhas
de pão sobre a mesa, as falhas
da pintura do tecto,
as vozes das visitas, despropositadas,
sinto-me sujo como um objecto,
desapegado, desarrumado.
Trocaria bem esse dia
por um pouco de arrumação
- no quarto e no coração."
['Cuidados intensivos, V' de Manuel António Pina in 'Todas as palavras - poesia reunida']
Gostei de todo o post, mas a foto está muito bonita.
ResponderEliminarBeijinhos
Muito obrigada, Isabel. Gosto destas paredes assim, especialmente daquelas das quais nascem flores, uma coisa tão improvável ali, rente ao Tejo. Que saudades que tenho de poder andar por lá a fazer as minhas caminhadas...
EliminarUm beijinho, Isabel e muito obrigada.