Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 abril, 2012

Deita-te aqui - esta noite, dentro de mim


Ando por aqui, confiante, vadia, extasiada, sedenta. Tanto azul deixa-me assim, doida, com vontade de mais. 

Olho este rio hoje tão azul, o céu que se pôs tão azul... e até os navios são azuis. A aragem está fria e eu ando por aqui, pela beira do rio, e começo a sentir-me perdida no meio de tanto azul, sozinha.

Tanto azul não pode ser visto assim, por uma vadia, doida, mulher sedenta, especialmente num dia tão azul, tão frio.

E, então, sem que o espere, eis que sais tu do meio do azul. Vestido de azul, lento, confiante, sorridente. Olhas os veleiros, olhas o outro lado, olhas quem passa. 

Vens na minha direcção.

E eu cheia de frio, cheia de vontade de ti que assim me apareceste vindo do azul - mas sempre tímida, sempre menina, sempre sonhadora. Ao ver-te, doce e tu, sim, vadio, a encenação de vadia de beira de rio cai por terra.

Baixo os olhos, com medo que me vejas, mas com tanta vontade de ti. Páro, olho o rio, aflita, com suores frios. Mas tu avanças e aproximas-te. E eu perco a voz, perco a força, perco a razão.

E, então, passas-me o braço pelo ombro e aqueces-me e eu deixo que me aqueças, que me abraces e fecho os olhos, não quero saber de que azul saíste, não quero saber de nada, nem quem és, nem sequer o teu nome. Nada. Quero-te a ti, apenas a ti. 

E tu dizes-me: anda, vamos sentar-nos, vamos conversar aqui, envoltos em azul. E eu sento-me. Mas tremo. De frio, de pudor, de insegurança, de medo. E tu dizes-me: tremes tanto. Vamos para ali que vou agasalhar-te, vou cobrir-te de beijos, vou entrar em ti, minha menina linda.



[A seguir a este dia de azul e amor, encontrarão o belo poema de Maria do Rosário Pedreira e, logo a seguir, é altura de ficar com os olhos bem abertos: Placido Domingo avança para abrir a semana dedicada a Puccini.]



Na beira de um Tejo incrivelmente azul, desta vez do lado de Lisboa


                                 Deita-te aqui - esta noite, dentro de mim,
                                 está tanto frio. Se fores capaz, cobre-me de
                                 beijos: talvez assim eu possa esquecer para
                                 sempre quem me matou de amor, ou morrer
                                 de uma vez sem me lembrar. Isso, abraça-me

                                 também: onde os teus dedos tocarem há uma
                                 ferida que o tempo não consegue transportar.
                                 Mas fecho os olhos, se tu não te importares, e
                                 finjo que essa dor é uma mentira. Claro, o que

                                 quiseres está bem - tudo, ou qualquer coisa,
                                 ou mesmo nada serve, desde que o frio fique
                                 no laço das tuas mãos e não regresse ao corpo
                                 que te deixo agora sepultar. Não sentes frio, tu,

                                 dentro de mim? Nunca nevou de madrugada no
                                 teu quarto? Que país é o teu? Que idade tens?
                                 Não, prefiro não saber como te chamas.


                                 [Poema de Maria do Rosário Pedreira in 'Nenhum nome depois']

Puccini - Placido Domingo e Renata Scotto interpretam Manon Lescaut


26 abril, 2012

A escrita é uma valsa, blusa sem alça


De entre os espinhos nasce uma rosa. Flor única, única nascida deste pé de roseira, esta é a rosa que, entre silêncios e ventos, afronta medos, assombros, a solidão das tardes de pasmo, a solidão fria das noites de sombrias figuras rente a muros desolados.

Encarnada, macia, cheia de folhos perfumados esta é também a rosa que, da varanda, espreita veleiros brancos, tisnados marinheiros, elegantes gaivotas, a lua, o sol e o tempo que foge.

Por ela passam vozes soltas, gritos lancinantes, risos livres, palavras aladas, poesias imaginadas, músicas sonhadas e ela, rosa bailarina, ondulante ao som da aragem e das ondas, ali está aninhada, subtil. E forte. 

Rosa única no meio de um horizonte imensamente belo, esta é uma rosa forte, vencedora, e, também, uma rosa que acolhe entre as suas pétalas caprichosas palavras sem dono, palavras capitosas, palavras que se estendem, sôfregas, sobre o papel. Esta é uma rosa muito feminina, uma rosa fogo, uma rosa mulher. Até porque uma rosa é uma rosa é uma rosa.


[Abaixo da rosa poderão ver a Quimera de Ana Marques Gastão e, logo abaixo, a Norma de Bellini empresta a sua magia ao jardim selvagem que rodeia a rosa]


Veleiro quase invisível num Tejo cintilante avistado de entre uma roseira quase brava
no pequeno jardim abandonado no antigo posto da Guarda Fiscal


                       Arde em palavras-asa,
                       a rosa acidulada.
                       Leva-me, ofendida, o poema
                       e eu repito o ritual.

                       Somos o sol e a lua,
                       o rei e a rainha,
                       a escrita é uma valsa,
                       blusa sem alça,
                       fractura d'um salmo
                       que amacio no papel.


                       ['Quimera' de Ana Marques Gastão in Adornos]

Bellini - Excerto da Ópera Norma com June Anderson como Norma


25 abril, 2012

As nossas pequenas imposturas são uma perda, um delito, uma culpa


E se um dia te cansares, meu amigo, não te canses cedo demais, não te vás depressa demais. Cansa esta vida, eu sei, cansa, verga as costas até aos mais fortes, seca os olhos até aos mais sensíveis, eu sei.

E se olhares para os outros e te parecer que é fácil o caminho que trilham, tão oposto ao teu, deixa que te diga, meu amigo: é tudo uma ilusão porque nada é fácil nesta vida, nada.

E se, meu amigo, te apetecer desistir, ir para longe, deixar de ouvir, deixar de ver, se te apetecer um lugar de silêncio e luz onde o tempo é sublime e bondoso, deixa que te diga, meu amigo, sombrios são, por vezes, os nocturnos atalhos, carregados de culpas, de perdas, sombrios são os atalhos que é preciso atravessar para chegar a esse lugar de sonho onde tudo é perfeito. 

Por isso não te vás já, não, fica por mais algum tempo, continua a partilhar connosco esta vida dura e difícil porque, por vezes, no meio de todo este peso tão difícil de suportar aparecem inesperados sorrisos, poemas, músicas, tocantes palavras e gestos de afecto. Por vezes, meu amigo, este caminho é tão bom de percorrer. Fica, fica.



[Abaixo deste pescador que tem um porte tão digno, poderão ler um poema cheio de significado de José Tolentino Mendonça, poeta e sacerdote, e logo a seguir um belíssimo trecho de Bellini]


Regresso do pescador do Ginjal quando o Tejo e Lisboa começam a envolver-se no véu da noite


                                    O que de sublime e doloroso o tempo guarda
                                    precisava disso de maneira que até é difícil
                                    porque se sentia só nos campos
                                    onde os outros triunfam
                                    descia o sombrio, o nocturno atalho

                                    assim chegava cedo de mais à beira não do fim
                                    mas do informulável
                                    para quem as nossas pequenas imposturas
                                    são uma perda, um delito, uma culpa

                       
['O nocturno atalho' de José Tolentino Mendonça in 'A noite abre meus olhos']
                                 

Bellini - Salvatore Fisichella interpreta 'A te o cara' de I Puritani


O povo abre o touril e sai o Sol perfeitamente Abril maravilha da Pátria ressurecta


Abril festeja-se na rua. 

Abril é o dia da Pátria ressurrecta, o dia da Liberdade e da Democracia tão duramente conquistadas, o dia das pessoas, o dia da esperança num mundo melhor.

Haja o que houver, esses desígnios têm que se manter vivos, cantados, ditos, lembrados. 

E que os cravos de Abril para sempre simbolizem a força da paz, das flores, da poesia. 

Em Abril de 1974 a poesia estava na rua e, enquanto houver poetas, sempre as mentes se inquietarão para que a indiferença, a violência da descrença, os atentados à dignidade e tudo o que vem minando a confiança e o orgulho nacional, saiam vencidos. 



[Hoje, 25 de Abril de 2012, os meus cravos vermelhos vão para Miguel Portas, um bravo Homem que lutou por um Portugal melhor. E o meu abraço emocionado vai para Helena, sua Mãe.]


Os Deolinda há pouco em Concerto de rua, festejando o 25 de Abril


                                   Evoé! de pâmpano os soldados
                                   rompem do tempo em que Evoé! a terra
                                   salve rainha descruzando os braços
                                   com seu pé de papiro pisa a fera.

                                   Na écloga dos rostos despontados
                                   onde dos corvos se retira a treva,
                                   de beijo em beijo as ruas são bailados
                                   mudam-se as casas para a primavera.

                                   Evoé! o povo abre o touril
                                   e sai o Sol perfeitamente Abril
                                   maravilha da Pátria ressurrecta.

                                   Evoé! Evoé! Tágides minhas
                                   outra vez prateadas campainhas
                                   sois na cabeça em fogo do poeta.


['A liberdade, brancura do relâmpago' de Natália Correia in 'O sol nas noites e o luar nos dias, II']

23 abril, 2012

Do beijo fica um sereno olhar, o amor das coisas minúsculas e humildes


Ah meu amor, beija-me, beija-me. Beija-me aqui, em cima do rio, em cima da maresia, neste dia em que a chuva quase nos envolve. Sinto a tua pele molhada e não sei se é chuva, se é maresia e os teus lábios molhados talvez sejam de chuva, de maresia ou de saliva. E eu nem sei se é doce, se é salgado o sabor da tua boca. Ou talvez sejas tu que sabes assim, meu amor, meu amor. Beija-me, amor, beija-me.

E o rio passa por nós, cinzento e picado, e salpica-nos e as gaivotas andam como doidas à nossa volta, ficam assim, loucas, quando te vêem a beijar-me, gaivotas loucas. E uma outra fica pousada, insolente, a olhar para nós e tu provocas, tu provocas e, também insolente, de frente para ela, portas-te de forma indecente.

E vem o vento e envolve-nos, o vento envolve-nos, envolve-nos e as gaivotas voam e o rio salpica-nos e eu deixo-me ficar, aninhada nos teus braços, junto ao teu corpo quente e nem vejo o rio, nem vejo as gaivotas, nem sinto o vento porque tu me beijas e quando tu me beijas eu voo em volta de mim como as gaivotas loucas que voam, que voam.

E eu quero que tu me beijes para sempre, beijos eternos meu amor, beijos eternos que nos protejam contra os venenos da vida, meu amor, contra a morte, meu amor. Para sempre, meu amor.



[Pois, meus Amigos, em dia de amantes unidos contra os venenos da vida, convido-vos à leitura de um belo poema de Assis Pacheco para logo de seguida ouvirem um trecho belíssimo de Rossini numa história de amor e morte.]


Numa tarde sombria, chuvosa, namorados junto ao Cais das Colunas, rodeados pelo Tejo e por gaivotas


                                     Do beijo fica um sabor,
                                     do sabor uma lembrança,
                                     um vento leve, uma espuma.

                                     Do beijo fica um sereno
                                     olhar, o amor de coisas
                                     minúsculas e humildes,
                                     um pássaro que vai e vem
                                     da nossa boca às palavras.
                                     Do beijo fica, suprema,
                                     a descoberta da morte.
                                     Um vento leve, uma espuma
                                     salgada, à flor dos lábios.



['Um vento leve, uma espuma' de Fernando Assis Pacheco in 'A Musa Irregular']

Bellini - Katia Ricciarelli interpreta 'Oh quante volte' de I Capuleti e Montecchi

 
A gravação não é extraordinária mas, ainda assim quis aqui colocá-la, pela intensidade da interpretação.

22 abril, 2012

Ausentes são os deuses mas presidem

   
Não é solidão isso que sentes, meu Amigo, não é. É talvez um momento apenas teu, um viagem ao teu coração, um silêncio. Não solidão.

Vais andando ao longo da tua vida, percorrendo os caminhos das tuas idades, vais conhecendo a evolução natural, a descoberta, a inocência, o tédio, a saturação, o desespero, e vais recomeçando, uma e outra vez. Umas vezes com alegria, outras com apatia, mas vais andando porque assim é a vida.

E se uns dias sorris e outros são lágrimas o que sentes escorrendo dentro de ti, não te entristeças porque assim é a vida e, logo, logo vais renascer.

Mas, meu Amigo, nunca te feches. Enquanto fores percorrendo as veredas às vezes tão estreitas da tua vida, vai olhando. Vê o rio, vê o largo horizonte, vê o imenso céu e os castelos transparentes que nele se desenham, vê as aves libertas que atravessam os ares e vê as árvores que se refazem, as flores de uma beleza tão perfeita, e vê os olhos meigos ou ariscos dos animais e vê, sobretudo, as pessoas.

Olha e vê as pessoas, percebe as suas vidas, aproxima-te, dá a mão, deixa-te abraçar. Porque assim é a vida que é boa de viver.

Não estás só. Algures há um olhar complacente sobre ti, um olhar generoso. Há sempre. Não sei se são os deuses transparentes e ambíguos, se são os pássaros que lá do alto olham por nós, se são as memórias dos que estão longe mas vivem dentro de ti, se são as pessoas que, tal como eu, de longe, te enviamos estas palavras que atravessam os ares por mais longínquos que sejam, não sei. O que sei é que há sempre alguém que olha por nós e que nos pede a nossa atenção ao mundo.



[Abaixo da gaivota que parece presidir aos destinos de quem o seu olhar alcança, poderão ver o belíssimo poema de Sophia e, logo a seguir, um dos mais belos momentos, a Casta Diva por Renée Fleming que, assim, abre a semana de Bellini]

Num dos edifícios do Ginjal, orgulhosa gaivota observa o Tejo e Lisboa e quem por aí passa


                Ausentes são os deuses mas preside.
                       Nós habitamos nessa
                       transparência ambígua,

                Seu pensamento emerge quando tudo
                        de súbito se torna
                        solenemente exacto.

                O seu olhar ensina o seu olhar:
                         nossa atenção ao mundo
                         é o culto que pedem.



['Homenagem a Ricardo Reis/III' de Sophia de Mello Breyner Andresen in 'Os poemas da minha vida', Miguel Veiga]

Bellini - Renée Fleming interpreta Casta Diva




(Um segredo: esta é uma das minhas árias preferidas)

19 abril, 2012

Tu e eu temos de permeio a rebeldia que desassossega


Num dia de névoa branca, através da qual rompia um único raio de luz, passeio lentamente junto ao rio. 

Pouquíssimas pessoas, uma quietude muito mansa, um quase silêncio que as ondas contra as rochas da pequena praia não perturbam. Os telhados, onde existem, já vergaram, as paredes estão gastas, escritas, esventradas, as portas estão tapadas ou são vestígios da perfeição de outrora, as janelas não existem, são buracos abertos ao vento, dos incertos beirais nascem inesperadas flores, nos ares passam lentas e silenciosas gaivotas. No rio, desliza, no meio da neblina, um enorme navio e, quase ao lado, um pequeno veleiro, inocente e branco. 

Uma solitária e húmida brancura.

Procuro-te. Onde estás? Olho em volta, discretamente. Procuro-te em silêncio. Quantas saudades. Talvez ali mais à frente, talvez atrás daquela verdíssima árvore, quem sabe ali naquele banco de frente para a cidade hoje imaginária, nada, não estás, e eu procuro por ti.

Abeiro-me da margem, procuro-te nos rochedos onde apenas um pescador, envolto em névoa, espera tranquilo. Tu não. Tu não estás aqui.

Espero, talvez ainda chegues, talvez. 

Mas depois tenho que me ir embora. E, então, quando já não esperava que aparecesses, quando desço para o caminho ao longo do cais, sinto que um olhar agudo me observa. Vou caminhando e olho em volta tentando descobrir a quem pertence o olhar.

E, então, vejo-te. Estás junto à praia, saltaste para os rochedos, e detiveste-te, suspenso a olhar para mim, iluminado pelo raio de luz.

E é este olhar atento, astuto, paciente, este olhar que me invade, mas com lenta suavidade, este olhar que me compreende e me acompanha que eu procuro quando por aqui passo.

Desassossegas-me, quase me tiras o fôlego tal a intensidade transparente do teu olhar. És humano como eu ou, então, sou eu que sou uma gata como tu. Saltamos por cima dos escombros, atravessamos as névoas, e ninguém nos doma. Guiamos-nos pelos nossos sentidos, não conhecemos a desistência, amamos a largueza de horizontes, a liberdade de movimentos, o silêncio rente ao mar, a harmonia suave desta paz tão tranquila. 



[Logo abaixo do meu amigo, poderá ver-se a Ode ao Gato e, descendo um pouco mais, duas gatas miam ao desafio, um inesperado momento e, claro, é ainda Rossini]


Nos rochedos da margem do Tejo, na pequena praia junto ao Jardim do Ginjal, um gato
- um belo ser inteligente que por ali anda, num extraordinário exercício de liberdade 





                         Tu e eu temos de permeio 
                         a rebeldia que desassossega, 
                         a matéria compulsiva dos sentidos. 
                         Que ninguém nos dome, 
                         que ninguém tente 
                         reduzir-nos ao silêncio branco da cinza, 
                         pois nós temos fôlegos largos 
                         de vento e de névoa 
                         para de novo nos erguermos 
                         e, sobre o desconsolo dos escombros, 
                         formarmos o salto 
                         que leva à glória ou à morte, 
                         conforme a harmonia dos astros 
                         e a regra elementar do destino. 




                         ['Ode ao Gato' de José Jorge Letria in 'Animália - Ode aos Bichos']

Rossini - Teresa Berganza e a sua filha Cecilia Lavilla Berganza interpretam o Duetto Buffo die Due Gatti


  

18 abril, 2012

Até que as chuvas lhe molharam os olhos e deles saíram rios que foram desaguar ao grande mar do princípio

 
Repara. 

Há um muro branco de topo arredondado, é um muro macio, sem arestas agressivas, uma superfície onde o sol se reflecte, ou por onde escorre a chuva. É um muro que apetece afagar, um muro por onde o tempo passa com enorme dignidade.

Quando aqui venho, gosto de ver o mundo para além dele. Este muro branco marca uma fronteira entre o mundo real e o mundo quase excessivamente belo que se vê a seguir a ele.

E vejo então um chão macio, húmido, cheiroso a terra molhada, e vejo árvores muito verdes, árvores que tombam, belas, cortinas verdes que escondem a paisagem e albergam pequenos pássaros.

E, logo a seguir, o terreno debruça-se e rende-se a este rio majestoso, largo como um mar e, então, vejo o rio ora azul, ora verde, ora escuro, conforme o tempo que nele se reflecte, o rio belíssimo que atrai as gaivotas que dançam voando, que gritam enquanto mergulham ou, então, que olham a paisagem com um olhar embevecido como nós.

E, logo a seguir ao rio, vejo a visão da beleza suprema: Lisboa, a magnífica, a luminosa, que se estende ao longo do rio, que tem colinas suaves cheias de casas e ruas e jardins e um castelo e igrejas e que tem uma cor que é uma mistura de ternuras.

Daqui vemos como o tempo passa, renovando-se, árvores despidas, árvores verdejantes, frio e chuva e vento e sol, mas vai passando, vai passando o tempo em direcção a um destino que apenas podemos imaginar. Será um qualquer deus quem desenhou tanta perfeição? E que por aqui ainda paira, afagando quem por aqui passa? Será?

E, tal como eu, por entre a vegetação, há por vezes, outras pessoas que se sentem devedoras por poderem receber tanta graça. Essas pessoas, tal como eu, deslizam em silêncio, como gatos, e as lágrimas quase afloram ao olhar e essas pessoas que por aqui andam em estado de sentida devoção, quase ajoelhando perante tanta pureza, perante tanta beleza, uma beleza tão pura como se estivéssemos ainda no princípio de todas as coisas.


[Há um pequeno jardim verde que se avizinha do rio e, a seguir, há um belo poema de Ruy Belo. A seguir duas vozes fazem uma festa a partir da música de Rossini] 


O Tejo avistado por detrás da cortina verde do jardim do Ginjal


                                O senhor deus é espectador desse homem
                                Encheu-lhe o regaço de dias e soprou-lhe
                                nos olhos o tempo suave das árvores
                                Deu-lhe e tirou-lhe uma por uma
                                cada uma das quatro estações
                                A primavera veio e ele árvore singular
                                à beira do tempo plantada
                                vestiu-se de palavras
                                E foi a folha verde que deus passou
                                pela terra desolada e ressequida
                                Quando as palavras o deixaram de cobrir
                                ficaram-lhe dois dos olhos por onde
                                o senhor olha finitamente a sua obra
                                Até que as chuvas lhe molharam os olhos
                                e deles saíram rios que foram desaguar
                                ao grande mar do princípio


['A multiplicação do cedro' de Ruy Belo, Cidadão de longe e de ninguém, in Antologia Poética]                           

Rossini - Placido Domingo e Kathleen Battle interpretam um trecho do Barbeiro de Sevilha


17 abril, 2012

Vê-me de longe ou perto do ouvido


Vê a alma de alguém, quem não consegue ver-lhe os olhos? 

Tu que não me vês, imaginas como eu sou? 
Conheces-me por dentro, tu que não me conheces por fora?


Não podes verter dentro do meus olhos os mistérios do teu olhar, não podes dizer segredos bem rente ao meu ouvido, não podes ver que expressão eu faria se visse o teu rosto. E, apesar disso, estás aí, tomando estas minhas palavras, acreditando na minha boa fé, na franqueza com que deponho as ideias que me vão ocorrendo no calor das tuas mãos.

Não me vês, pelo que não posso pedir a tua atenção, dizendo 'olha', não me ouves pelo que para quê dizer-te 'escuta'? Como pedir então que me vejas e me ouças? 

E, no entanto, aqui estou, aí estás, confiando um no outro. 


Acredita: esta sou eu, eu inteira. 

Pode ser-se amigo de alguém que não se vê, não se escuta?


Quase diariamente aqui me sento à noite escrevendo para vocês, amigos sem rosto, amigos sem voz. E, no entanto, quase que posso ouvir-vos, quase chega até mim o brilho dos vossos olhos e o som suave da vossa respiração. Se eu sorrio, sei que vocês também me sorriem, se estou mais triste sei que vocês estão aí para me apoiarem, disponíveis um para o outro como são os amigos.


Meus amigos, amigos muito especiais, é o que vocês são para mim.
Obrigada por estarem aí.



[Hoje retomo Emerenciano, um poeta que desenha afectos em forma de palavras e, logo a seguir, uma voz desce dos céus para, através do corpo de uma mulher, cantar Rossini]


Fim de tarde, junto ao casario do Ginjal, na rua encostada ao rio. A Ponte sobre o Tejo  embeleza  o ocaso.


                        Vê-me de costas
                        contrário da luz
                        não me olhes de frente
                        porque me perturbas
                        dentro o meu lado
                        luminoso que trago
                        ao passar pela lua
                        ou rente a candeeiros.

                        Vê-me de longe
                        ou perto do ouvido
                        onde a espiral me leva
                        a prender-te aos segredos
                        ganhos para os amigos
                        e tu podes ser um
                        muito especial.


                        ['Amigo especial' de Emerenciano in 'Ir & Vir']

Rossini - Jennifer Larmore interpretam Stabat Mater

16 abril, 2012

Volta os olhos para trás, encontrarás as montanhas inertes do teu coração

 
Uma mulher passou de olhos no chão, lágrimas escorrendo pelo rosto, mãos fechadas.

Esta é a mulher que por aqui costuma andar, olhar vazio, fundos vincos nos cantos da boca e uma permanente sombra no mais fundo do seu rosto. Não olha a montanha, não olha o rio, não olha a imensidão do céu, nem a frescura azul do rio, não voa com as gaivotas, não se aninha sob uma mansa árvore, não ri, esqueceu o riso. Esta mulher caminha escutando as sombras que invadem o seu coração. Silenciosa e triste, a mulher pensa no seu coração que um dia albergou tantos sonhos e que agora bate com inerte secura. 

Pássaro negro de bico laranja no Jardim do Ginjal

Mas um dia um pequeno pássaro negro de bico quase encarnado brincou à sua frente na relva, e o pássaro saltitava, corria, olhava para trás, olhava para ela, parecia desafiá-la, e depois voou e pousou num ramo baixo, bem à altura dos seus olhos. E o pequeno pássaro cantou e era apenas para a mulher triste que ele cantava e a mulher sorriu com a inocência deste pequeno pássaro envolto em verde. E a mulher pensou que era uma visão tão pura, tão limpa, tão inocente e o pequeno pássaro parecia sorrir-lhe, cantando para ela e ela aproximou-se devagarinho, muito devagarinho e o pequeno pássaro deixou que ela se aproximasse e, então, ficaram os dois, naquela intimidade tão calma e tão verde, e olharam-se nos olhos, os dois tão iguais, tão à espera de ser felizes.

E então, nesse dia, a mulher ergueu o rosto e, ao erguer, viu que no alto daquela montanha que sempre ignorara estava alguém que a abraçava, um abraço longo de protecção e ela pensou que era ela, ela, só ela, que tinha que caminhar para dentro da terra reinventada e feliz. 

E,então, sentindo-se abençoada pelo abraço que lhe chegava, quente e forte, do alto da montanha, a mulher avançou, sem medo, a caminho da sua terra prometida. E os olhos sorriam-lhe, e os lábios entreabriram-se e as mãos soltaram-se e ela andou, feliz, livre e, ao seu lado voavam gaivotas de grandes asas brancas e, à sua frente, como se marchasse inocente e determinado, seguia o pequeno pássaro preto de bico quase encarnado.



[A seguir ao Cristo-Rei, protector e sereno, poderão encontrar um belo poema de alguém que muito admiro, Luís Filipe Castro Mendes, embaixador e poeta, e, logo depois, Callas, a fantástica, interpretando Rossini]


Avistado do Jardim do Ginjal, o Cristo Rei que abençoa quem se quer sentir abençoado



Nous venons de partout, nous sommes sans limites
(Paul Éluard)


                       Volta os olhos para trás,
                       e irás reencontrar as montanhas inertes do teu coração
                       e tudo o que não soubeste mais reinventar.

                       Mas se olhares na tua frente
                       e as montanhas te oferecerem o seu verde sombreado
                       como uma promessa de felicidade,
                       não feches os olhos,
                       não recordes em vão:

                       nós somos de toda a terra,
                       só isso nos foi prometido.


                       ['Junto aos Himalaias' de Luís Filipe Castro Mendes in 'Lendas da Índia']       
                     

Rossini - Maria Callas interpreta Cenerentola de Rossini


15 abril, 2012

Vivo no meio dos vivos, conhecendo a grandeza do nada, a força extrema de uma respiração

   
No caminho da vida, perdemo-nos às vezes e damos por nós no meio de estranhos labirintos que conduzem ao nada. 

Andamos como loucos, dizendo palavras ocas, soltando gemidos, não olhando aos sorrisos, não quedando de receber os afectos. Andamos indiferentes, fechados, olhar vago, lábios cerrados, mãos secas. Andamos a caminho dos lugares escuros em que as respirações não se sentem, aqueles lugares frios em que a meiguice mais tépida não entra, aqueles lugares feitos de sombra e pecado avulso, de solidão e amargura.

Passa um homem curvado, olhos baixos, e murmura uma estranha loa num quase silêncio. Passa uma mulher de ancas vazias, seios tristes e nem vê os cavalos gloriosos, nem vê o calor das mãos estendidas, nem vê o olhar doce nem a ternura sabedora dos gatos que olham a luz.

Tempos estes de cinza em que há quem se perca da vida, tristes tempos, tristes.

Mas estas palavras vão para aquelas bravas pessoas que um dia descobrem a força para respirar o ar mais limpo, o ar que transporta a frescura mais sagrada, para estenderem a mão aos amigos, para as sensíveis e fortes pessoas que um dia resolvem percorrer os caminhos da verdura, os caminhos rente a casas brancas e límpidas, que um dia resolvem correr ao lado das crianças puras, dos cavalos ardentes, dos gatos, essas criaturas divinas, para as corajosas pessoas que um dia abrem os braços e o coração.

Estas palavras vão para aquelas pessoas que um dia resolvem mudar a sua vida e caminhar no sentido do tudo, da luz, da alegria, da liberdade, das aves que se lançam em pleno voo, do mar imenso, do amor. E estas palavras vão também para os que as aguardam de braços abertos, de coração expectante, de sorriso nos lábios e lágrimas de alegria à flor do olhar.


[Logo a seguir ao gato pensador, encontrarão um belo poema da Hélia Correia e, logo depois, William Tell aquece-nos o coração e abre a semana dedicada a Rossini]

Gato muito atento no caminho para o Jardim do Ginjal


                       Não sei perseverar assim, escrevia
                       o da meiga loucura. Perguntava
                       o que dizer, o que fazer, enquanto
                       não voltassem os mais apetecidos,
                       os grandemente antigos, esses sábios
                       que se engasgavam nos banquetes, querendo
                       beber muito e cantar, considerando
                       que a paciência não era qualidade,
                       esses enfurecimentos gloriosos
                       que diziam a Ilíada de cor,
                       e se esforçavam por adivinhar
                       para que rapariga olhara Sófocles
                       quando escreveu a sua Antigonê.
                       Que fazer sem a rápida alegria
                       que levanta o cavalo em plena guerra,
                       vivo no meio dos vivos, conhecendo
                       a grandeza do nada, a força extrema
                       de uma respiração.


                       ['Poema 13' de Hélia Correia in 'A Terceira Miséria']
                   

Rossini - Mark Elder conduz a Hallé Orchestra na Abertura de William Tell (1ª parte)

12 abril, 2012

Menos derramada a letra, estende-se harmoniosa, secreta, invernosamente fraterna


Há tantas, tantas coisas que eu não posso fazer ou evitar. Nem vou exemplificar porque seria fastidioso (e porque não gosto de falar do que não gosto). 

Mas há coisas que estão ao meu alcance. E, de entre essas, há as que me apetecem, as que me dão prazer. E, estas, apetece-me aqui exemplificar.

Tu que me lês aí no sossego da tua quietude, escuta, quero agora falar ao teu ouvido. Baixinho, vou dizer muito baixinho ao teu ouvido.

Eu gosto de fotografar o rio à noite no sítio em que o cais se ilumina. O rio fica de um azul irreal, as luzes aquecem a cor laranja dos barcos e do cais e eu, em silêncio, dentro de mim, mergulho neste mar de cores alucinadas e, em silêncio, misturo as cores, puxo por elas, deixo que me animem e dou por mim a dançar dentro de mim.

Escuta: achas que sou doida, alienada, não achas? Mas não sou, sou apenas uma mulher pássaro que gosta de voar rente ao rio nas noites floridas de cores luminosas. Achas que eu não sou uma mulher igual a todas as outras melhores, não achas? Pois, aí tens razão: ninguém é igual a ninguém. Eu sou aquela mulher que aqui, na noite reconfortante, se senta a escrever palavras que se põem umas em cima de outras, formando degraus que as levam até ao céu para daí, então, se irem depor, humildes, sob o teu olhar incrédulo.

Eu gosto de flores às cores, de pássaros brancos, de palavras alegres, de gestos coloridos, de afectos quentes e gosto, ah, gosto tanto, de te contar estas coisas pequenas, simples, graciosas. Eu gosto, gosto mesmo tanto, de pintar com cores vibrantes palavras que se derramam em  ternura por ti, palavras secretas que falam de harmonia, palavras que ajeito aqui, como se bordasse, um bordado colorido e afectuoso para te oferecer, a ti que me lês, a ti que me vais guardando, carinhosamente, dentro de ti.  

Escuta: gostas das minhas palavras que voam desde lá em baixo, onde o rio azul cobalto se pinta de branco ou de cor de laranja até aqui à minha varanda, depois até à ponta dos meus dedos e depois até aí ao teu colo  quente, à tua boca que sorri? Estás a sorrir? Estás, não estás...? 

Conta-me. Diz-me um segredo, diz...Diz que sorris com as minhas palavras, diz que te apetece vir mergulhar comigo neste rio brutalmente azul, diz que te apetece atravessar esta noite fresca e luminosa, voando ao meu lado e ao lado das outras gaivotas, diz que gostavas mesmo de pousar ao meu lado nos muros com cheiro a maresia e luzes íntimas como estrelas, diz, diz, diz ao meu ouvido. Diz, eu gostava tanto de ouvir.


[Abaixo da fotografia, um poema sobre um certo mar vermelho e, logo a seguir, uma nuit d'ivresse, a fechar a semana dedicada a Berlioz]


Noite no Cais do Ginjal - as cores em festa na beira do rio


                               No pavilhão da orelha
                               descanso o vento,
                               ao mar vermelho
                               pinto-o de branco
                               enquanto pressinto
                               quase um rebento,
                               uma flor, um unguento,
                               suportando, amáveis,
                               o peso do que sou.

                               Menos derramada
                               a letra, estende-se
                               harmoniosamente, secreta
                               invernosamente
                               fraterna. Espectral,
                               desenha a escada
                               suavemente proporcional
                               aos limites do nocivo.


                               ['Mar Vermelho' de Ana Marques Gastão in Adornos]

Berlioz - Tatiana Troyanos e Plácido Domingo interpretam Nuit d'Ivresse da Ópera Les Troyens


11 abril, 2012

Levam o sangue cheio de letras, as patas floridas sobre a cabeça, correndo, pensando

 
Resoluta a jovem mulher vai estrada acima. Tal como ela, vou eu. Caminhando ao encontro da noite, ideias voando em volta, palavras em torno de um corpo que se apressa a entrar na noite.

E depois outra mulher aparece correndo, firme, correndo como uma égua de fibra, patas pisando o chão e flores nascendo do chão pisado pelas patas, o chão, a terra fertilizada pelo sangue desta e doutras mulheres. As mulheres correm, entram na noite, levam os seus ventres ao encontro da noite, das estrelas. E no seu corpo limpo e livre entra o luar, a maresia, as palavras que voam.

E eu olho o céu que escurece e olho as mulheres que correm na noite, que levam os seus sonhos fortes, que cantam as suas dores e alegrias, e tudo voa, tudo voa - é que as mulheres têm que ter o coração sempre livre. 

As mulheres correm na noite e o céu enche-se de estrelas, de flores, de crianças, de novos sorrisos, e ao lado das mulheres que correm, corre também a lembrança daqueles, daqueles tão queridos, nunca esquecidos, daqueles que para sempre, para sempre, viverão dentro do coração das mulheres livres que atravessam a noite porque há amores transparentes e intangíveis que não morrem.



[Abaixo encontrarão um excerto de um poema que venero (se é que faz sentido dizer que se venera um poema) e logo a seguir uma gravação que não tem grande qualidade mas que é fantástica, Jesye Norman interpreta Berlioz]

Subindo a estrada que sai do Ginjal, a caminho da Boca do Vento


                               Ouço: são elas que partem. E levam
                               o sangue cheio de letras, as patas floridas
                               sobre a cabeça, correndo, pensando.
                               Atiram-se para a noite com o sonho terrível
                               de um lenço vivo.
                               E vão batendo com as estrelas nas portas. E sobre
                               a cabeça branca, as patas lembrando
                               pela noite dentro.
                               O rosto sufocado, o som abrindo, muito
                               lembrado. E a cabeça correndo, e ouço:
                               são elas que partem, pensando.



[Excerto de 'Mulheres correndo, correndo pela noite' de Herberto Helder in 'Poesia toda 2']
       

Berlioz - Jessye Norman interpreta 'D'amour d'ardente flamme'


10 abril, 2012

O sol e o dia agora estão lá onde o teu sorriso mora e não aqui

 
E, num dia que parecia um dia normal, atravessaste a parede. 

Levavas flores na mão, levavas um sorriso no rosto, tudo parecia normal e, no entanto, saiste do teu caminho - que era o nosso caminho - e atravessaste a parede, furaste o fino tecido, a transparente teia, que separa o caminho normal de um outro caminho para onde passam aqueles que procuram, mais cedo, a claridade branca, a luz sem mácula, o silêncio mais puro.

E eu fiquei aqui, vendo-te partir, fiquei aqui onde as paredes são gastas, nesta rua tantas vezes percorrida, aqui junto ao rio. Fiquei aqui perdida, eu e a maresia, eu e as gaivotas que vão e vêm e a nada se prendem. 

Foste-te. Foste-te sem me avisar.

Levaste contigo o sorriso, as flores, o jardim, o céu, e até o rio agora parece querer ir atrás de ti, e os veleiros enrolam as velas e passam silentes, como se quisessem seguir-te.

E eu olho as casas ocas, as gaivotas mudas, estes caminhos agora tão vazios, tão vazios, e não sei como continuar a percorrê-los sem ti. 

Diz-me que voltas, diz-me que voltas, diz. Ou diz que me esperas, ou diz que guardas as flores frescas para me dares quando eu chegar, ou diz que vais estar a sorrir quando me vires. Diz. Diz. 



[Abaixo da fotografia o poema de Sophia e porque a tristeza me incomoda, tento espantá-la com a Sinfonia Fantástica de Berlioz, logo a seguir. Mas não sei se consigo.]

As misteriosas paredes do Ginjal que engolem gatos e mulheres - mesmo rente ao Tejo


                             O sol e o dia brilham mas sem ti
                             Talvez não sejam mais o sol e o dia.
                             O sol e o dia agora
                             estão lá onde o teu sorriso mora
                             e não aqui.

                             Como quem colhe flores tu serena
                             vais colhendo sem chorar a nossa pena
                             Olhas por nós sem mágoa nem saudade
                             e o céu azul, a luz, as primaveras
                             habitam na perfeita claridade
                             em que nos esperas.


                             [Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen in 'No tempo dividido']

Berlioz - Leonard Bernstein conduz a Orchestre National de France na Symphonie Fantastique


09 abril, 2012

Aquele que se perdeu, aquele que se perdeu guiado por uma estrela, aquele que se perdeu no seu caminho


O homem espera que a luz se ponha. Espera pacientemente. Ninguém o espera, tem tempo. Em silêncio aguarda que a noite comece a descer o seu manso véu. 

E, então, as cores quentes do sol começam a recuar, os azuis regressam, frios, sombrios. A beira do rio é, nessa altura, um retiro, um refúgio, um templo íntimo e sagrado. O homem aparece então, suave, desliza com delicadeza. Talvez seja alguém que se perdeu de si mesmo, talvez venha guiado por alguma estrela, talvez procure apenas uma palavra oculta.

O homem senta-se e olha o infinito ou talvez espere uma visão que venha de dentro das águas, que venha nas asas de uma gaivota, talvez espere apenas a palavra que nem sabe se está dentro de si ou no coração de um pássaro branco e esguio ou se vem trazida pela subtil aragem que sobe do rio.

O homem está em silêncio, ouve a sua própria respiração, sente a sua pulsação, segue o seu instinto, e procura o seu destino que um dia se perdeu. O homem olha em silêncio as águas que escurecem, espera que venha um reflexo, uma imagem, uma palavra, um poema, um sentido, um sentido qualquer.

O homem que aqui está, digno, tão digno, sem destino, procurando palavras com sentido, respira então com uma lentidão plena de leveza, olha o céu que também escureceu, olha o céu com devoto agradecimento e, em silêncio, pensa que encontrou, aqui, hoje, o princípio do seu caminho. 



[Gostava, meus Amigos, que descessem até às palavras de Manuel Alegre, belas palavras sobre 'aquele que se perdeu' e que, depois, logo a seguir, se detivessem num momento de pura magia: Renée Fleming interpretando Berlioz.]

Cai o dia junto ao Tejo, o cais é então lugar de retiro e meditação


                              Aquele que se perdeu
                              aquele que se perdeu guiado por uma estrela
                              aquele que se perdeu no seu caminho
                              ou dentro de si mesmo
                              aquele que se perdeu em busca da palavra
                              ou talvez do destino e do sentido
                              ou apenas
                              do reflexo mágico do ritmo e da revelação
                              aquele que se perdeu e já não sabe como recuperar
                              a pulsação e o instinto
                              não mais que o breve instante de um lampejo
                              algo como a visão de uma visão
                              imagem reflectida sobre as águas
                              ou talvez sobre a página
                              por onde vai
                              aquele que se perdeu.


                              ['Aquele que se perdeu' de Manuel Alegre in 'Nada está escrito'
                         

Berlioz - Renée Fleming interpreta 'L'adieu des Bergers'


08 abril, 2012

Foi como amor aquilo que fizemos ou tacto tácito?

 
Palavras, tantas palavras, palavras talvez a mais e tu, silencioso, e eu falo, falo, chamo-te amor, chamo-te meu querido, profiro juras, abraço-te, quero-te, abraça-me, meu amor, e tu silencioso e eu, palavras, palavras, e tu ouves e sorris e eu falo e falo e quero saber se é amor o que sentes, se é ternura isso que vejo nos teus olhos, se me queres junto a ti para sempre, e tu nada dizes, e eu falo, falo e digo que te quero ouvir, que te quero beijar, que te quero enlear e tu nada dizes e eu não sei se é amor, se é desejo apenas, se é só isto ou se vai para além deste momento e tu ouves, ouves em silêncio, em silêncio sorris e nada dizes e eu ameaço, que nunca mais me vais ver, que me esqueças, e falo, falo, e tu nada dizes, nada, e eu quero que me digas, diz, diz, quase grito e tu nada dizes e eu digo que me vou embora, para nunca mais, para sempre, e tu nada dizes, e eu odeio-te, odeio-te, ouviste?, e tu nada dizes, nada, e eu levanto-me, maldito, maldito sejas, maldito, maldito, mil vezes maldito, e tu, então, em silêncio, devagar, puxas-me para ti, fechas-me a boca com um beijo infinito, abraças-me e tolhes-me os movimentos com o calor que sobe do teu corpo tão desejado, e eu então sossego, já não quero palavras, não quero que me respondas, só te quero a ti, não digas nada, não digas, não digas. 



[Num caloroso fim de tarde, palavras de desejo e amor junto a cenário quase irreal e um poema de Margarida Vale de Gato e, logo abaixo, inicia-se a semana dedicada a Berlioz com sonhos e caprichos]

Fim de tarde, um sol doce, o Tejo azul (e doce, quase salgado), Lisboa belíssima
- e o amor



                             Foi como amor aquilo que fizemos
                             ou tacto tácito? - os dois carentes
                             e sem manhã sujeitos ao presente;
                             foi logro aceite quando nos fodemos.

                             Foi circo ou cerco, gesto ou estilo
                             o acto de abraçarmos? foi candura
                             o termos juntos sexo com ternura
                             num clima de aparato e de sigilo.

                             Se virmos bem ninguém foi iludido
                             de que era a coisa em si - só o placebo
                             com algum excesso que acelera a líbido.

                             E eu, palavrosa, injusta desconcebo
                             o zelo de que nada fosse dito
                             e quanto quis tocar em estado líquido.



                             [Émulos de Margarida Vale de Gato in 'Mulher ao Mar']
   

Berlioz - Carlos Damas no violino, com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, interpreta Reverie et Caprice


04 abril, 2012

Desconfio dos poetas que falam muito de luz, das manhãs e das árvores

 
Gosto das manhãs, gosto da luz, dos dias abertos, desnudos, impúdicos. Gosto de flores, de árvores, de folhas, de frutos, do sumo que escorre dos frutos, gosto dos pássaros que se passeiam entre nós, ou que se escondem nas árvores ou que atravessam os céus. Gosto de crianças correndo nas manhãs floridas, gosto de animais brincando no meio das crianças, gosto do sol iluminando as crianças ao pé das flores perfumadas, gosto da beleza inocente e pura.

Gosto.

Mas gosto ainda mais da tarde e da noite, gosto do mistério das sombras, gosto do mar encapelado, do rio indómito, bravio, gosto das árvores desenhadas contra os céus escuros, gosto da gente que se recorta, com sobranceira valentia, contra a magnífica paisagem, gosto das sombras que avançam solitárias para dentro da noite.

Aos sorrisos bentos, às vozes mansas e temperadas, aos meio gestos e às palavras brandas, prefiro a gargalhada, o grito, os peitos abertos, os murros na mesa, os beijos apaixonados.

Gosto de ver a vida de frente, gosto de entrar por dentro do cenário, gosto de ver a gente corajosa que avança mar adentro, que apanha frio, que sofre o vento, tempestades se necessário for, apenas para apanhar um pequeno peixe. (O peixe que alimentará a família)

E gosto de palavras, gosto de poemas que gostam de palavras, gosto de pessoas que gostam de poemas, gosto de pessoas que se perdem por palavras, que olham de frente as palavras, que as defrontam, as desafiam. E gosto, ah mas quanto eu gosto...!, gosto muito da vida, da vida  inteira, da vida que não se rende à brandura dos dias.



[E logo abaixo do homem suspenso sobre o Tejo, pode encontrar toda a emoção de Uma lágrima - Mussorgsky, claro]

Pescador sobre um Tejo agitado, de frente para Lisboa, num fim de dia frio, com pouca luz


                              Desconfio dos poetas
                              que falam muito de luz, das
                              manhãs e das árvores
                              na sua obsessão hospedeira
                              de frutos   aves   e
                              folhas. Desconfio dos que cantam
                              lareiras e vozes mansas, tentando
                              apaziguar o poema com a sua
                              indústria de incensos. Eles
                              encenam como velhos profetas
                              tardias formas de beleza
                              extinta - e fazem do verso
                              um ritual nado-morto
                              de pequenos afectos,
                              indiferentes à faca
                              incandescente que separa
                              o corpo das palavras
                              da substância do mundo.


                              [Quebra-luz de Inês Lourenço in Câmara Escura]

"Desconfio dos poetas"
que desconfiam dos poetas que cantam a paz das manhãs claras
ou as árvores que renascem
as águas que murmuram
antigas histórias de amor ou de saudade

deixem em paz os poetas
na sua eterna inquietação
na revolta
no silêncio
no grito
ou apenas na contemplação...em liberdade



[Poema da autoria da Poeta 'Era uma Vez' in comentários aqui abaixo]