Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

25 abril, 2012

As nossas pequenas imposturas são uma perda, um delito, uma culpa


E se um dia te cansares, meu amigo, não te canses cedo demais, não te vás depressa demais. Cansa esta vida, eu sei, cansa, verga as costas até aos mais fortes, seca os olhos até aos mais sensíveis, eu sei.

E se olhares para os outros e te parecer que é fácil o caminho que trilham, tão oposto ao teu, deixa que te diga, meu amigo: é tudo uma ilusão porque nada é fácil nesta vida, nada.

E se, meu amigo, te apetecer desistir, ir para longe, deixar de ouvir, deixar de ver, se te apetecer um lugar de silêncio e luz onde o tempo é sublime e bondoso, deixa que te diga, meu amigo, sombrios são, por vezes, os nocturnos atalhos, carregados de culpas, de perdas, sombrios são os atalhos que é preciso atravessar para chegar a esse lugar de sonho onde tudo é perfeito. 

Por isso não te vás já, não, fica por mais algum tempo, continua a partilhar connosco esta vida dura e difícil porque, por vezes, no meio de todo este peso tão difícil de suportar aparecem inesperados sorrisos, poemas, músicas, tocantes palavras e gestos de afecto. Por vezes, meu amigo, este caminho é tão bom de percorrer. Fica, fica.



[Abaixo deste pescador que tem um porte tão digno, poderão ler um poema cheio de significado de José Tolentino Mendonça, poeta e sacerdote, e logo a seguir um belíssimo trecho de Bellini]


Regresso do pescador do Ginjal quando o Tejo e Lisboa começam a envolver-se no véu da noite


                                    O que de sublime e doloroso o tempo guarda
                                    precisava disso de maneira que até é difícil
                                    porque se sentia só nos campos
                                    onde os outros triunfam
                                    descia o sombrio, o nocturno atalho

                                    assim chegava cedo de mais à beira não do fim
                                    mas do informulável
                                    para quem as nossas pequenas imposturas
                                    são uma perda, um delito, uma culpa

                       
['O nocturno atalho' de José Tolentino Mendonça in 'A noite abre meus olhos']
                                 

4 comentários:

  1. Amiga:
    Bom pedaço de prosa, um belo poema.
    Vou ouvir Bellini
    Beijinhos
    Mary

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    1. Obrigada, Mary. Saíu-me um bocado triste. Isto do Miguel Portas abalou-me. Tento desviar-me de pensamentos tristes mas, sem querer, vou lá dar.

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  2. Querida UJM

    'Carta a um amigo', seria este o título que eu atribuiria a este texto que não deixa nada por dizer, que mostra tanta solidariedade e amor. Palavras de alento a quem por aqui passar. Palavras de que nos podemos apropriar e atribuir o significado que melhor nos assente, de conformidade com o nosso momento. Aqui as palavras, boas e belas, fluem e cumprem a sua missão.

    Beijinhos

    Olinda

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    1. Olinda, olá!

      Que bom nome, acho que fica mesmo bem perante aquilo que eu estava a pensar e a sentir quando o escrevi.

      Há tantas pessoas tão desanimadas, por vezes com vontade de se ausentarem. E no entanto, por vezes, é tão simples encontrar motivos de motivação (passe a aparente redundância).

      Evito que o que escrevo se pareça com aqueles manuais de auto-ajuda, vulgares, lamechas. Mas, por outro lado, há tantas pessoas isoladas na sua solidão e a quem eu gostaria de chegar com uma palavra, que acho que vale a pensa correr o risco de a escrita me sair, às vezes, um pouco emocionada.

      Muito o brigada pela compreensão, Olinda.

      Um beijinho.

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