Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

30 julho, 2012

Quanto maior a alma maior o deserto


Em silêncio olho o mundo aqui à minha frente. Não sei se o mundo é só isto. Creio que haverá mais para além do que vejo mas não o conheço e nunca o vou conhecer, sei bem disso. 

Gostava de fazer parte deste mundo que vejo aqui, tão perto de mim, gostava de poder andar com uma camisa com botões de punho, uma gravata às riscas, um casaco e uma pasta na mão, gostava que me cumprimentassem, gostava de poder entrar em salas com ar condicionado. Gostava de me sentar a uma secretária, que me passassem uma chamada, gostava de andar num corredor alcatifado com uma porta automática ao fundo. 

Ou gostava de ter uma mulher e filhos e ir com eles passear ao castelo e espreitar para este lado por um binóculo. E, depois, comprava um olá a cada miúdo e, à minha mulher, levava-a, a seguir, aos saldos no fórum.

Ou gostava de trabalhar num banco, de ir com os colegas beber café e toda a gente saber 'estes são os que trabalham ali no banco'. E gostava que, no fim do mês, depositassem o ordenado na minha conta e que eu pudesse telefonar para um colega, dizendo para aplicar uma parte em títulos. 

Gostava que a minha vida não fosse este deserto.

Ou gostava de entrar num veleiro e ir pelo rio fora, sem saber a que terra ia dar. Gostava de ter um boné branco de marinheiro. Gostava tanto que este rio aberto me levasse para muito longe ou que, não indo, ficando apenas aqui sentado a olhar em silêncio, quando aqui venho, ao menos, pudesse sonhar coisas sempre diferentes mesmo que tudo isso não passe de uma intangível miragem.



[Já abaixo da imagem do homem que olha, um pequeno e belo poema de Luís Veiga Leitão e, logo a seguir, de novo, a música pelas mãos de Jordi Savall e outros, entre os quais, a sua filha]


Olhando o mundo ou a ausência dele
De frente para o Tejo e para Lisboa: o Terreiro do Paço e, lá em cima, o Castelo de S. Jorge


                                  É no silêncio do caminho aberto:

                                  Quanto maior a alma maior o deserto
                                  maior a sede e a miragem
                                  do mundo à nossa imagem


['Homem' de Luís Veiga Leitão in 'Os poemas da minha vida' de Miguel Veiga]

4 comentários:

  1. A finitude do mundo, creio, existe apenas na infinita pequenez do nosso pensamento. Somos muito mais que aquilo que atingimos, mas não preenchemos, nunca a nossa finita capacidade. Vamos até onde nos leva a maré dos nossos anseios. Gostávamos de ser e ter muitas coisas, o que obviamente é humano, mas o nosso limite é como um mero tactear no escuro, apenas com o poder da mente. Tudo não passará de uma “intangível miragem”, mas o espelho tem sempre duas faces, qual delas a mais real.

    Muita saúde!

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    1. É isso, DBO, os limites somos nós que os traçamos.

      Houve e há escritores que relatam mundos vastos sem quase terem saído do lugar onde vivem. Imaginam mundos e a vastidão da sua imaginação dilata os limites. Em contrapartida há pessoas que, por mais que viagem, nunca conseguirão ter 'vistas largas'.

      No dia em que fotografei aquele homem, fiquei a pensar no que pensaria ele ali, sozinho, olhando o rio, os barcos, Lisboa. Acho que estava mesmo a sonhar, a imaginar saídas para a sua vida. E, quem sabe, ali sentado a imaginar, talvez ficasse mais feliz, quase como se estivesse a viver as aventuras com que sonhava.

      É o mesmo que eu faço aqui, quando imagino vidas para as imagens que colho. É o mesmo que eu faço quando solto as palavras no ar e elas voam até vós, os que me lêem. Quando as minhas palavras voam para longe é um pouco de mim que voa também.

      E, voando, saio dos meus limites, ignoro as fronteiras que limitam o meu espaço. Sou livre.

      Estou, por momentos, do outro lado do espelho.

      Obrigada pelas suas palavras que me dão sempre vontade de escrever outras palavras.

      E muita saúde também para si, porque é tão importante a saúde.

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  2. Não será por acaso,certamente, que ao buscar a frase "quanto maior a alma maior o deserto",abriu-se diante de mim essa nova janela,como se por mágica o mundo criasse uma passagem secreta para outra dimensão.E, ao tentar achar conforto,achei um igual,ou muitos iguais.Muitos que,cansados da mesmice e da mediocridade humana,sentindo o gosto dessa areia de deserto na boca,refugiam-se em frases,poemas,blogs,miragens...na esperança sempre de renovar forças,de prosseguir na jornada.

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  3. Cara Edilene Santos,

    Gostei muito de ler o seu comentário. Concordo com as suas palavras. E o que espero é que consiga sempre ir descobrindo novas paisagens para que tenha sempre vontade de prosseguir a caminhada. É o que eu tento fazer.

    Muito obrigada pela visita e pelas suas palavras. Volte sempre!

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